Brasil e Chile A responsabilidade civil pela perda de uma chance nas relações de consumo relacionadas aos serviços de saúde

16 de setembro de 2015

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|Ivan_oliveiraIntrodução

O direito à saúde é um direito humano inviolável. Esta é a premissa central deste artigo em que discutimos as mudanças dos paradigmas do instituto da Responsabilidade Civil no Brasil e no Chile. Após a apresentação do panorama histórico da responsabilidade civil, demonstramos que estamos diante da inflação de novos danos indenizáveis, com destaque para a adoção da teoria da perda de uma chance em vários sistemas jurídicos. 

Em outro momento, diante da arbitrariedade, do retardo ou da recusa indevida da prestação de serviços à saúde por parte das operadoras de planos privados, firmamos nosso entendimento de que tanto a legislação de tutela do consumidor brasileira quanto a chilena dão apoio para a aplicação da teoria da perda de uma chance nas relações de consumo. 

Com a vênia da falta de espaço para aprofundamento em um ou outro ponto, segue-se a nossa proposta para a efetivação do princípio da reparação integral dos danos suportados pelos consumidores em hipóteses de retardo ou negativa do exercício do direito humano à saúde. 

1. Evolução do instituto da responsabilidade civil

O Direito relaciona-se com temas pujantes que perpassam toda a sua trajetória histórica. Isso ocorre no contexto da complexidade da dinâmica social, em que diversos institutos jurídicos ganham relevância conforme as necessidades dos grupos humanos. Atualmente, ganha destaque o instrumento da responsabilidade civil que se encontra em notável revolução de seus fundamentos, alcance e finalidade. Os desafios contemporâneos que se apresentam são compreender e definir os danos indenizáveis diante das mudanças sociais (ORGAZ, 1960). 

No Direito Romano, de acordo com Cretella Jr. (1993, p. 303-308), avistamos quatro fases do instituto da responsabilidade Civil: 

I)Fase da vingança privada não regulamentada. As vítimas do delito, ou os seus familiares, sem qualquer critério de proporcionalidade, vingavam o mal com o mal, tanto em face do causador do dano, como em detrimento dos parentes do ofensor. 

II)Fase da vingança privada regulamentada. Vigia a lei do Talião. Do olho por olho, dente por dente. Nesse sistema, embora ainda centrado na vingança, surge um critério de proporcionalidade entre o dano e a sanção imposta ao seu autor. 

III)Fase da composição voluntária. Nessa perspectiva, a vítima do dano deparava-se com duas possibilidades: ou optava pela vingança privada, perdendo o direito à indenização pecuniária; ou renunciava o direito à vingança, diante de uma indenização em dinheiro, fixada pelos envolvidos.

IV)Fase da composição legal. Período em que a vingança privada é proibida. A composição passa a ser obrigatória e é realizada sob a intermediação do Poder Público. Esse modelo foi seguido pelos Códigos de Ur-Nammu, de Manu e pela Lei das XII Tábuas (GONÇALVES, 2012, p. 25) e, em período mais avançado, na Lex Aquilia Damnun Injuria Datum (DURANT, 1957, p. 37).

Roma antiga, assim como os sistemas jurídicos contemporâneos, enfrentou desafios para o estabelecimento de regimes de reparação de danos mais razoáveis com os anseios e as necessidades sociais decorrentes da figura do dano. Mas essa busca da adequada amálgama dos instrumentos de reparação de danos com critérios de justiça transpassa fronteiras e sistemas jurídicos. Este é, arriscamos dizer, o grande dilema dos povos.

Os tribunais, atualmente, deparam-se com dificuldades para encontrar a razoável medida para a fixação do quantum nas lides relacionadas a reparações de danos extrapatrimoniais (MENDONÇA, 2012, p. 72/129), fato este que provoca nítida visita recursal destinada à rediscussão dos valores impostos em decisões a quo

Esse desafio da busca pela adequada determinação dos valores a serem objeto de indenização ganha também pertinência quando nos deparamos com demandas centradas em novas concepções de danos indenizáveis. Nessa linha, surge a complexidade do julgamento de lides relacionadas desde danos provocados pela ruptura das relações afetivas, passando por danos pela privação do ato sexual até os danos pelo processo judicial lento (SILVA, 2004; SCHREIBER, 2012). Diante disso, tema de grande relevância é o da responsabilidade civil pela perda de uma chance, na medida em que esta teoria apresenta-nos nova compreensão da natureza do dano indenizável. 

2. Aspectos conceituais da teoria da perda de uma chance

“A História sempre tonteia, diante da questão das origens” (DURANT, 1957, p. 301), motivo pelo qual complexa se mostra a tentativa de determinar a origem exata de um instituto. Mas arriscamos afirmar que a teoria da perda de uma chance tem as suas raízes mais sólidas nos anos de 1960, na França, tendo encontrado bastante receptividade na Itália (CHINDEMI, 2010). A partir daí, com alguma resistência, passou a ser conhecida na Europa e nas Américas. Há países, a exemplo, da Alemanha e Suíça, que não lhe emprestam receptividade. 

