20 ANOS DA CONSTITUIÇÃO o desafio da assunção da perspectiva interna da cidadania na tarefa de concretização dos direitos

30 de abril de 2010

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I. Introdução

Levar a Constituição a sério, acreditamos, é a melhor forma de comemorarmos os seus vinte anos. Portanto, cabe-nos tematizar o processo de implementação na vida cotidiana do seu projeto normativo coletivo de construção de uma sociedade justa, fraterna e democrática, bem como os obstáculos encontrados. Necessariamente, para que esse projeto possa dar certo, ele há que permanecer complexo, plural e aberto para o futuro. Após mais de meia centena de emendas que, no mais das vezes, apenas explicitam o que já se encontrava implícito na Constituição, esperamos que o tempo da crença ingênua em um texto que, por si só, pudesse nos salvar de nós mesmos tenha se exaurido. Talvez tenha chegado a hora de a questão subjacente à ilusória e paradoxal esperança de encontrarmos um texto que dispensasse a nossa responsabilidade para com ele ser finalmente invertida do avesso e, tornada visível a falácia, ter lugar a formulação de indagações e desafios mais produtivos.

A crença em que a simples literalidade do texto constitucional dispensaria intérpretes e que seria algo capaz de, por si só, determinar o sucesso ou fracasso da vida institucional de um povo é por demais simplória. Já há muito sabemos que textos constitucionais por si sós nada ou muito pouco significam. O problema dos textos é e sempre será o de qual aplicação somos capazes de dar a eles. Os textos constitucionais, sintéticos ou analíticos, serão sempre lidos como principiológicos tão só por serem constitucionais, ou seja, em razão mesmo daquilo que constituem. Uma Constituição constitui uma comunidade de princípios que se quer permanente. Uma comunidade de pessoas que se reconhecem reciprocamente como iguais em suas diferenças e livres no igual respeito e consideração que devotam a si próprios enquanto titulares dessas diferenças.

Nesse artigo discutiremos alguns aspectos relevantes na atual compreensão sobre a aplicação do direito entendido como ordenamento de princípios. Na parte II trataremos da discussão sobre a natureza interna ou externa dos limites entre direitos, contrapondo-nos à concepção axiológica de conflito de valores. Na parte III retomaremos o embate entre as teorias de Isaiah Berlin e Ronald Dworkin quanto ao pluralismo moral. Na parte IV traremos reflexões referentes a recentes discussões na doutrina e na prática jurisdicional brasileiras em torno das ideias de conflito e de abuso de direitos, para então delinearmos uma breve conclusão na parte V.

II. Limites internos e externos e o “conflito de valores”

Valendo-se da teoria de Robert Alexy, Gilmar Mendes (2004, p. 25) expõe concepções concorrentes quanto à relação entre direito individual e restrição. Para a teoria externa os direitos podem ser, a princípio, ilimitados, sendo que sua conformação com o restante do ordenamento jurídico se daria mediante restrições externas ao próprio direito. Já segundo a teoria interna direitos individuais e restrições não seriam categorias autônomas, mas o próprio conteúdo dos direitos implicaria em limites inerentes ao seu conceito, e não em restrições externas. Para o autor:

Se se considerar que os direitos individuais consagram posições definitivas (Regras: Regel), então é inevitável a aplicação da teoria interna. Ao contrário, se se entender que eles definem apenas posições prima facie (prima facie Positionen: princípios), então há de se considerar correta a teoria externa. (MENDES, 2004, p. 26)

Também com base em Alexy, Mendes (2004, p. 32) aponta problemas numa teoria de interpretação que reduza o papel do legislador a simplesmente declarar o que já se encontra positivado nos direitos fundamentais, confirmando o juízo de ponderação feito pelo constituinte, sendo que, de fato, para o autor, autênticas limitações aos direitos individuais são realizadas pelo legislador — limitações externas.

Marca-se aqui a diferença entre as denominadas teorias interna e externa das limitações a direitos. Pois da perspectiva interna a diferença entre limitação e (re)definição de sentido carece de força explicativa, desde que respeitada a integridade do Direito, parâmetro que marca a diferença entre interpretação constitucional e abuso de direito. Além disso, ao menos no âmbito dos direitos fundamentais, a tensão entre abstração e concretude inerente aos princípios de conteúdo universal torna as atividades de criação e interpretação internamente complementares, visto que a densificação desses princípios pela via legislativa — e, guardadas as especificidades do discurso de aplicação, também pela via judicial — envolve tanto a confirmação da garantia fundamental quanto inovação no complexo quadro do ordenamento jurídico. Isso porque numa concepção principiológica da ordem constitucional a distinção entre direitos enumerados e não-enumerados (DWORKIN, 1992, P. 381-432) se revela problemática, pois a abertura semântica inerente à complexidade plural do constitucionalismo moderno não nos permite traçar uma moldura interpretativa do conteúdo dos direitos fundamentais como numerus clausus.

