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A ruptura da affectio societatis e o princípio da preservação da empresa

30 de junho de 2010

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Como magistrada de comarca situada no interior do Estado do Rio de Janeiro, São João da Barra, sinceramente não imaginava voltar meus pensamentos para o direito societário, até o dia em que me vi escrevendo sobre isso, por força do crescente desenvolvimento econômico da região onde exerço meu ofício.

Saltou-me aos olhos o instituto da affectio societatis, imprescindível na constituição e na dissolução das sociedades empresariais.

Isso porque me restava a certeza de que cabia a mim, no exercício das funções como Magistrada, fazer os jurisdicionados entenderem o verdadeiro sentido da affectio societatis, sintetizada em confiança, harmonia, fidelidade e respeito mútuo entre os sócios.

E mais (talvez o mais difícil): fazê-los compreender que, possivelmente, a ruptura da affectio não acarretaria a dissolução da sociedade, em que pese o rigorismo legislativo, pois imperiosa a manutenção de empregos, arrecadação de tributos e desenvolvimento econômico do país.

Encontrei respaldo, em especial, na doutrina de Fábio Konder Comparato, Modesto Carvalhosa, Rubens Requião e Fábio Ulhoa Coelho, bem como na jurisprudência.

Atente-se para as lições de Fábio Konder Comparato, in verbis:

Rejeitada pela doutrina moderna, como noção inútil à compreensão do mecanismo das sociedades mercantis, sobretudo das anônimas, a affectio societatis manifesta grande teimosia em sobreviver a essa universal condenação ao silêncio. Ela renasce, com o próprio nome ou outra terminologia, como elemento indefectível de estrutura e funcionamento das sociedades. Mais ainda: ela se instala em campo que tradicionalmente se lhe considera estranho, o das chamadas sociedades de capitais, em manifesta comprovação de sua operatividade, em termos de interpretação jurídica.[1]

Ora, a affectio societatis é um elemento intrínseco ao contrato de sociedade, caracterizado pela intenção dos sócios contratantes em constituir uma sociedade e pela aceitação dos mesmos aos objetivos comuns do negócio, sendo perfeitamente possível a dissolução parcial da sociedade quando a affectio não mais existe em relação a algum deles.

Questão bastante controvertida se instalou no egrégio Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento dos embargos de divergência (EREsp no 111.294-PR), sob a relatoria do Ministro Castro Filho. A matéria posta em debate, e objeto da dissidência, versava sobre a possibilidade de dissolução parcial de sociedade anônima por quebra da affectio societatis, tese defendida pelo acórdão embargado (REsp 111.294/PR, rel. p/ acórdão Min. Cesar Asfor Rocha).

Contrapondo-se a esse entendimento, foi trazido à colação precedente da Terceira Turma (AGA 34.120/SP, rel. Min. Dias Trindade), o qual afirma que: “nas sociedades anônimas não se apresenta possível a aplicação do princípio da dissolução parcial, próprio das sociedades por quota de responsabilidade limitada”. Essa orientação foi também acolhida no julgamento do REsp 419.174/SP, cujo relator foi o Ministro Menezes Direito.

Foi assim que, iniciando o julgamento do aludido recurso, a 2a Seção de Direito Privado, por maioria de votos, rejeitou os embargos de divergência e manteve o entendimento de que é possível a dissolução parcial de sociedade anônima quando houver quebra da affectio societatis, sopesadas as peculiaridades do caso em concreto.

O fundamento para tal decisão foi o seguinte: a premissa de que “as normas e os critérios próprios das sociedades limitadas (intuito personae) não devem ser aplicados às sociedades anônimas” deve ser recebida com temperamentos. Nessa esteira, deve-se lançar mão desses quando o elemento preponderante para a constituição da sociedade anônima foi a afeição pessoal que reinava entre todos os sócios, dado o caráter familiar da sociedade empresarial.

Merece transcrição trecho do segundo voto, relatoria do Ministro Castro Filho, seguido pela maioria:

embora não se discuta que as sociedades anônimas se constituam sociedades de capital, intuito pecuniae, próprio das grandes empresas, em que a pessoa dos sócios não têm papel preponderante, a realidade da economia brasileira revela a existência, em sua grande maioria, de sociedades anônimas de médio e pequeno porte, em regra de capital fechado, que concentram na pessoa de seus sócios um de seus elementos preponderantes.

É o que se verifica com as sociedades ditas familiares, cujas ações circulam entre os seus membros, e que são, por isso, constituídas intuito personae, já que o fator dominante em sua formação é a afinidade e identificação pessoal entre os acionistas, marcadas pela confiança mútua. Em tais circunstâncias, muitas vezes, o que se tem, na prática, é uma sociedade limitada travestida de sociedade anônima, sendo, por conseguinte, equivocado querer generalizar as sociedades anônimas em um único grupo, com características rígidas e bem definidas.

