Conceito de urgência no Direito Constitucional

31 de agosto de 2007

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Homenageamos, no frontispício desta edição, a eminente Ministra Carmem Lúcia, publicista, poliglota, integrante de nossa mais alta Corte de Justiça e intelectual de sensibilidade ímpar, humanista, com aprimorada cultura e notável saber jurídico. Além do merecido pleito à insigne jurista, também nos sentimos gratificados em homenagear nossos esclarecidos leitores com a publicação de parte da magnífica matéria que extraímos da Revista Trimestral de Direito Público, editada no primeiro semestre de 1993, página 233 e seguintes, escrita pela autora em Ouro Preto, na primavera de 199l. *
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Introdução
Vivemos o tempo da urgência. Tempo de homens urgentes. Tempo de horas urgentes. Tudo parece fazer parte de uma corrida louca contra o tempo certo e normal das horas tranqüilas. A normalidade que o Direito deve realizar pela aplicação das normas postas parece não mais conter os elementos que seriam necessários para que as suas finalidades se cumprissem no prazo previsto e positivado.

Ao contrário da assertiva machadiana de ser o tempo escultor vagaroso que não acaba logo e vai polindo ao passar dos longos dias, mais parece ser o nosso tempo rato roedor das coisas, a que se referia o bruxo do Cosme Velho. Roedor implacável e ligeiro, que não se contenta na espera de momento próprio e previsto.

E, se o tempo é de urgência, o que dela dizer quando a matéria estudada é o Direito e a norma jurídica mantém, em sua palavra, a placidez de um tempo sem pressa? Há urgência no Direito? Ou a urgência permite a suspensão de obrigatoriedade do Direito? Alegar urgência basta para que a norma de Direito possa ser subtraída de sua obrigatória aplicação? Quem conceitua, no caso concreto, a urgência no Direito? Quem controla esta conceituação e aplicação?

A constatação da presença do urgente no mundo do Direito revela um muito peculiar momento deste ramo do conhecimento, pois a urgência atropela, por vezes, a lei, cuja aplicação fica a conformar-se à cadência açodada dos fatos acelerados na concretude de um ritmo mais apressado que o previsto na norma a se aplicar. Por vezes, apressado se vê o aplicador da Lei, o realizador da Justiça no caso posto a exame e decisão. Por vezes mesmo, o próprio fautor da lei vê-se no afogadilho de situação premente que não se ajusta à que se antevira para a formulação do Direito Positivo.

A urgência torna-se, às vezes, fonte de um especial Direito, às vezes mesmo atalho para a transgressão do Direito.

Às vezes, a urgência tem a cor ou o discurso da crise. Às vezes, a crise é que toma o contorno ou a voz da urgência. Às vezes, a urgência é prevista ou previsível. Às vezes, dela não cogitou o legislador. Às vezes, o julgador constata a urgência. Às vezes, ele a discute. Às vezes, ele não se crê em condições de discuti-Ia.

Afinal, se vivemos em um tempo em que tudo parece urgente e, se nossa vida é sempre porejada de tantas urgências, como se conceitua a urgência e qual o papel deste conceito no Direito Público?

Certamente, esta é tarefa que não se comporta nos estreitos limites de estudo tão modesto e breve quanto o que aqui se faz. Tudo o que pretendo, entretanto, é argüir questões que angustiam o estudioso ou o que tem como ofício a prática do Direito.

Para tanto, cumpre-me buscar o conceito jurídico da urgência, sua caracterização, elementos e natureza, a vinculação entre urgência e exceção no Direito, seu assentamento normativo no Direito Público Brasileiro, a prática que em seu nome ou sob seu fundamento se tem feito, bem como as formas de controle sobre os comportamentos tidos como embasados em razões de urgência são praticados.

Urgência é conceito que suscita: idéia de rapidez além do ordinário e necessidade a demandar esta celeridade incontida na feitura ou desempenho regular da situação de que se cuide.

Urgente é o que não pode esperar sem que prejuízo se tenha pelo vagar ou que benefício se perca pela lentidão do comportamento regular, demasiado lerdo para a precisão que emergiu.

No Direito, o conceito de urgência não refoge a estas idéias que se alocam na definição leiga da palavra. Também o conteúdo jurídico da palavra urgência contém quer o sentido de tempo exíguo e memento imediato, de um lado, quer a idéia de necessidade especial e premente, de outro.

Urgência jurídica é, pois, a situação que ultrapassa a definição normativa regular de desempenho ordinário das funções do Poder Público pela premência de que se reveste e pela imperiosidade de atendimento da hipótese abordada, a demandar, assim, uma conduta especial em relação àquela que se nutre da normalidade aprazada institucionalmente.