É a integridade do direito, no exercício hermenêutico que se volta tanto para o passado quanto para o futuro, que marcará a diferença entre densificação e descumprimento dos princípios fundamentais, especialmente mediante a capacidade e a sensibilidade do intérprete de, no processo de densificação e concretização normativas, diante de uma situação concreta de aplicação, impor normas que se mostrem adequadas a reger essa situação de modo a dar pleno curso ao Direito em sua integridade, a reforçar a crença na efetividade da comunidade de princípios. Mesmo em um contexto de filosofia da linguagem, em que os supostos se assentam em termos discursivos e não mais em uma suposta estrutura da consciência humana, é o critério kantiano de legitimidade normativa, o imperativo categórico, a requerer como condição de validade da norma a sua universalidade, que continua a ser o critério basilar nos discursos de elaboração legislativa ou de justificação normativa, apenas que agora traduzido em termos discursivos: “legítimas são as normas passíveis de serem aceitas por todos os seus potenciais afetados”. Ainda que uma norma passe por esse crivo, isso não mais significa que ela deva ser aplicada a todos os casos em que aparentemente poderia se aplicar segundo a alegação dos próprios envolvidos. Ao contrário, como veremos, a legitimidade ou a constitucionalidade de uma norma não significa, por si só, que pretensões abusivas não possam ser levantadas em relação à sua aplicação aos casos concretos. Por isso mesmo, embora o uso abusivo e instrumental do direito seja sempre possível, encontramo-nos hoje em condições de exigir, na prática, que pretensões desse tipo não mais possam encontrar guarida sob o Direito, reforçando a postura interna do cidadão que assume os seus direitos como condição de possibilidade da própria comunidade de princípios fundada no igual respeito e consideração devido a todos os seus membros.

O problema central da chamada teoria externa é conceber os direitos como a princípio ilimitados, carecedores de atos externos legislativos ou judiciais para lhes emprestar limites, de forma constitutiva. Ora, mesmo no silêncio do texto ,qualquer direito, inclusive os clássicos direitos individuais, só pode ser compreendido adequadamente como parte de um ordenamento complexo.

Toda nossa experiência histórica acumulada, o aprendizado duramente vivido desde o alvorecer da Modernidade não mais nos permite reforçar a crença ingênua, por exemplo, de que os direitos “de primeira geração”, originalmente afirmados no marco do paradigma constitucional liberal como egoísmos anteriores à vida social, ainda possam ser validamente compreendidos como simples limites à ação, enfocados da pura perspectiva externa do observador.

Essa mesma vivência geracional permite que, no pano de fundo de compreensão que compartilhamos, encontre-se disponível para nós a condição de vermos a possibilidade de que pretensões abusivas em relação a direitos genérica e abstratamente prefigurados em lei tendam a ser levantadas nos casos concretos, na vida cotidiana, precisamente na tentativa de, a partir da perspectiva de um observador externo que apenas deseja obter vantagens a qualquer custo, acobertar ações que, se, a primeira vista poderiam passar como o simples exercício de um direito, na verdade, já seriam condenáveis e não admissíveis pelo próprio Direito quando considerado em seu todo, em sua integridade. Pregar, por exemplo, a eliminação ou mesmo a discriminação de pessoas simplesmente por serem portadoras de determinadas características supostamente raciais não é exercício do direito de liberdade de expressão, é preconceito que, em nosso ordenamento é crime, e mais, crime imprescritível. Exigir que a secretária executiva cumpra o dever legal de fidelidade ao seu chefe não a exime de (e muito menos a obriga a) ser cúmplice de um desfalque, de um peculato ou mesmo de um assassinato.