Nessa linha de entendimento, observa Rubens Requião que, hodiernamente, “não se tem mais constrangimento em afirmar que a sociedade anônima fechada é constituída nitidamente com intuito personae. Sua concepção não se prende exclusivamente à formação do capital desconsiderando a qualidade pessoal dos sócios. Em nosso país, com efeito, prevalece sociedade anônima constituída tendo em vista o caráter pessoal dos sócios, ou a sua qualidade de parentesco, e por isso chamada de sociedade anônima familiar.” E a seguir conclui: “A affectio societatis surge nessas sociedades com toda nitidez, como em qualquer outra das sociedades de tipo personalista. Seus interesses estão, pois, regulados pelo contrato, o que explica a pouca ingerência da fiscalização de órgãos públicos em seus negócios”. (“Curso de Direito Comercial”, vol. II, 1982, Ed. Saraiva, 11. ed., p. 28).

Em casos que tais, porquanto reconhecida a existência da affectio societatis como fator preponderante na constituição da empresa, não pode tal circunstância ser desconsiderada por ocasião de sua dissolução. Do contrário, e de que é exemplo a hipótese em tela, a ruptura da affectio societatis representa verdadeiro impedimento a que a companhia continue a realizar o seu fim, com a obtenção de lucros e distribuição de dividendos, em consonância com o artigo 206, II, “b”, da Lei no 6.404/76, já que dificilmente pode prosperar uma sociedade em que a confiança, a harmonia, a fidelidade e o respeito mútuo entre os seus sócios tenham sido rompidos.

Em sentido contrário, a divergência vem consubstanciada no entendimento de que, em regra, a possibilidade de dissolução parcial, com a consequente apuração de haveres dos sócios dissidentes, é incompatível com esse tipo de sociedade (anônima), porque própria tal iniciativa das sociedades de pessoas e na sociedade por cotas.

A meu sentir, a regra da dissolução parcial, acaso não acolhida pela jurisprudência, em nada aproveitaria aos valores sociais envolvidos, no que diz respeito à preservação de empregos, arrecadação de tributos e desenvolvimento econômico do país.

Assim, vem decidindo o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Pelas juridicidades de suas razões, colaciona-se ementa do acórdão da Terceira Câmara Cível, sob a relatoria do ilustre Desembargador Antonio Eduardo F. Duarte, in verbis:

Societário. Civil e Processual Civil. Ação de rito ordinário. Holding. Sociedade anônima de capital fechado. Existência de geração de lucros. Ausência de distribuição por razão justificada. Dissolução parcial. Perda da affectio societatis. Apuração de haveres através do real valor do ativo e do passivo. Sócios minoritários. Admissibilidade na hipótese. Manutenção da sentença. Recursos desprovidos.

As sociedades “holding”, sobretudo as de capital fechado, cujo objetivo primordial é o de controlar outras sociedades, não visam à produção ou circulação de mercadorias e serviços, e frequentemente são constituídas de modo a atender ao interesse comum e particular de seus sócios, possibilitando uma melhor organização da estrutura social, o que as tornam, portanto, mais próximas das sociedades de pessoas do que das típicas sociedades de capital.

Via de consequência, a dissolução parcial de sociedade dessa espécie atende não apenas o aspecto do interesse social na continuidade da empresa, mas também a posição dos acionistas minoritários dissidentes, na medida em que, sem a ação de dissolução (a parcial), não teriam eles como se desfazerem de suas participações acionárias, ficando submetidos à vontade dos acionistas controladores, já que dificilmente poderá interessar a terceiro.

Tendo em vista as peculiaridades do caso concreto, em que se está a tratar de sociedade anônima holding de capital fechado, mostra-se viável o deferimento da dissolução parcial postulada, em conformidade com a melhor doutrina e jurisprudência, especificamente quando se verifica que já restou suficientemente caracterizada a quebra da affectio societatis, devendo a correspondente apuração de haveres acontecer através da definição do real valor do ativo e do passivo. (Apelação Cível no 6.659/2007, DJ de 19.10.2007)

Sendo assim, conclui-se que o rigorismo legislativo deve ceder lugar para a materialização do princípio da preservação da empresa, cuja solução para a ruptura da affectio societatis é a dissolução parcial da sociedade, a permitir a retirada dos sócios dissidentes, após a devida apuração de haveres.

Tal posição, a meu ver, coaduna-se com o papel político que o magistrado deve exercer, o qual, na condição de agente público, deve se utilizar de sua parcela de poder para atingir certos objetivos sociais.

Termino citando Dalmo de Abreu Dallari, em “O Poder dos Juízes” (Editora Saraiva, 3. Ed., página 92), para quem “(…) o juiz não decide nem ordena como indivíduo e sim na condição de agente público, que tem uma parcela de poder discricionário, bem como de responsabilidade e de poder de coação, para a consecução de certos objetivos sociais. Daí vem sua força. (…)”


[1] COMPARATO, Fábio Konder. “Novos Ensaios e Pareceres de Direito Empresarial”. São Paulo: Forense, 1981.