prorrogação de permissões

30 de junho de 2009

Compartilhe:

No debate acirrado que tem sido travado acerca da prorrogação das permissões dos serviços de transporte coletivo de passageiros por ônibus, em especial dos serviços do Município do Rio de Janeiro, verifica-se que há defensores da chamada prorrogação por motivos plausíveis, enquanto outros sustentam que deve haver licitação da execução de aproximadamente 420 linhas daquele município.
Há bons argumentos nas duas posições, havendo ponto comum entre elas: a licitação.
Nesse caso, não se pode olvidar que raras são as situações em que boas razões que militam a favor de uma solução não sejam contrabalançadas por razões mais ou menos boas, em favor de solução diferente. Aqui também ocorre tal fato.
A apreciação do valor dessas razões — que muito raramente pode ser reduzida a um cálculo, um peso ou uma medida — é que pode variar de um indivíduo para outro e sublinha o cunho pessoal da decisão tomada.
Daí reconhecer-se o caráter de relatividade do raciocínio jurídico e mesmo do conhecimento.
É preciso, contudo, conhecer essas razões para emitir-se juízo de valor, começando, porém, pela definição dos termos do presente tema.
Assim, a denominação “prorrogação” tem sido utilizada, na hipótese de execução indireta de serviços de transporte coletivo de passageiros, por meio de antigas permissões, por prazo indeterminado, modalidade preferida pelas administrações federal, estaduais e municipais, para delegação desses serviços, nas respectivas áreas de atuação de cada um desses entes federativos.
Nesse sentido, cumpre observar que, até a Constituição de 1988 e mesmo até o advento da Lei Federal nº 8.987/95 (“Lei das Concessões e Permissões”) — que regulamentou o seu art. 175 —, todas essas permissões vigoravam por prazo indeterminado, com a cláusula enquanto bem servir.
Dentre as normas da Lei nº 8.987/95, há previsão de licitação prévia para outorga de permissão para execução indireta de serviços públicos, inclusive os operados, nos planos federal, estadual e municipal, pelas empresas que se dedicam ao transporte remunerado de pessoas.
No entanto, nesse mesmo diploma legal federal, também há regras de transição para disciplinar situações preexistentes à sua criação.
É a partir daí que surge a controvérsia acerca da validade ou não dessas permissões, outorgadas por prazo indeterminado a empresas operadoras de linhas interestaduais, intermunicipais e municipais.
No Município do Rio de Janeiro, v.g., amparado na regra do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 8.987/95, e nas peculiaridades típicas dos serviços públicos de transporte coletivo de passageiros, o legislador municipal resolveu manter as permissões municipais preexistentes a esse diploma legal federal, adaptando-as às normas gerais da referida Lei Federal e conferindo-lhes prazo de 10 (dez) anos para que os investimentos realizados pelas transportadoras fossem amortizados.
Tudo isso ocorreu à semelhança do que havia acontecido com as permissões interestaduais, que foram mantidas pelo prazo de 15 anos, conforme os Decretos federais nº 952/93 e nº 2.521/98, sendo esse o seu paradigma.
Ressalte-se, a propósito, que a Lei Complementar nº 37/98 — a dispor sobre a delegação da prestação de serviços públicos, prevista no art. 175 da Constituição de 1988, e a tratar no seu art. 5º da manutenção e prorrogação das permissões municipais — cumpre, na essência, a regra contida no parágrafo único, do art. 1º, da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, preconizando que “a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios promoverão a revisão e as adaptações necessárias de sua legislação às prescrições desta Lei, buscando atender as peculiaridades das diversas modalidades dos seus serviços”.
Insista-se nesse ponto: foi, em atendimento a esse parágrafo único, do art. 1º, que o referido Município resolveu manter  — e não prorrogar, porque não se podia  prorrogar delegações por prazo indeterminado pela singela razão de que não havia prazo — as permissões preexistentes à Lei nº 8.987/95, por força da regra contida no art. 5º, da Lei Complementar nº 37/98, atendendo as peculiaridades dos serviços de transporte coletivo de passageiros por ônibus.
Tratava-se de antigas permissões, por prazo indeterminado, de linhas de ônibus (com mais de cinquenta anos), originadas da Lei nº 775, de 27 de agosto de 1953, e de normas oriundas do Decreto de execução nº 13.965/58, operadas no território do antigo Distrito Federal sob a égide da Constituição de 1946, que não contemplava qualquer regra acerca da obrigatoriedade da licitação, para delegação da execução indireta de serviços a particulares, através de permissão.
Essa afirmativa de clareza meridiana lastreia-se no princípio do tempus regit actum, segundo o qual é a lei vigente ao tempo em que foi praticado o ato que irá reger e fundamentar toda a sua existência, enquanto produzir efeitos, enquanto detiver eficácia.
Como não se exigia antes da Constituição de 1988 a licitação prévia para a outorga de permissão, nenhum óbice existe, por esse fato, para que continuem a produzir efeitos as mesmas permissões, que continuam a existir, são válidas e eficazes.