É que, na modernidade, a edição de normas gerais, hoje sabemos bem, não elimina o problema do Direito, tal como ansiado nos dois paradigmas anteriores e neles vivencialmente negado, mas, pelo contrário, o inaugura. O problema do Direito moderno, agora claramente visível graças à vivência acumulada, é exatamente o enfrentamento consistente do desafio de se aplicar adequadamente normas gerais e abstratas a situações de vida sempre individualizadas e concretas, à denominada situação de aplicação, sempre única e irrepetível por definição. O Direito moderno, enquanto conjunto de normas gerais e abstratas, torna a sociedade mais e não menos complexa. Complexidade que envolve uma faceta que não mais pode se confundir com o exercício legítimo de direitos, a das pretensões abusivas que a mera edição em texto do direito na forma de norma geral e abstrata incentiva. E isso porque ela (a norma) pode e tende a ser enfocada também da perspectiva de um mero observador interessado em sempre levar vantagem, o que vem ressaltar um aspecto central que hoje reveste os direitos fundamentais enquanto princípios constitucionais fundantes de uma comunidade de pessoas que se reconhecem como reciprocamente merecedores de igual respeito e consideração em todas as situações de vida concreta em que se encontrem e que Konrad Hesse denominou a “força irradiadora dos princípios”.

Assim é que é precisamente a visibilidade dessa força irradiadora dos princípios que nos habilita a lidar de forma consistente com as pretensões abusivas enquanto tais, não mais as confundindo com o regular exercício de direitos. Não somente não é suficiente tomarmos os direitos como meros limites, mas torna-se clara agora a exigência dworkiana de que sempre sejam levados a sério, ou seja, de que sempre sejam considerados como condição de possibilidade da liberdade. Esse conteúdo moral do Direito só pode ter curso quando assumido da perspectiva interna do participante, do cidadão. Muito embora, é claro, o conteúdo moral do Direito não o transforme em moral, pois continua a operar como Direito (visando regular o comportamento externo das pessoas e não as suas crenças internas), deve ser levado a sério no terreno dos discursos de aplicação pois permite tratar de forma consistente as pretensões abusivas, buscando coibir e não incentivar o uso estratégico do Direito, que se mostra agora claramente como um uso contrário ao próprio Direito, como um abuso, um atentado contra a mesma comunidade de princípios que Direito institui, viabiliza e pela integridade da qual deve zelar.

A tensão entre público e privado perpassa qualquer direito, seja individual, coletivo ou difuso. Isso compõe o pano de fundo do estágio histórico da nossa compreensão dos direitos, e se torna indisponível quando da atribuição de sentido a um direito como o de propriedade. Independente de menção expressa na Constituição, todo direito individual deve cumprir uma função social, e isso integra internamente seu próprio sentido para que possa ser plausível.

Essa leitura principiológica e sistêmica exigida pela chamada teoria interna exerce força explicativa mesmo para Mendes que, embora advogue a concepção externa de restrições, não raro afirma interpretações que levam em conta os requisitos de uma hermenêutica atenta ao sentido imanente dos princípios num paradigma constitucional democrático, para além das previsões textuais. É o que se verifica em sua leitura do inciso LXVI do art. 5° da Constituição[1]:

No que se refere à liberdade provisória, também optou o constituinte, aparentemente, por conferir amplo poder discricionário ao legislador, autorizando que este defina os casos em que seria aplicável o instituto. É quase certo que a expressão literal aqui é má conselheira e que todo o modelo de proteção à liberdade instituído pela Constituição recomende uma leitura invertida, segundo a qual haverá de ser admitida a liberdade provisória, com ou sem fiança, salvo em casos excepcionais, especialmente definidos pelo legislador. (MENDES, 2004, p. 34-35)

Ora, qual o caráter externo da limitação da restrição da liberdade provisória, senão o próprio sentido (interno) dessa garantia no contexto constitucional democrático, como densificação dos princípios da liberdade e da igualdade? Naturalmente não nos referimos a esse caráter interno como algo ontológico, transcendente, meta-social ou metalinguístico, visto que a natureza dinâmica de qualquer semântica, especialmente das normas, se tornou patente após a virada linguístico-pragmática empreendida pela Filosofia em meados do século XX, cujos efeitos se espraiam por todos os campos do saber. É claro que essa atribuição de sentido às normas é externa a elas, no sentido de que só os intérpretes podem lhes atribuir. Mas isso não faz com que o sentido constitucionalmente adequado seja, em face de todo o ordenamento, externo.

