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31/03/1964 – Dia de vergonha Nacional! 1º de abril de 1964 – opróbio do regime democrático!

27 de abril de 2015

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incendioEm 31 de março de 1964, exercia a direção de jornalismo na Rádio Marconi, que tinha seus estúdios no 22o andar do prédio da Rua Santa Tereza, no 20, esquina com a Praça da Sé, em São Paulo, posteriormente implodido.

A concessão da Rádio Marconi foi outorgada em 1963 pelo presidente João Goulart, a instâncias de seus amigos e companheiros partidários, para se antepor ao proselitismo de todas as emissoras de São Paulo, que sistematicamente eram contra o Governo Federal.

Logo de início, a rádio foi boicotada pelas agências de propaganda, que, seguindo instruções das grandes empresas, negavam-lhe publicidade.

Diante do fato, e como técnica para ganhar audiência, a emissora passou a transmitir durante as 24 horas do dia apenas músicas, o que a levou, em poucos meses, à liderança de audiência da capital.

No segundo semestre de 1963, os dirigentes sindicais, pressionados pelos trabalhadores – sufocados pela inflação e o crescente aumento do custo de vida –, passaram a reivindicar aumentos salariais, e ante recusa das grandes empresas, começaram a eclodir os grandes movimentos sindicais e a torrente de greves que chegou a paralisar São Paulo.

Motivado pelas grandes greves, o governador Ademar de Barros, além de reprimir manifestações fazendo uso da força policial nas ruas – espancando e prendendo trabalhadores –, passou a acusar os dirigentes sindicais de comunistas e insufladores das paralisações, inclusive apontando o Governo Federal como interessado na baderna.

E foi em defesa do presidente João Goulart que a emissora passou a mostrar a realidade da situação social, posicionando-se firmemente e com denodo a favor das reivindicações dos trabalhadores e, consequentemente, atuar e criticar com acerbidade o governador Ademar de Barros.

Na véspera do fatídico dia 31 de março, tivéramos uma reunião no Sindicato dos Metalúrgicos com o presidente e o vice da instituição, Afonso Delellis e Araújo Plácido, além de outros 50 sindicalistas, face os graves acontecimentos políticos que ocorriam. O encontro terminou por volta das 4h da madrugada.

Na ocasião, eu residia no Hotel Lord, na Rua das Palmeiras, e, por volta das 10h da manhã, fui acordado pelo companheiro Dorival de Abreu, comunicando a rebelião comandada pelo general Mourão Filho, que havia se deslocado, com tropas do exército, de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro.

Face o acontecido, sugeri uma visita ao general Amaury Kruel, então comandante do III Exército, a fim de pedir garantias para o funcionamento da emissora, em face da possibilidade de o governador de São Paulo, Ademar de Barros, cometer a arbitrariedade de intervir, mandar fechar a rádio e interromper as transmissões, tendo em vista que, ostensivamente, ele já havia se posicionado contra o Governo Federal – conforme seus pronunciamentos públicos.

O general Kruel nos recebeu, ouviu as nossas ponderações e deu garantia de que poderíamos ficar tranquilos e continuar transmitindo, pois, segundo suas palavras: “O Ademar é um fanfarrão e não vai fazer nada”. Diante de sua afirmativa, retiramo-nos e seguimos para a Rádio.

Na emissora, suspendemos a programação e passamos a entrevistar no Rio de Janeiro – onde o presidente João Goulart se encontrava – diversos amigos e companheiros, entre os quais, Bocayuva Cunha, Raul Riff, Abelardo Jurema, Lutero Vargas, Samuel Wainer, Yara Vargas, Eloi Dutra, Maria Aragão, Roberto Alves, Sebastião Nery, Raimundo Eirado e o presidente da UNE, José Serra, entremeando as entrevistas com as notícias que vínhamos recebendo. Fazíamos comentários sobre os acontecimentos, defendendo com veemência a manutenção da ordem e do regime democrático, e consequentemente com críticas acerbas e virulentas aos que se postavam contra o governo constituído.

Com a ida do presidente João Goulart para Brasília, passamos a entrevistar o Chefe da Casa Civil Darcy Ribeiro, os deputados Almino Afonso, Doutel de Andrade, Mario Covas, Rubens Paiva e o ministro Amaury Silva – todos recriminando a ação subversiva do general Mourão Filho e a participação alarmante, provocativa e golpista do governador da Guanabara, Carlos Lacerda.

Às 19 horas, o governador Ademar de Barros fez um pronunciamento público através das emissoras de rádio e televisão, declarando-se contra o governo do presidente João Goulart, postulando a sua deposição e colocando a Polícia Militar do Estado em prontidão, a favor do golpe.

Incontinentes tentamos contato com o general Kruel, o que resultou inútil, recebendo informações de que ele se deslocara para Resende a fim de encontrar o general Âncora, comandante do I Exército, para preparar a resistência contra a subversão da ordem.