A urgência conta, portanto, com dois elementos: o primeiro relativo ao tempo para a prática legislativa, administrativa ou judicial em questão e a segunda a uma necessidade a ser neste prazo suprida.

Em Direito, a urgência corresponde a um açodamento que suplanta e substitui por uma outra a situação prevista para o desempenho regular das funções do Estado. Este desempenho é sempre previsto pelo Direito Positivo. O mesmo não se pode dizer da urgência. Esta pode ser prevista, ou não, podendo mesmo ocorrer que seja imprevisível consoante se verá abaixo. Nada disto modifica as conseqüências da constatação da urgência, cujos cuidados, tratamento e solução, quando for o caso, será responsabilidade do Poder Público.

Parece-me certo ser a urgência situação que sempre sobrevém a uma circunstância inicialmente visualizada e cuidada, fazendo com que ao primeiro comando normativo, o qual trata do fluxo normal dos atos de condução dos poderes públicos e respectivas funções, aflore um novo comando. Àquele primeiro que contém a regra de Direito sobre a situação descrita em sua normalidade agrega-se outra, expressa, ou não, anteriormente, a qual excepcionaliza a aplicação da primeira quando advier situação de urgência.

Tenho, pois, que, além do elemento tempo, o qual se apressa quanto ao desempenho do Poder Público em relação ao decurso previsto para a normalidade dos provimentos públicos, e do elemento necessidade, que denota o conteúdo da situação concreta sobre a qual o prazo de desempenho da função pública em questão é acelerado, deve caracterizar esta, sempre, a objetiva manifestação no caso concreto, a gravidade nele obviada e a excepcionalidade da circunstância.Quero dizer, pois, que, ao lado da situação regularmente prevista para o que se considera o desenvolvimento ordinário de funções estatais, a urgência impõe uma norma ou um comportamento público que subtrai, extraordinariamente, a aplicação daquela primeira, substituindo-a por outra de maior tensão e força impositiva. Esta substituição somente terá legitimidade quando se manifestar a necessidade que altera a dinâmica temporal para a adoção do comportamento estatal, acelerando-o. Conseqüência imediata desta constatação é que a urgência jurídica é sempre situação transitória, precária, passageira.

Não me parece, pois, que a alegação de urgência no Direito ou em situação normanda juridicamente ou submetida aos parâmetros jurídicos possa ser apreciada apenas pelo fator tempo subjetiva e exclusivamente pensado por um agente político ou administrativo. O fator tempo incidindo de forma especial pelo apressamento dos prazos inicialmente pensados e postos nas normas jurídicas em dada hipótese concreta, na qual se projete uma necessidade objetivamente amparada pelo Direito, é que fará existente, ou não, a situação de urgência no Direito.

No Direito Constitucional, bem como no Direito Administrativo, a necessidade que pode caracterizar situação de urgência, vale dizer, em que os prazos de comportamentos estatais são abreviados pela demanda concreta, há que ser sempre pública, vale dizer, voltada ao interesse público concreto e demonstrável.

Quando a Constituição ou a lei determina “em caso de urgência”, deve-se ler: “na hipótese de ocorrer situação de necessidade pública que determine comportamento estatal em prazo mais rápido que o previsto para a situação de normalidade …”. O sentido a se atribuir à rapidez, aqui, será sempre oferecido pela redução do prazo ou tempo antevisto para a situação de normalidade. Se este puder ser cumprido sem o comprometimento do bem público que se pretende – ou que se tem que – proteger e realizar (seja impedindo ou fazendo cessar o prejuízo público identificável, seja prestando o benefício que constitua o interesse público imediato), não se terá situação de urgência no domínio do Direito Público. Não se terá, então, nem a necessidade pública, nem a condição de sua imperiosa realização pelo encurtamento do prazo previsto para o comportamento estatal legítimo. Assim, a positivação requer, para se fazer uso da figura da urgência no Direito Constitucional e no Direito Administrativo, fundamentalmente, que a necessidade pública determinadora de comportamento estatal específico somente possa ser atendida mediante conduta imediata e incompossível com a espera que a observância de prazos regulares imporia em condição de regularidade.

Questão mais difícil é a da natureza da urgência jurídica, aqui considerada aquela que se manifesta em situação dada à solução pelo Direito.

Não obstante encontrar-se no Direito a alegação de urgência, o desenlace de caso constituído ou solucionado segundo o fundamento de sua constatação, tangenciando, pois, direta e marcantemente, a criação e aplicação das normas jurídicas e dos provimentos estatais em geral, tem-se afirmado, com alguma freqüência, cuidar-se a urgência, nesta hipótese, de “conceito político”.[1]

 

O Conceito de urgência no Direito Constitucional
O Direito Constitucional não desconhece que se têm que prever, no ordenamento jurídico, situações de necessidade que poderiam sobrevir e requerer, então, comportamentos rápidos e especiais para fazer face aos reclamos da sociedade em tais circunstâncias.