Quanto aos direitos fundamentais sem expressa previsão de reserva legal, afirma Mendes (2004, p. 40) que “também nesses direitos vislumbra-se o perigo de conflitos em razão de abusos perpetrados por eventuais titulares de direitos fundamentais.” Mas, estando o legislador a princípio impedido de “limitar” tais direitos, de forma a coibir abusos, as “colisões de direitos” ou “entre valores” poderiam ser impedidas mediante o excepcional apelo “à unidade da Constituição e à sua ordem de valores”, segundo interpretação da Corte Constitucional alemã. (MENDES, 2004, p. 40)

Se, por outro lado, adotarmos a concepção segundo a qual nenhum direito constitucional é a princípio “ilimitado”, em face da própria Constituição, a tarefa interpretativa a ser adotada por qualquer aplicador, do legislador ao administrador, passando pelo juiz, implicará necessariamente em atribuições de sentido conformadoras do conteúdo normativo, sem que isso implique, entretanto, em redução do “âmbito de proteção”. O direito, entendido em sua integridade, não pode se voltar contra o próprio direito. Por isso a figura da colisão não retrata de maneira plausível a tensão imanente ao ordenamento jurídico. Além disso, é de se lembrar que abusos de pretensões a direitos existirão independentemente de regulação legislativa, não podendo jamais ser definitivamente coibidos em abstrato. Aliás, é precisamente a regulação legislativa abstrata que por si só há que ser vista como incentivadora de abusos. Apenas num discurso de aplicação que leve a sério as especificidades de cada caso concreto as ilegítimas pretensões a direitos, calcadas inclusive em previsões legais literais, poderão ser desveladas como abusos, como não direito.

Mais uma vez a distinção entre discursos de justificação e discursos de aplicação é central para que possamos compreender adequadamente o próprio sentido (e os “limites”) de qualquer direito. Normas gerais e abstratas não são capazes, por si só, de coibir a chamada fraudem legis, como já percebia Ferrara:

Com efeito, o mecanismo da fraude consiste na observância formal do ditame da lei, e na violação substancial do seu espírito: tanturn sententiam offendit et verba reservat. O fraudante, pela combinação de meios indirectos, procura atingir o mesmo resultado ou pelo menos um resultado equivalente ao proibido; todavia, como a lei deve entender-se não segundo o seu teor literal, mas no seu conteúdo espiritual, porque a disposição quer realizar um fim e não a forma em que ele pode manifestar-se, já se vê que, racionalmente interpretada, a proibição deve negar eficácia também àqueles outros meios que em outra forma tendem a conseguir aquele efeito. (FERRARA, 1963, p. 151)

III. Pluralismo moral

Isaiah Berlin, um dos principais pensadores liberais do século XX, defende uma concepção de princípios (enquanto “valores morais”) onde se verifica uma permanente e irreconciliável incompatibilidade, o que forçaria a sociedade a lidar, necessariamente, com o sacrifício de princípios:

Claro é que os valores podem colidir. Valores podem facilmente colidir no âmago de um único indivíduo. E disso não se segue que alguns devam ser verdadeiros e outros falsos. Tanto a liberdade quanto a igualdade estão entre os principais objetivos perseguidos pelos seres humanos através dos séculos. Mas a liberdade total para os lobos é a morte para os cordeiros. Essas colisões de valores estão em sua essência, e na essência do que somos. (…) Alguns dentre os maiores bens não podem conviver. Essa é uma verdade conceitual. Estamos condenados a escolher, e cada escolha pode trazer uma perda irreparável.[2] (BERLIN, apud DWORKIN, 2006, p. 106)

Contra Berlin, Dworkin busca defender o tipo de “ideal holístico”, de “perfect whole” condenado por aquele com sendo sintoma de uma “perigosa imaturidade moral e política”. Berlin (2002, p. 175) fala de uma “tendência natural” da maioria dos pensadores a acreditar que tudo aquilo que eles consideram bom deve estar conectado ou ser compatível, sendo que a história pode nos brindar com diversos exemplos da união artificial de valores, especialmente no fomento de uma união política contra inimigos em comum. Quanto à dimensão do “perigo”, adverte Dworkin:

Assim como tiranos buscaram justificar terríveis crimes apelando à ideia de que todos os valores morais e políticos se juntam em alguma visão harmônica de grande importância transcendente, de tal sorte que a seu serviço o assassinato seja justificado, também outros crimes morais foram justificados com apelo à ideia oposta, de que valores políticos importantes necessariamente entram em conflito, que nenhuma escolha entre eles pode ser defendida como a única correta, e que, portanto, são inevitáveis sacrifícios de coisas que consideramos de grande importância.[3] (DWORKIN, 2006b, p. 106)