Por conseguinte, tais delegações, cujas origens datam de 1953, da Lei nº 775, conforme se ressaltou, não padeciam, até 1988, de qualquer mácula a eivá-las do vício de nulidade, ou mesmo de ilicitude, sendo absolutamente incogitável o argumento de que, com a manutenção e a prorrogação, pretendia-se convalidá-las, como se tem afirmado, sem qualquer respaldo fático ou jurídico.
Aliás, por premissa, se eram válidas, como de fato são, assim, silogisticamente, permaneceram com o advento da Lei Municipal nº 37/98, alterando-se apenas o prazo — que de indeterminado passou a ser determinado —, conforme o seu artigo 5º, em atendimento à regra contida no § 3º, do art. 57, da Lei nº 8.666/93 (“Lei das Licitações”), que veda contrato com prazo de vigência indeterminado.
Noutras palavras, foram as antigas permissões que foram mantidas, não se outorgando nova permissão, como se tenta inculcar.
Não há dois contratos, existe apenas, e tão-somente,  um único contrato, que se protraiu no tempo por prazo determinado durante dez anos, com cláusula de recondução para novo período de dez anos, por força da regra contida no art. 5º, da referida Lei Complementar nº 37/98.
Aliás, também é oportuno salientar, a propósito, que a licitação instaurada no ano passado, para delegar a novas empresas a execução indireta dos serviços de transporte coletivo de passageiros por ônibus desta cidade, em substituição às atuais delegatárias, foi lançada de modo intempestivo.
Com efeito, há processos — através dos quais foram ajuizadas ações civis públicas em face das atuais permissionárias na comarca da capital do Rio de Janeiro — em que o Ministério Público questiona a validade dos títulos dessas transportadoras sob diversos fundamentos, dentre os quais a ausência de prévia licitação.
Não sendo concedida a liminar propugnada pelo MP, conclui-se que as referidas permissões permanecem válidas e eficazes, havendo-se de cumprir o preceito do art. 5º, do mencionado diploma legal municipal, mesmo nos casos em que há sentença, posto que há igualmente inconformismo dotado de efeito suspensivo.
E aí reside a intempestividade da licitação, porquanto, inexistindo decisão judicial definitiva, como de fato ainda inexiste, não há razão para cogitar-se de novas delegações que substituiriam as existentes, que continuam válidas e plenamente eficazes, até que venham a ser desconstituídas.
Todas e tais considerações evidenciam que, indubitavelmente, há boas e sólidas razões a respaldar não somente a manutenção das permissões preexistentes à Lei nº 8.987/95, como também a sua prorrogação, figura contemplada no art. 175 da Lei Fundamental.
Tal, com o devido respeito de quem assim pensa, inocorre em relação à realização de licitação da execução indireta das mencionadas linhas municipais, pois seu principal argumento reside na pretensa ausência de licitação, não somente das antigas permissões como das novas delegações.
Aqui, incorre-se em petição de princípio, pois parte-se de premissa falsa que consiste em sustentar que as antigas permissões deveriam ter sido delegadas através de prévia licitação.
Ora, basta exame nas Constituições anteriores (1946, 1967 e Emenda nº 1/69) para verificar-se que inexiste essa condição para a delegação através de permissão.
Portanto, a conclusão do raciocínio dos que sustentam a necessidade de licitação prévia é inválida, mesmo porque, à época que houve a delegação (a maioria com cerca de 50 anos), sequer havia possibilidade de competição, porquanto eram poucos os que se interessavam ou se dedicavam à operação dessas linhas.
A propósito da prorrogação, há de se aduzir ainda que, conforme já se destacou, no art. 5º há previsão de cláusula de prorrogação da permissão por igual período, tituladas pelas transportadoras municipais.
Como se percebe, essa cláusula de prorrogação seria, obviamente, parte constante do contrato administrativo de permissão, que, contudo, não chegou a ser firmado entre o Município do Rio de Janeiro e as transportadoras.
No entanto, ainda que não haja sido formalizado o contrato administrativo, não pereceu o direito de cada permissionária municipal à manutenção da sua permissão — pelo período de dez anos — de 24 de agosto de 1998 a 24 de agosto de 2008 — assim como da sua prorrogação, porque esse direito tem como fonte formal a regra do art. 5º, da Lei Complementar nº 37/98.
Registre-se, por oportuno, que essa cláusula de prorrogação é também condicionante de um bom desempenho da delegatária, no sentido de bom atendimento ao interesse público, aqui materializado pela prestação de um serviço adequado aos usuários, pois essa pode ser, numa interpretação lógica, a razão relevante para a não-prorrogação.
Sem dúvida, a relevância da razão há de ser aquela sem a qual a permissão não será prorrogada, não sendo outra senão a que está ligada à boa execução dos serviços sob o ponto de vista qualitativo e quantitativo.
Naturalmente, a não-prorrogação funciona aqui como uma sanção pela má qualidade dos serviços, indissociável à sua prestação.