Logo após, em menos de uma hora, recebemos ligação de Brasília e Darcy Ribeiro nos informou que o general Kruel, em telefonema ao presidente João Goulart, não tendo conseguido que este atendesse ao seu pedido de colocar a UNE, a CGT e as associações de cabos e sargentos na ilegalidade, abandonou o Presidente, aderindo ao golpe militar. Diante desse fato, João Goulart decidiu voar para Porto Alegre.

Na Rádio, continuamos defendendo com desbragado ânimo e firme propósito a legalidade, o regime constituído e a Democracia, criticando com azedume e acirrados pronunciamentos as atitudes dos golpistas, em especial os governadores Carlos Lacerda, Magalhães Pinto e Ademar de Barros.

Em consequência das notícias que a Rádio transmitia ininterruptamente, começaram a chegar diversos companheiros e adeptos, que queriam emprestar apoio e solidariedade à nossa luta contra os golpistas.

Do Rio de Janeiro, chegou-nos a notícia, enviada por Raymundo Eirado, de que da UNE, sob a liderança do seu presidente, José Serra (Eleito senador por São Paulo nas últimas eleições), os estudantes preparavam uma passeata em apoio ao governo de João Goulart, às Reformas de Base e contra os pronunciamentos e manifestações que o governador Carlos Lacerda promovia pela televisão – pregando a deposição do governo de Jango, insuflando os seus adeptos e, com a participação escancarada de seus policiais, que invadiram a sede da UNE e promoveram sua depredação, jogando os móveis na rua e incendiando o prédio.

Do Recife, o líder dos ferroviários e deputado estadual Cláu­­dio Braga (que em exílio no Uruguai se tornou secretário particular do presidente João Goulart) relatou – e nós transmitimos pela emissora – que tropas do Exército comandadas pelo general Justino Alves Bastos – que na véspera, inquirido ao telefone pelo presidente, hipotecou-o solidariedade e lealdade – haviam cercado o Palácio das Liberdades, exigindo do governador desse estado, Miguel Arraes, a renúncia. Face sua recusa, prendeu-o e o trancafiou no xadrez do Comando Militar.

Pouco depois, Cláudio Braga voltou e informou que o Exército havia cercado a Assembléia Legislativa, prendendo vários deputados e pessoas que estavam reunidas naquela Casa, inclusive dando notícia da prisão do deputado federal Gregório Bezerra, que, apesar dos seus 70 anos, foi forçado, praticamente desnudo, apenas com um calção e descalço, a desfilar pelas ruas centrais de Recife, amarrado e puxado por uma corda presa atrás de um jipe do Exército.

Entre os visitantes que compareceram à emissora durante a irradiação dos acontecimentos, destacamos os sindicalistas Afonso Delellis e Araújo Plácido, dos Metalúrgicos; Luiz Tenório de Lima, da Federação dos Trabalhadores Agrícolas; José Gonçalves, dos Portuários de Santos; o compositor e cantor Geraldo Vandré, que, passado algum tempo, encontrei no porão do fétido navio-presídio Raul Soares, onde sofreu barbaridades; vários estudantes das Faculdades de Direito e Filosofia; os escritores Moisés Vinhas, Taibo Cadorniga, Paulo Guilherme Martins, marido da deputada Ivete Vargas; o presidente do “XI de Agosto”, João Miguel, e os professores da Universidade de São Paulo, Caio Prado Junior, Mario Schemberg – que dias após vieram a ser confinados também no xadrez do DOPS – e uma quantidade enorme de populares que lotaram os corredores da emissora, emprestando sua adesão e solidariedade ao governo do presidente João Goulart.

Por volta das 22 horas, recebemos telefonema do deputado federal João Dória, que se encontrava na redação do jornal “Última Hora”, em São Paulo, nos avisando que do DOPS saíra uma caravana policial em direção aos estúdios da Rádio Marconi, com ordens de tirá-la do ar e lacrar os estúdios. Perguntado se sabia de outras atitudes como prisões e demais violências, ele não soube informar-nos.

A fim de evitar confusão e conflito entre policiais e visitantes, solicitei que estes fossem embora, o que ocorreu, permanecendo na rádio apenas os profissionais, funcionários e amigos.

Passados 20 minutos, vários policiais chefiados pelo dele­gado Alcides Cintra – velho conhecido por determinar prisões de sindicalistas por motivo de greve e para os quais, muitas vezes, interferi solicitando a liberdade – invadiram os estúdios onde, ao microfone, eu, com veemência e orgulho ferido pela insolência, verberava contra as violências que se praticavam. O referido delegado abusivamente deu a ordem: “Em nome do governador Ademar de Barros, determino o encerramento das transmissões!”, ao que respondi, travando diálogo, ainda com a emissora no ar: “Venha, então, dizer aos nossos ouvintes a razão e o motivo da arbitrariedade do Sr. Ademar de Barros mandando invadir uma propriedade privada, autorizada em seu funcionamento pelo Governo Federal”. Ele respondeu: “A ordem é para encerrar, portanto, encerra!”