Para Dworkin a ideia de conflito de valores tem servido no discurso político e no senso comum como justificativa para a manutenção de desigualdades sociais, já que qualquer medida igualitária (por exemplo, de redistribuição ou realocação de recursos por meio de tributos) implicaria, segundo essa visão, numa “invasão” na esfera da liberdade. Além disso, o “pluralismo de valores” pode ter efeito legitimador sobre práticas de desrespeito aos direitos humanos no plano internacional, sob o argumento de que cada sociedade escolhe os valores que busca priorizar, e que qualquer interferência quanto a isso seria um ato de imperialismo. (DWORKIN, 2006b, p. 106)

Mas os argumentos de Isaiah Berlin, reconhece Dworkin, são mais complexos e persuasivos que os lugares-comuns antropológicos tão difundidos atualmente no “pós-modernismo”, que repetem o chavão de que cada sociedade se organiza em torno de valores diferentes, o que costuma se somar ao argumento cético sobre a implausibilidade de se afirmarem valores como “objetivos”. Para Berlin há valores que se possa considerar como “objetivos”, mas tais “true values” entram em conflito de forma insolúvel, conflitos esses não apenas entre as divergentes percepções ou opiniões subjetivas sobre o sentido dos valores, mas intrinsecamente entre os valores mesmos.

Cada coisa é o que é: liberdade é liberdade, e não igualdade, ou equidade, ou justiça ou cultura, ou felicidade humana ou uma consciência tranquila. Se a minha liberdade, ou de minha classe ou nação, depende da miséria de vários outros seres humanos, o sistema que a promove é injusto e imoral. Mas se eu reduzo ou perco a minha liberdade de modo a minimizar a vergonha de tal desigualdade, e com isso não aumento materialmente a liberdade individual de outros, uma perda absoluta de liberdade ocorre. Isso pode ser compensado por um ganho em justiça, em felicidade ou em paz, mas a perda remanesce, e é uma confusão de valores dizer que apesar de a minha liberdade individual “liberal” ser sacrificada, algum outro tipo de liberdade — “social” ou “econômica” — é incrementado. Entretanto, é verdade que a liberdade de alguns deve às vezes ser restringida para assegurar a liberdade de outros. Com base em que princípio isso deve ser feito? Se a liberdade é um valor sagrado, intocável, não pode haver tal princípio. Um ou outro desses princípios ou regras em conflito deve, em qualquer grau na prática, ceder: nem sempre por razões que possam ser claramente enunciadas, quanto mais generalizadas em regras ou máximas universais. Ainda assim, um compromisso prático deve ser encontrado”.[4] (BERLIN, 2002, p. 172-173)

Para Berlin, portanto, os conflitos não são apenas contingentes, pois são consequência da própria estrutura ou conceito dos valores, de tal sorte que o ideal de harmonia não é apenas inatingível, é incoerente, já que fazer valer um valor implicaria necessariamente no compromisso ou abandono de outro (DWORKIN, 2006b, p. 108). E se estamos tratando de valores essenciais, como igualdade e liberdade, qualquer decisão política implicaria não apenas em desapontar algumas expectativas em proveito de outras, mas na violação de direitos de pessoas, sendo inevitável, na visão de Berlin, que uma comunidade política falhará, irremediavelmente, em suas responsabilidades, de uma forma ou de outra (DWORKIN, 2006b, p. 109). Seu argumento não é o da incerteza, ou seja, de que muitas vezes não sabemos qual a decisão correta a se tomar, mas o de que muitas vezes sabemos que nenhuma decisão é correta. (DWORKIN, 2006b, p. 110)

IV. Conflito de pretensões e abuso de direito

Vera Karam de Chueiri, referindo-se como exemplo a dois princípios expressamente albergados pela Constituição brasileira, compartilha também a noção de incompatibilidade entre princípios contrários, o que levaria necessariamente a disputa para além da arena jurídica e à impossibilidade de se chegar a uma decisão juridicamente correta:

A correção da resposta correta de Hércules pode também se revelar problemática pelo fato de que a coerência ou integridade requerida do sistema jurídico comumente não pode ser alcançada por meio do modelo interpretativo pensado por Dworkin. É possível que, em face de princípios que não sejam coerentes entre si, por exemplo, entre o princípio da propriedade privada e o princípio da função social da propriedade, Hércules não conseguisse construir uma resposta coerente, pondo em risco a ideia de certeza do direito e o requisito de aplicação legítima do direito (nos termos postos por Dworkin), já que ele teria que buscar uma resposta fora do sistema jurídico, nas lutas travadas na arena política.[5] (CHUEIRI, 2005, p. 216)