Pois bem, essas permissões municipais, portanto, possuem uma norma de conduta e uma norma punitiva, ambas as partes integrantes das permissões mantidas, na Lei Complementar nº 37, em seu art. 5º, das cláusulas geradoras de obrigações para o poder concedente municipal e para as transportadoras.
Ora, se a prorrogação é parte da permissão, integra suas cláusulas, compõe as condições pactuadas, o prazo da permissão é aquele dele constante mais o da prorrogação; o que vale dizer, prazo corrente mais prazo de prorrogação são os prazos fixados na Lei Complementar nº 37/98 (art. 5º), observados por este Município e as transportadoras municipais.
Há, neste caso, como afirma o saudoso Orlando Gomes, a recondução expressa, onde a cláusula de prorrogação é anterior à extinção do contrato, para que continue a vigorar pelo tempo nela expresso. Os efeitos dessa prorrogação são previstos pela lei no sentido de que o contrato continue por tempo determinado. É o mesmo contrato, apenas dilatado no tempo.
Ora, se tais prazos (corrente + prorrogação) são prazos fixados na lei, à evidência, o art. 5º, da Lei Complementar nº 37/98, cuidou deles para garantir a aplicabilidade.
O direito à prorrogação, se bem prestado o serviço público a que se dispôs a permissionária, tornou-se não uma expectativa de direito, um nada jurídico, mas um direito adquirido — pelo menos enquanto perdurar a regra do art. 5º já referido — só afastável  por um outro direito deste Município, que seria o de não prorrogar, se de má qualidade os serviços prestados pela requerente.
Sendo de boa qualidade e em quantidade que atendesse o usuário municipal, somente caberia a este Município homologar a prorrogação, ou seja, concordar com o pedido de prorrogação, que foi formulado pelas transportadoras municipais, e aguardar o desfecho das demandas ajuizadas pelo MP.
Invoque-se, ainda como boa e relevante razão em prol da prorrogação, a Lei Federal nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que, por força do seu art. 58, incluiu novos parágrafos ao art. 42, da Lei nº 8.987/95, dentre os quais o que prorroga até 2010 as concessões em caráter precário, regra igualmente aplicável às permissões, ante o preceito do parágrafo único, do art. 40, deste último diploma legal.
Conquanto se trate de norma transitória, aplicável tão-somente aos serviços públicos de transporte coletivo interestadual, sendo inaplicável aos estados e municípios, nada impede que esse paradigma seja adotado pelo legislador municipal.
Afinal, como adverte Geraldo Ataliba, “efetivamente, ao legislador é que verdadeiramente incumbe fazer justiça: ele é justo ou injusto ao fazer a lei. Na ordem social, a justiça é virtude do legislador e só subsidiariamente — e na medida em que ele o permita — dos outros órgãos ou pessoas”.
Outro ponto a se destacar no debate judicial das “prorrogações” reside na inadequação das aludidas ações civis públicas, sistematicamente, ajuizadas pelo MP nos diversos municípios deste Estado, a questionar a manutenção das permissões no plano municipal e igualmente no âmbito estadual.
Nesse sentido, tem-se observado, na inicial de cada um dos processos então formados, que os fundamentos jurídicos do pedido de prestação jurisdicional formulado pelo MP de “declaração de nulidade de todos os instrumentos delegatórios, outorgados em cada âmbito”, têm sede, exclusivamente constitucional, mais precisamente nos artigos 37, inciso XXI, e 175 da Constituição de 1988, que exigem a observância de certame licitatório para concessão ou permissão da execução de serviços públicos de um modo geral.
Nota-se que, assim, a causa petendi é única, pois o MP não invoca o contraste de dispositivo de lei municipal, ou mesmo estadual, com qualquer lei infraconstitucional que impusesse ao ente federativo que promoveu a prorrogação normas gerais nessa matéria.
Outra observação é a de que, inexistindo qualquer fundamento jurídico na ação civil pública desfechada pelo MP, a não ser com sede na Constituição da República, verifica-se que não há questão prejudicada ou principal a ser dirimida, somente remanescendo questão prejudicial que, desse modo, se transforma em pedido principal da demanda.
Pode-se, então, concluir que há usurpação de competência do Órgão Especial do Tribunal de Justiça deste Estado, no exercício de controle concentrado de constitucionalidade, previsto no art. 125, § 2º, da Lei Fundamental, com o julgamento pelo Juízo de 1º grau, em sede de declaratória incidental de questão somente aparentemente prejudicial, quando na verdade é a única questão a ser deslindada.
Por via de consequência, neste caso, sendo, como de fato é, a única questão resolvida, a sentença, se for mantida, fará coisa julgada com efeitos erga omnes, à luz da regra contida no art. 16, da Lei nº 7.347/85, possuindo assim efeitos semelhantes ao da ação direta de inconstitucionalidade, ou mesmo representação de inconstitucionalidade, com eficácia geral e irrestrita.
Daí a inadequação, nesta hipótese, da ação civil pública para controle de constitucionalidade.