Então, novamente ao microfone, pronunciei: “Nós não temos condições de resistir a essa arbitrariedade do governador Ademar de Barros. Vamos encerrar, mas nós voltaremos um dia para continuar a luta em favor da emancipação econômica, política e social da nossa terra! Até a próxima oportunidade!”

Em seguida, como anteriormente combinado, sinalizei ao técnico para pôr no ar o hino nacional, mas aos primeiros acordes, irritado, o delegado bradou: “Eu dei ordem para encerrar, portanto, encerra!”

Ao que eu lhe respondi: “O hino você não pode interromper”. Ele nada retrucou e o hino foi então tocado até o fim, dando por encerradas as transmissões.

Tirada a rádio do ar, o delegado deu ordem de prisão para todos que se encontravam na emissora e determinou que aguardássemos instruções que viriam da Secretaria de Segurança. Passados uns 20 minutos, o telefone tocou; ele atendeu e me chamou: “Atenda, que o general Aldévio Lemos quer falar com você.” Atendi e o general falou: “Aguarda, Orpheu, que o governador vai falar com você”. Esperei alguns segundos e veio a voz fanhosa e conhecida de Ademar: “Saiba, Orpheu, que o Jango foi deposto pelo Congresso Nacional e já fugiu para o Uruguai. Quero te dar uma chance. Venha para o nosso lado. Eu mando reabrir a rádio e te nomeio Secretário de Imprensa do Governo do Estado.”

Surpreso com a oferta, respondi: “Dr. Ademar, eu agradeço muito a deferência e o convite, mas o senhor já viu alguma vez em uma partida de futebol, como exemplo o jogo entre Corinthians e Palmeiras, um jogador trocar de camisa no 2o tempo? Eu agradeço, mas estou impossibilitado de aceitar.” E Ademar respondeu: “Então não posso fazer nada para te ajudar.” E desligou o telefone.

O delegado Alcides Cintra, logo a seguir, proclamou:
“En­­tão estão todos presos, vamos para o DOPS”, tendo eu retorquido: “Delegado, não vejo porque prender todos os funcionários. Você assistiu ao telefonema do governador me convidando para aderir. Eu ainda vou refletir sobre a proposta e não vejo razão de prender e levar todos para o DOPS. Os responsáveis pela rádio e pela posição política somos apenas eu e o Dorival, e não tenha dúvidas, que diante dos fatos e acontecimentos, eu assumirei sozinho toda a responsabilidade das transmissões políticas, e não vejo porque prender o Gil Gomes, que é locutor esportivo e que tem como seu único líder o Pelé, a menos que você queira prendê-lo por ser são-paulino e deseja se vingar dos gols que o Pelé fez contra o seu time.

Também por que prender o presidente do “XI de Agosto”, João Miguel, que está apenas visitando a emissora e não tem nenhuma participação na rádio? Por que prender o Dr. Rivaildo, advogado trabalhista que também não tem nenhuma ingerência nas transmissões? Por que prender os técnicos, locutores comerciais e o jovem repórter Francisco Adalberto Nóbrega, que não têm nenhuma responsabilidade na direção da rádio? Enfim, eu não vejo razão para prender pessoas que nada têm a ver com a posição política da emissora.

Assim, eu peço que telefone e fale com o secretário de segurança, general Aldévio, que você constatou ser meu interlocutor, e o consulte sobre as prisões dos demais, além da minha pessoal e do Dorival. Eu insisto, porque ainda volto a falar com o governador, e falarei da sua atuação.” Felizmente o delegado Alcides Cintra resolveu telefonar para o general e recebeu ordens para levar para o DOPS “apenas os dois, Orpheu e Dorival”.

No DOPS fomos encaminhados ao gabinete do diretor-geral, Dr. Manuel Ribeiro da Cruz, com quem ficamos conversando sobre os acontecimentos até as 4 horas da manhã do dia 1o de abril, quando ele nos declarou que a revolução, com a queda do presidente João Goulart, estava vitoriosa e deci­di­da, e mandou que fôssemos recolhidos ao xadrez na carceragem do DOPS, onde ficou registrado o jornalista e radialista Orpheu Santos Salles como o primeiro preso do fatídico golpe da subversão ocorrida em São Paulo.

Os acontecimentos que se seguiram nas várias prisões pelas quais passei, inclusive no navio-presídio Raul Soares, estão relatados no livro 10 Anos em Defesa da Justiça e Cidadania – Orpheu Salles: A história retratada em editoriais (2009), que inclui fatos vividos à época, os quais tive participação tanto quando integrava o gabinete do presidente Getúlio Vargas como o do presidente João Goulart, além de assuntos relevantes que foram e continuam sendo deturpados pela mídia com versões que estão muito aquém dos fatos e da verossimilhança.