Assim como Berlin, e com base na teoria agonística[6] de Chantal Mouffe, Chueiri parece desconsiderar a diferença qualitativa existente entre os conflitos de valores políticos e a tensão entre normas própria dos princípios jurídicos e morais. Por certo se levarmos em consideração os interesses em jogo em disputas como a do exemplo apresentado pela autora — entre latifundiários e trabalhadores sem-terra —, dificilmente poderemos encontrar compatibilidade entre eles, já que claramente se antagonizam. Essa é uma das principais diferenças entre o Direito e a Moral: o direito não pode exigir que se adote a perspectiva interna e cooperativa das normas, possibilitando sempre que as atitudes sejam guiadas pragmaticamente por interesses, embora mantenha como requisito de legitimidade a possibilidade de sua obediência por simples respeito às normas, mas não mais que a possibilidade. Fica claro mais uma vez o problema de se considerar normas jurídicas como equivalentes a interesses ou valores. Semelhante é a leitura de Gilmar Mendes, referindo-se à jurisprudência da Corte Constitucional alemã, quanto a relação entre direitos e interesses em se tratando de conflitos como esse:

Como acentuado pelo Bundesverfassungsgericht, a faculdade confiada ao legislador de regular o direito de propriedade obriga-o a “compatibilizar o espaço de liberdade do indivíduo no âmbito da ordem de propriedade com o interesse da comunidade”. Essa necessidade de ponderação entre o interesse individual e o interesse da comunidade é, todavia, comum a todos os direitos fundamentais, não sendo uma especificidade do direito de propriedade. (MENDES, 2004, p. 20)

É próprio da esfera normativa deontológica, especialmente no caso do direito, o requisito de se lidar com normas em permanente tensão sem que isso implique em contradição. Não se trata, aqui, de uma questão puramente semântica: valores e normas acarretam tarefas interpretativas diversas, exigindo das instituições sociais tratamento diverso. Conflitos de valores e interesses requerem mediações e soluções institucionais que devem levar necessariamente em consideração argumentos de política, por meio de discursos pragmáticos e ético-políticos (como, por exemplo, em políticas públicas de reforma agrária levadas a efeito pela administração).

Já a exegese a ser dada aos princípios da propriedade privada e da função social da propriedade, em discursos de aplicação próprios da atividade judicial, não equivale a um juízo de preferência sobre interesses conflitantes, mas na busca do sentido que, diante das especificidades do caso concreto e da complexidade normativa envolvida, ofereça uma resposta coerente com o ordenamento. No caso, verifica-se que desde o esgotamento do paradigma constitucional liberal os direitos privados, como o da propriedade, não implicam em pleno direito ao egoísmo, como se os interesses, ou melhor, os direitos individuais, coletivos e difusos de todos os demais membros da coletividade não impusessem condições para seu exercício legítimo.

Dessa forma, devemos interpretar ambos os princípios sempre em cotejo um com o outro, de tal sorte que, de um lado, o direito individual de propriedade não possa ser validamente compreendido de forma a inviabilizar sua função social — daí a previsão constitucional de taxação progressiva de propriedades improdutivas[7], por exemplo —, e, de outro, o direito da coletividade de atribuir funções socialmente relevantes aos bens apropriáveis não possa desconsiderar a propriedade particular — não é outro o sentido, por exemplo, da exigência constitucional de indenização em caso de desapropriação[8]. Mais uma vez a diferença entre argumentos de princípio e argumentos de política revela-se fundamental para a compreensão do papel e dos limites da atividade governamental diante do interesse dos cidadãos:

A maioria dos atos legítimos de qualquer governo envolve a negociação de interesses de diferentes pessoas; tais atos beneficiam alguns cidadãos e desfavorecem outros para que se incremente o bem-estar da comunidade como um todo. (…) Mas certos interesses de pessoas em particular são tão importantes que seria errado — moralmente errado — que a comunidade os sacrificasse apenas para assegurar um benefício generalizado. Direitos políticos demarcam e protegem esses interesses particularmente importantes. Um direito político, podemos dizer, é um trunfo sobre o tipo de argumento de negociação que normalmente justifica a ação política.[9] (DWORKIN, 2006a, p. 31)

A fundamentação de uma decisão vazada em termos de conflitos de direitos, reduzidos a meros valores, ou seja, não expressa em termos de pretensões controversas em relação a direitos que seriam indisponíveis, embora enquanto descrição inadequada possa conduzir a decisões que anulem direitos em favor de preferências pessoais do julgador, não impede, por si só, que a decisão tomada seja a decisão correta. A decisão do Habeas Corpus 82425/RS (BRASIL 2003), conhecido como “Caso Ellwanger”, ilustra bem essas hipóteses. A discussão girou em torno da aplicação de princípios e, na tradição do STF, buscou-se realizar uma argumentação baseada na “ponderação” ou “balanceamento” de valores, tanto por parte da maioria (especialmente no voto do Ministro Gilmar Mendes) quanto da minoria (em especial o Ministro Marco Aurélio).

