31 de março de 1964 – IgnomÍnia Sufoco do regime democrático

30 de abril de 2012

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Nesse dia, há 48 anos, um tufão de vergonha e humilhação varreu a Nação brasileira. Traidores da Pátria, da liberdade, da democracia e do Estado de Direito, praticaram a felonia e se conspurcaram no opróbio da indignidade. Tristemente, por meio do presente artigo, relembro esse dia fatídico e humilhante para o Brasil.

Em 31 de março de 1964, exercia a direção de jornalismo na Rádio Marconi, que tinha seus estúdios no 22o andar do prédio, posteriormente implodido, da Rua Santa Tereza, 20, esquina da Praça da Sé, em São Paulo.

A concessão da emissora foi outorgada pelo presidente João Goulart a instâncias de seus amigos e companheiros partidários, para se antepor ao proselitismo de todas as demais emissoras de São Paulo, que sistematicamente eram contra o Governo Federal.

Logo de início, a Rádio foi boicotada pelas agências de propaganda, que, seguindo instruções das grandes empresas, negavam-lhe publicidade.

Diante do fato, e como técnica para ganhar audiência, a emissora passou a transmitir durante as 24 horas do dia apenas músicas, o que a levou, em poucos meses, à liderança de audiência na capital.

No segundo semestre de 1963, os dirigentes sindicais, pressionados pelos trabalhadores e sufocados pela inflação e pelo crescente aumento do custo de vida, passaram a reivindicar aumentos salariais, e, ante a recusa das grandes empresas, começaram a eclodir os grandes movimentos sindicais e a torrente de greves que chegou a paralisar São Paulo.

Motivado pelo movimento das greves, o governador Ademar de Barros, além de reprimir manifestações fazendo uso da força policial nas ruas – espancando e prendendo trabalhadores –, passou a acusar os dirigentes sindicais de comunistas e insufladores das paralisações, inclusive apontando o Governo Federal como interessado na baderna.

E foi em defesa do presidente João Goulart que a emissora demonstrou a realidade da situação social – posicionando-se firmemente e com denodo a favor das reivindicações dos trabalhadores – atuando e criticando com acerbidade o governador Ademar de Barros.

Na véspera do fatídico dia 31 de março, eu e outros companheiros tivemos uma reunião no Sindicato dos Metalúrgicos com o presidente e o vice da instituição, Afonso Delellis e Araújo Plácido, além de outros 50 sindicalistas, face os graves acontecimentos políticos que ocorriam. O encontro terminou por volta das 4h da madrugada.

Na ocasião, residia no Hotel Lord, na Rua das Palmeiras, e por volta das 10h da manhã fui acordado pelo companheiro Dorival de Abreu, que me comunicou acerca da rebelião comandada pelo general Mourão Filho, que havia, com as tropas do exército, se deslocado de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro.

Face o ocorrido, sugeri uma visita ao general Amaury Kruel, então comandante do II Exército, a fim de pedir garantia para o funcionamento da emissora, em face da possibilidade de o governador de São Paulo, Ademar de Barros, cometer a arbitrariedade de intervir, mandar fechar a Rádio e interromper as transmissões, tendo em vista que, ostensivamente, ele já havia se posicionado contra o Governo Federal – conforme seus pronunciamentos públicos.

O general Kruel nos recebeu, ouviu as nossas ponderações e deu garantia de que poderíamos ficar tranquilos e continuar efetuando transmissões, pois, segundo suas palavras: “O Ademar é um fanfarrão e não vai fazer nada”. Diante de sua afirmativa, retiramo-nos e seguimos para a Rádio.

Na emissora, suspendemos a programação e passamos a entrevistar, no Rio de Janeiro – onde o presidente João Goulart se encontrava –, diversos amigos e companheiros, entre os quais, Bocayuva Cunha, Raul Riff, Abelardo Jurema, Lutero Vargas, Samuel Wainer, Yara Vargas, Eloi Dutra, Maria Aragão, Roberto Alves, Sebastião Nery, Raimundo Eirado e o então presidente da UNE, José Serra, entremeando as entrevistas com as notícias que vínhamos recebendo. Fazíamos  comentários sobre os acontecimentos, defendendo, com veemência, a manutenção da ordem e do regime democrático, e consequentemente com críticas acerbas e virulentas aos que se postavam contra o governo constituído.

Com a ida do presidente João Goulart para Brasília, passamos a entrevistar o Chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro e os deputados Almino Afonso, Doutel de Andrade, Mario Covas, Rubens Paiva e o ministro Amaury Silva – todos recriminando a ação subversiva do general Mourão Filho e a participação alarmante, provocativa e golpista do governador da Guanabara, Carlos Lacerda.

Às 19h, o governador Ademar de Barros fez um pronunciamento público através das emissoras de Rádio e Televisão, declarando-se contra o governo do presidente João Goulart, postulando sua deposição e colocando a Polícia Militar do Estado em prontidão, a favor do golpe.