Para Cavalieri Filho (2008, p. 75), a perda de uma chance ocorre quando, em decorrência do comportamento do autor do dano, “desaparece a probabilidade de um evento que possibilitaria um benefício futuro para a vítima, como progredir na carreira artística ou militar, arrumar um melhor emprego, deixar de recorrer de uma sentença desfavorável pela falha do advogado, e assim por diante”. Em função disso, a chance perdida é entendida como ataque a probabilidade de se evitar um prejuízo ou a aleatoriedade de se alcançar uma vantagem (LÓPEZ MESA, 2008). 

A seu turno, afirma Medina Alcoz (2007, p. 129): 

a través de ella quiso indemnizarse a quien perdía una oportunidad de victoria en un proceso, concurso o certamen por culpa de un deudor incumplidor. La doctrina se caracterizó así, al inicio de su andadura, por la rapidez de su expansión y la estrechez de su ámbito material de aplicación.

Na teoria da chance perdida, tem-se um dano a ser reparado, embora não estejamos mais diante do clássico binômio dano certo e determinado que, por muito tempo, era o elemento autorizador do dever de reparação (TAMAYO JARAMILLO, 1986), pois o dano indenizável diz respeito à perda da oportunidade na obtenção de resultado aleatório mais benéfico à vítima. Por conta disso, há de se considerar que o resultado pode ou não ocorrer. A referida teoria nos coloca diante de uma probabilidade de se evitarem ou se diminuírem as consequências do dano.

Relativamente à nomenclatura utilizada, há de se considerar que: no Brasil, utilizamos tanto as expressões teoria da perda de uma chance ou teoria da perda de uma oportunidade. Nos países da América Latina, centrados na tradição hispânica, utilizam-se as expressões pérdida de una chance ou pérdida de una oportunidad. Os franceses, protagonistas da teoria, costumam utilizar as seguintes expressões: perte de chances, perte d’ une chance ou chance perdue. Entre os anglo-saxões, optou-se pelas expressões: loss of opportunities, loss of chance ou chance lost. Por fim, os italianos, que recepcionaram com a facilidade a teoria, denominam-na: perdita di chance, perdita di chance ou il danno da perdita di chance.

Observamos em outros ordenamentos jurídicos que o grande desafio dos aplicadores do direito é a determinação do valor a ser indenizado, haja vista que a teoria da perda de uma chance, como vimos, não diz respeito à reparação de dano certo e determinado, conforme a praxe anteriormente considerada (PRÉVOT; CHAIA, 2007). No entanto, este fato não invalida a possibilidade de aplicação da teoria.

A título de exemplos, há de se destacar que, tanto no Chile (TAPIA RODRIGUEZ, 2012) como no Brasil (SILVA, 2013), a jurisprudência e/ou a doutrina passou a reconhecer como dano indenizável a chance perdida pelo cliente em que advogado perde prazo de recurso de decisão que lhe é desfavorável; a chance perdida pelo paciente em decorrência de erro médico ou de atraso no tratamento; a chance perdida pelo estudante em ser aprovado nas provas do concurso público em decorrência de má prestação de serviços de transporte etc.

O mundo cem por cento conectado fomenta o compartilhamento de ideologias jurídicas diversificadas, por vezes em tempo real. Assim, a rápida disseminação da teoria da perda de uma chance coloca a comunidade jurídica, seja ela de viés prático ou acadêmico, diante da urgência de encontrar o ponto de equilíbrio na proposta de adaptação das teorias estrangeiras que ingressam em nosso cotidiano. 

3. A recepção da teoria da perda de uma chance no Brasil e no Chile 

No Brasil e também no Chile, a adoção da responsabilidade civil pela perda de uma chance mostra-se bastante tímida e, em alguns momentos, até mesmo rejeitada pelos técnicos do Direito. Nesse sentido, pouca produção científica e diminuta repercussão jurisprudencial são localizáveis nos referidos países. 

As legislações chilena e brasileira não fazem referência direta à recepção da teoria da perda de oportunidade, de modo que a sua aplicação pelos magistrados se dá por força da construção doutrinária, ainda escassa. Essa dinâmica tem demonstrado a forte natureza da doutrina como fonte do Direito. 

Não obstante a lenta recepção da teoria, encontramos no Brasil e no Chile brilhantes trabalhos monográficos destinados a promover a compreensão da perda de uma chance no âmbito dos respectivos países. Cite-se, por exemplo, no Chile: Tapia Rodriguez (2012) e Quivira Passalacqua (2013), No Brasil: Silva (2013) e Savi (2006). 