Estabelecendo os argumentos que prevaleceriam na decisão final, o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, buscou se basear no princípio da proporcionalidade para a construção de sua fundamentação. Analisando complexa e sistemicamente o ordenamento jurídico, com especial atenção aos instrumentos internacionais subscritos pelo Brasil, conclui o Ministro pela inviabilidade de se atribuir interpretação outra à Constituição:

Assim não vejo como se atribuir ao texto constitucional significado diverso, isto é, que o conceito jurídico de racismo não se divorcia do conceito histórico, sociológico e cultural assente em referências supostamente raciais, aqui incluído o anti-semitismo. (BRASIL, 2003)

Mas o Ministro identifica como um problema de conflito entre direitos as pretensões controversas das partes, na medida em que “a discriminação racial levada a efeito pelo exercício da liberdade de expressão compromete um dos pilares do sistema democrático, a própria ideia de igualdade” (BRASIL, 2003), e menciona decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos onde, com a aplicação do princípio da proporcionalidade, se confrontou a liberdade de expressão com a proibição de abuso de direito, tendo prevalecido, no caso, a liberdade de expressão.

Cabe o questionamento sobre a adequação dessa descrição do problema. Trata-se de um conflito entre direitos, ou de um conflito entre pretensões e interesses? O exercício legítimo de um direito, como o da liberdade de expressão, pode configurar, ao mesmo tempo, uma violação de direitos, uma ilegalidade? Nesse sentido é a crítica de Marcelo Cattoni:

Afinal, ou nós estamos diante de uma conduta ilícita, abusiva, criminosa, ou, então, do exercício regular, e não abusivo, de um direito. (…) Como é que uma conduta pode ser considerada, ao mesmo tempo, como lícita (o exercício de um direito à liberdade de expressão) e como ilícita (crime de racismo, que viola a dignidade humana), sem quebrar o caráter deontológico, normativo, do Direito? Como se houvesse uma conduta meio lícita, meio ilícita? (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006, p. 7)

Apesar da terminologia utilizada pelo Ministro em sua fundamentação, entendemos que seus argumentos se mostram sólidos da perspectiva da justiça como correção normativa. A própria leitura do sentido a ser atribuído como constitucionalmente válido à liberdade de expressão é coerente com as exigências do ordenamento jurídico em sua integridade:

Não se contesta, por certo, a proteção conferida pelo constituinte à liberdade de expressão. Não se pode negar, outrossim, o seu significado inexcedível para o sistema democrático. Todavia, é inegável que essa liberdade não alcança a intolerância racial e o estímulo à violência, tal como afirmado no acórdão condenatório. (BRASIL, 2003)

A mesma postura se percebe na passagem de Martin Kriele transcrita no voto, ao evidenciar a conexão interna entre direitos fundamentais e democracia:

O uso da liberdade que prejudica e finalmente destrói a liberdade de outros não está protegido pelo direito fundamental. Se faz parte dos fins de um direito assegurar as condições para uma democracia, então o uso dessa liberdade que elimina tais condições não está protegido pelo direito fundamental. (KRIELE, 1980, p. 474, apud BRASIL, 2003)

V. Conclusão

A revisita à nossa história institucional recente nos autoriza, assim, a afirmar a potencialidade democrática presente no incremento dos fragmentos de racionalidade que têm informado decisões, também no âmbito do Judiciário. Pois, apesar da descrição expressa em suas fundamentações, essas decisões revelam-se como as únicas corretas no sentido dworkiano, ou seja, são capazes de impedir o abuso e de coibir a tendência ao uso abusivo e meramente instrumental do Direito, fazendo dos direitos fundamentais condicionantes das políticas públicas.  Aspecto que fortalece decisivamente as possibilidades de consolidação de uma democracia, ainda que “inesperada,” para usar o termo de Bernardo Sorj (2004), ao fornecer plausibilidade à exigência do igual respeito e consideração devidos a todos os membros da comunidade jurídico-política inaugurada em 5 de outubro 1988 e ressignificada recorrentemente consoante o disposto no § 2o do seu art 5o.