Incontinênti, tentamos contato com o general Kruel, o que resultou inútil, recebendo informações de que ele se deslocara para Resende a fim de encontrar o general Âncora. Comandante do I Exército, para preparar a resistência contra a subversão da ordem.

Logo após, em menos de uma hora, recebemos ligação de Brasília, e Darcy Ribeiro nos informou que o general Kruel, em telefonema ao presidente João Goulart, não tendo conseguido que este atendesse ao seu pedido de colocar a UNE, a CGT e as associações de cabos e sargentos na ilegalidade, abandonou o Presidente, aderindo ao golpe militar. Diante desse fato, João Goulart decidiu se deslocar para Porto Alegre.

Na Rádio, continuamos defendendo com redobrado ânimo e firme propósito a legalidade, o regime constituído e a Democracia, criticando com azedume e acirrados pronunciamentos as atitudes dos golpistas, notadamente os governadores Carlos Lacerda, Ademar de Barros e Magalhães Pinto.

Em consequência das notícias que a Rádio transmitiu, ininterruptamente, começaram a chegar diversos companheiros e adeptos, que vieram emprestar apoio e solidariedade à nossa luta contra os golpistas.

Do Rio de Janeiro, recebemos a notícia enviada por Raimundo Eirado, da UNE, sob a liderança do seu presidente, José Serra, os estudantes preparavam uma passeata em apoio ao governo de João Goulart, às Reformas de Base e contra os pronunciamentos e as manifestações que o governador Carlos Lacerda promovia pela televisão – pregando a deposição do governo de Jango, insuflando os seus adeptos e, com a participação descarada de seus policiais que invadiram a sede da UNE e promoveram sua depredação jogando os móveis na rua e incendiando o prédio.

Do Recife, o líder dos ferroviários e deputado estadual Cláudio Braga, que, em exílio no Uruguai, se tornou secretário particular do presidente João Goulart, relatou – e nós transmitimos pela emissora – que tropas do Exército comandadas pelo general Justino Alves Bastos – que, na véspera, inquirido ao telefone pelo presidente, hipotecou solidariedade e lealdade – haviam cercado o Palácio das Liberdades, exigindo do governador desse estado, Miguel Arraes, a renúncia. Face sua recusa, prendeu-o e o trancafiou no xadrez do Comando Militar.

Entre os visitantes que compareceram à emissora durante a irradiação dos acontecimentos, destacamos os sindicalistas e metalúrgicos Afonso Delellis e Araujo Plácido; Luiz Tenório de Lima, da Federação dos Trabalhadores Agrícolas; José Gonçalves dos Portuários de Santos; o compositor Geraldo Vandré, que, passado algum tempo, encontrei no porão do fétido navio-presídio Raul Soares, no qual sofreram barbaridades vários estudantes das Faculdades de Direito e Filosofia; os escritores Moisés Vinhas, Taibo Cadorniga, Paulo Guilherme Martins, marido da deputada federal Ivete Vargas; o presidente do XI de Agosto, João Miguel; os professores da Universidade de São Paulo, Caio Prado Junior, Mario Schemberg – que, dias após, vieram a ser confinados também no xadrez do DOPS –, e uma quantidade enorme de populares que lotaram os corredores da emissora, emprestando sua adesão e solidariedade ao governo do presidente João Goulart.

Por volta das 22h, recebemos telefonema do deputado federal João Dória, que se encontrava na redação do jornal Última Hora, em São Paulo, nos avisando que do DOPS saíra uma caravana policial em direção aos estúdios da Rádio Marconi, com ordem de tirá-la do ar e lacrar os estúdios. Perguntado se sabia de outras atitudes, como prisões e demais violências, ele não soube nos informar.

A fim de evitar confusão e conflito entre policiais e visitantes, solicitei que estes fossem embora, o que ocorreu; permanecendo na Rádio apenas os profissionais, funcionários e amigos.

Passados 20 minutos, vários policiais chefiados pelo delegado Alcides Cintra – velho conhecido por efetuar determinadas prisões, por motivo de greve, de sindicalistas pelos quais, muitas vezes, interferi solicitando a liberdade – invadiram os estúdios em que, ao microfone, eu, com veemência e orgulho ferido pela insolência, verberava contra as violências que se praticavam. O referido delegado abusivamente deu a ordem: “Em nome do governador Ademar de Barros, determino o encerramento das transmissões”, ao que respondi, travando diálogo, ainda com a emissora no ar: “Venha, então, dizer aos nossos ouvintes a razão e o motivo da arbitrariedade do Sr. Ademar de Barros, mandando invadir uma propriedade privada, autorizada em seu funcionamento pelo Governo Federal”, ele respondeu: “A ordem é para encerrar, portanto encerra! ”

Então, ainda no microfone, pronunciei: “Nós não temos condições de resistir a essa arbitrariedade do governador Ademar de Barros. Vamos encerrar, mas nós voltaremos um dia para continuar a luta em favor da emancipação econômica, política e social da nossa terra! Até a próxima oportunidade!” Em seguida, como anteriormente combinado, sinalizei ao técnico para pôr no ar o Hino Nacional, mas aos primeiros acordes, irritado, o delegado bradou: Eu dei ordem para encerrar, portanto encerra!”, ao que lhe respondi: o hino você não pode interromper”. Ele nada retrucou e o Hino foi tocado até o fim, dando por encerrada as transmissões.