No âmbito da saúde, a teoria da perda de uma chance é bastante preciosa, sobretudo quando nos deparamos com planos privados de assistência à saúde que, por arbitrariedade, recusam ou chegam a demorar na liberação do atendimento clínico e/ou laboratorial aos pacientes-consumidores. Esse fato é corriqueiro no Brasil, o que promove uma série de ações judiciais para impor o adequado atendimento do paciente (SALAZAR; GROU, 2009). 

A recusa ou morosidade injustificadas no tratamento são capazes de trazer prejuízos irreparáveis aos consumidores dos serviços de saúde, podendo, como sabemos, acarretar até mesmo a morte do paciente. Em tais casos, a referida arbitrariedade provoca a redução das chances de cura ou de sucesso no tratamento. A esse respeito, o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor garante ao consumidor atendimento eficiente em todos os serviços relacionados à saúde. Ocorrendo dano pela desídia no atendimento, os prestadores estão sujeitos à devida reparação (RIZZATTO NUNES, 2015). 

No Brasil, o CDC determina que é direito básico do consumidor ver-se indenizado integralmente pelos danos suportados nas relações de consumo (art. 6o, VI), incluindo, segundo entendemos, espaço para cogitar-se a aplicação da teoria da perda de uma chance. Indenização integral, por óbvio, engloba também os danos clássicos e os novos danos, não ficando de lado a incidência reparabilidade das chances perdidas. 

Por outro lado, no Chile, a Ley no 19.496/97 (art. 3o, “e”) impõe que é direito básico dos consumidores a reparação adequada e oportuna de todos os danos suportados pelos consumidores. Por conta disso, temos sustentado que a legislação chilena de proteção dos consumidores, a exemplo do que ocorre no Brasil, também admite a aplicação da teoria da perda de uma chance no rol dos danos indenizáveis no âmbito das relações de consumo.

A tentativa de negar a aplicação da teoria da perda de uma chance, tanto no Direito Positivo brasileiro, como no chileno, põe à calva uma opção antidemocrática de reduzir o conteúdo prático da expressão direito à reparação integral dos danos constante nos regulamentos dos referidos países que, de modo expresso, optaram pelo estabelecimento de políticas legislativas rígidas para a tutela dos consumidores de produtos e serviços, incluindo os relativos à saúde. 

Conclusão

O retardo ou a negativa indevidos de adequada prestação de serviços de saúde, por parte das operadoras de planos privados de assistência à saúde, pode apresentar-se como virulento instrumento para violação de direito básico do consumidor. Em decorrência disso, o fornecedor é legalmente obrigado a promover a indenização integral dos danos suportados pelos consumidores. 

Neste artigo, demonstramos que as legislações brasileiras e chilenas de proteção dos consumidores, abrem a oportunidade para a aplicação da teoria da perda de uma chance com vistas à condenação dos entes econômicos que atuam no mercado de saúde privada. Com a aplicação da referida teoria, o direito à saúde ganha a sua efetiva relevância na dura realidade social chilena e também brasileira. 

A todos os leitores, saúde!

Referências Bibliográficas ___________________________________

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008. 

CHINDEMI, Domenico. Il danno da perdita di chance. Milão: Giuffré, 2010.

CRETELLA JR., José. Curso de direito romano. São Paulo: Saraiva, 1993. 

DURANT, Will. História da civilização: nossa herança oriental. 4. ed. Trad. Gulnara de Moraes Lobato. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1957. t. 1.

LÓPEZ MESA, Marcelo J. Responsabilidad civil médica y pérdida da chance de curación. Revista de Derecho de Daños. I. ed. Buenos Aires/Argentina: Rubinzal-Culzoni, 2008. p. 7-52.

MEDINA ALCOZ, Luis. La teoría de la pérdida de oportunidad. Madrid/España: Aranzadi, 2007.

MENDONÇA, Diogo Naves. Análise econômica da responsabilidade civil: o dano e a sua quantificação. São Paulo: Atlas, 2012.

QUIVIRA PASSALACQUA, Mônica. La perdida de la chance como daño indemnizable. Chile: Circulo Legal, 2013. 

SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil por perda de uma chance. São Paulo: Atlas, 2006.

SILVA, Ivan de Oliveira. A morosidade processual e a responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Pillares, 2004.

ORGAZ, Alfredo. El daño resarcible. Buenos Aires/Argentina: Bibliográfica Argentina, 1960. 

PRÉVOT, Juan Manuel; CHAIA, Rubén Albert. Pérdida de chance de curación. 1. ed. Buenos Aires/Argentina: Astrea, 2007.

RIZZATTO NUNES, L. Antonio. Curso de direito do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2015.

SALAZAR, Andrea Lazzarini; GROU, Karina Bozola. A defesa da saúde em juízo: teoria e prática. São Paulo: Verbatim, 2009.

SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2012.

TAMAYO JARAMILLO, Javier. De la responsabilidad civil: de los perjuicios y su indemnización. 1. ed. Bogotá/Colombia: Temis, 1986.