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Referências Bibliográficas

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BRASIL. HC 82424/RS. Habeas Corpus. Publicação de livros: anti-semitismo. Crime imprescritível. Conceituação. Abrangência constitucional. Limites. Ordem denegada. Relator orig.: Min. Moreira Alves. Relator para o acórdão: Min. Maurício Corrêa. www.stf.gov.br, Supremo Tribunal Federal, 2003.

CHUEIRI, Vera Karam de. “Before the law: philosophy and literature (the experience of that which one cannot experience)”. Graduate Faculty of Political and Social Science. New York, New School University. Ph.D.: 262, 2004

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SORJ, Bernardo.  “A democracia inesperada: cidadania, direitos humanos e desigualdade social”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.


[1] “Ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir liberdade provisória, com ou sem fiança;” BRASIL (1988). Constituição da República Federativa do Brasil

[2] What is clear is that values can clash. Values may easily clash within the breast of a single individual. And it does not follow that some must be true and other false. Both liberty and equality are among the primary goals pursued by human beings through many centuries. But total liberty for the wolves is death to the lambs. These collisions of value are the essence of what they are and what we are. (…) Some among the great goods cannot live together. That is a conceptual truth. We are doomed to choose, and every choice may entail an irreparable loss. (Tradução livre)

[3] Just as tyrants have tried to justify great crimes by appealing to the idea that all moral and political values come together in some harmonious vision so transcendently important that murder is justified in its service, so other moral crimes have been justified by appeal to the opposite idea, that important political values necessarily conflict, that no choice among these can be defended as the only right choice, and that sacrifices in some of the things we care about are therefore inevitable. (Tradução livre)

[4] Everything is what it is: liberty is liberty, not equality or fairness or justice or culture, or human happiness or a quiet conscience. If the liberty of myself or my class or nation depends on the misery of a number of other human beings, the system which promotes this is unjust and immoral. But if I curtail or lose my freedom in order to lessen the shame of such inequality, and do not thereby materially increase the individual liberty of others, an absolute loss of liberty occurs. This may be compensated for by a gain in justice or in happiness or in peace, but the loss remains, and it is a confusion of values to say that although my ‘liberal’, individual freedom may go by the board, some other kind of freedom – ‘social’ or ‘economic’ – is increased. Yet it remains true that the freedom of some must at times be curtailed to secure the freedom of others. Upon what principle should this be done? If freedom is a sacred, untouchable value, there can be no such principle. One or other of these conflicting rules or principles must, at any rate in practice, yield: not always for reasons which can be clearly stated, let alone generalized into rules or universal maxims. Still, a practical compromise has to be found.

[5] The rightness of Hercules’ right answer can also be problematic by the fact that the required coherence or integrity of the system of law is not often achieved by means of the interpretive model thought by Dworkin. It is possible that in face of principles that are not coherent among themselves, for instance, between the principle of private property and the principle of property’s social function, Hercules could fail in constructing a coherent answer jeopardizing the idea of legal certainty and the claim to a legitimate application of law (in the terms put by Dworkin), as far as he would have to look for an answer outside the legal system, in the struggles that take place in the political arena.

[6] “Uma abordagem que revele a impossibilidade de se estabelecer um consenso sem exclusão é de fundamental importância para a política democrática. Ao nos alertar contra a ilusão de que uma democracia plenamente realizada pudesse ser materializada, ela nos força a manter viva a contestação democrática. Uma abordagem democrática ‘agonística’ é capaz de perceber a verdadeira natureza de suas fronteiras e reconhece as formas de exclusão que elas incorporam, ao invés de tentar disfarçá-las sob o véu de racionalidade ou moralidade”. MOUFFE (1999, p. 757), grifamos. An aproach that reveals the impossibility of establishing a consensus without exclusion is of fundamental importance for democratic politics. By warning us against the illusion that a fully achieved democracy could ever be instantiated, it forces us to keep the democratic contestation alive. An ‘agonistic’ democratic approach acknowledges the real nature of its frontiers and recognizes the forms of exclusion that they embody, instead of trying to disguise them under the veil of rationality or morality.

[7] Art. 153, §4o, I da Constituição da República.

[8] Art 5o, XXIV da Constituição da República.

[9] Most legitimate acts of any government involve trade-offs of different people’s interests; these acts benefit some citizens and disadvantage others in order to improve the community’s well-being as a whole. (…) But certain interests of particular people are so important that it would be wrong – morally wrong – for the community to sacrifice those interests just to secure an overall benefit. Political rights mark off and protect these particularly important interests. A political right, we may say, is a trump over the kind of trade-off argument that normally justifies political action.