Tirada a Rádio do ar, o delegado deu ordem de prisão para todos que se encontravam na emissora e determinou que aguardássemos instruções que viriam da Secretaria de Segurança. Passados uns 20 minutos, o telefone tocou, ele atendeu e me chamou. “Atenda, que o general Aldévio Lemos quer falar com você”. Atendi, e o general falou: “Aguarda, Orpheu, que o governador quer falar com você”. Esperei alguns minutos e veio a voz fanhosa e conhecida de Ademar: “Saiba, Orpheu, que o Jango foi deposto e já fugiu para o Uruguai. Quero te dar uma chance. Venha para o nosso lado. Eu mando reabrir a Rádio e te nomeio Secretário de Imprensa do Governo do Estado”.

Surpreso com a oferta, respondi: “Dr. Ademar, eu agradeço a deferência e o convite, mas o senhor já viu, alguma vez, em uma partida de futebol, como exemplo o jogo do Corinthians x Palmeira, um jogador trocar a camisa no 2o tempo? Eu agradeço, mas estou impossibilitado de aceitar”. E Ademar respondeu: “Então, não posso fazer nada para te ajudar”. E desligou o telefone.

O delegado Alcides Cintra, logo a seguir, proclamou: “Estão todos presos, vamos para o DOPS”, tendo eu retorquido: “Delegado, não vejo porque prender todos os funcionários. Você assistiu ao telefonema do governador me convidando para aderir. Eu ainda vou refletir sobre a proposta e não vejo razão de prender e levar todos para o DOPS. Os responsáveis pela Rádio e pela posição política somos apenas eu e o Dorival, e, não tenha dúvidas, de que, diante dos fatos e acontecimentos, eu assumirei sozinho toda a responsabilidade das transmissões políticas, e não vejo porque prender o Gil Gomes, que é locutor esportivo e que tem como seu único líder o Pelé, a menos que você queira prendê-lo e deseja se vingar dos gols que o Pelé fez contra o seu time.

Também, porque prender o presidente do XI de Agosto, José Miguel, que está apenas visitando a emissora e não tem nenhuma participação na Rádio? E o Dr. Rivaildo, advogado trabalhista? E os técnicos, locutores comerciais e o jovem repórter Francisco Adalberto Nóbrega, todos sem nenhuma responsabilidade na direção da Rádio? Enfim, não vejo razão para prender pessoas que nada tem a ver com a posição da emissora. Assim, peço que telefone para o general Aldévio, que você constatou ser meu interlocutor com o governador, e o consulte sobre as prisões dos demais, além da minha prisão e do Dorival.” O delegado telefonou e recebeu ordens para levar para o DOPS apenas nós.

No DOPS fomos encaminhados ao gabinete do diretor-geral, Dr. Manoel Ribeiro da Cruz, com quem ficamos conversando sobre os acontecimentos até 4h da manhã do dia 1o de abril, quando ele nos declarou que a revolução, com a queda do presidente João Goulart, estava vitoriosa e decidida, e mandou que fôssemos recolhidos ao xadrez, em que fui registrado como o primeiro preso do fatídico golpe militar perpetrado em São Paulo.

A partir desse acontecimento seguiram-se várias prisões, inclusive no navio-presídio Raul Soares, atracado no estuário do porto de Santos, fatos que serão relatados em livro – em fase de produção – que incluirá situações vividas em épocas nas quais tive participação quando integrava tanto o gabinete do presidente Getúlio Vargas como o do presidente João Goulart.

O livro, já em fase de conclusão, relatará importantes acontecimentos políticos e administrativos dos quais fui participante e testemunha. Quanto às ocorrências nele contidas, terão em vista as importantes personalidades envolvidas da vida pública e privada, e o condão de restabelecer a verdade de muitos fatos públicos e muitas situações  divulgadas com versões totalmente distorcidas e até inverídicas, relacionadas com Eurico Gaspar Dutra, Luiz Carlos Prestes, Plínio Salgado, Oswaldo Aranha, Batista Luzardo, Eduardo Gomes, Zenóbio da Costa, Pedro Aurélio Gois Monteiro, Ademar de Barros, Hugo Borghi, Janio Quadros, José Américo, Juraci Magalhães, Assis Chateaubriant, Julio de Mesquita Filho e outras destacadas figuras da História do Brasil.