Como as competências dos poderes públicos são previstas e sua natureza vinculante é indubitável, qualquer alteração e, especialmente, qualquer alargamento delas somente pode advir de situação expressamente prevista em seus termos ou em suas condições de aceitabilidade jurídica. Fora isso, haverá abuso e não uso de competência legal. Haverá exorbitância da área de atuação regular por parte do agente que invista em competência sem respaldo normativo ou que exerça à margem ou além dos limites definidos legalmente para seu desempenho.

Cabem aqui ressalvas sobre estes dois tópicos importantes na apreciação do tema da urgência: preliminarmente, cumpre examinar-se e explicitar-se que ela acarreta sempre uma ampliação de competências e, em segundo lugar, é mister verificar se a hipóteses sobre a qual ela pode incidir tem que ser prevista ou, de menos, previsível nos termos da norma posta.

Sobre a primeira indagação argüida, é mister ressaltar que a urgência determina sempre uma alteração no exercício de competências normativamente postas, quer quanto à titularidade da competência, quer quanto ao exercício de determinada atribuição, quer, finalmente, quanto à forma desse exercício.

Quanto à alteração da titularidade de dada competência, há de se realçar ter que ser esta modifi0cação expressa, para ser válida, além de ser esta transferência provisória, suficiente e controlável em todos os seus termos e execução. Provisória porque somente prevalecerá enquanto durar a situação de necessidade anormalmente realizável pelo agente público investido na condição excepcional de atuação; suficiente porque, se a transferência de titularidade para o desempenho deste outro agente ou órgão não for bastante a sanear a circunstância acometida de instabilidade extraordinária e nefasta ao interesse público imediato, a transferência não se justifica satisfatoriamente, pelo que a condição de excepcionalidade não encontra fundamento no ordenamento posto; controlável, por ser a urgência aqui vislumbrada como circunstância excepcional, mas integrante e integradora do sistema jurídico ao qual incumbe aperfeiçoar a idéia de Justiça pensada, logo, na perspectiva democrática sob a qual se focam os institutos no Estado submetido ao Direito legitimamente posto e aplicado, não cabe esfera de arbítrio possível e inexpugnável ao toque analítico e decisivo do agente, órgão ou poder controlador.

Exemplo desta hipótese é a que se dá nos casos de intervenção federal nos Estados ou dos Estados nos Municípios, nos quais a caiba a nomeação de interventor (art. 36, §1º, da Constituição da República do Brasil).

No que atina ao exercício de determinada competência, é de se vislumbrar aqui a suposição de se manter a titularidade e ampliar-se esta competência, entregando-se o seu exercício concorrente ou alternativamente, sempre em caráter extraordinário, a outro agente, órgão ou poder.

Nesta situação, não há afastamento do titular originário, o qual mantém-se em sua condição. O que há é uma ampliação momentânea e específica dos agentes legitimados a exerceram-na, sendo que o executor extraordinário subsume-se às condições que a natureza da urgência impõe e sobre as quais antes discorremos brevemente.

Isto é o que ocorre, por exemplo, quando a competência para inovar a ordem jurídica por meio da criação de normas genéricas e obrigatórias, entregues regularmente à competência dos órgãos componentes do Poder Legislativo, é confiada à atribuição excepcional e precária do titular do Poder Executivo “em casos de urgência”.[2]

Finalmente, quanto à terceira interrogação, é de se esclarecer que, eventualmente, não se tem, pela constatação da urgência e deflagração da celeridade comportamental pública que a necessidade específica impõe, uma modificação do titular ou do executor do cometimento público, mas tão-somente uma condição especial em seu processamento ou execução. Esta condição corresponde, exatamente, ao elemento tempo, abreviado em razão da extraordinariedade alegada e demonstrada.

Assim, a urgência neste caso produz efeitos na formalização do processo ou na dinâmica do procedimento adotado pelo agente público competente.

Exemplo deste quadro pode ser encontrado na declaração de urgência que acompanha projeto de lei de iniciativa do titular do Poder Executivo encaminhado ao Poder Legislativo, onde o processo legislativo tem lugar. A solicitação de urgência que acompanha projeto de lei de iniciativa do titular do Poder Executivo encaminhado ao Poder Legislativo, onde o processo legislativo tem lugar. A solicitação de urgência, no sistema constitucional brasileiro e sob o modelo vislumbrado, determinará a apreciação do projeto pelo Poder Legislativo em prazo mais exíguo e, eventualmente, em caráter preferencial sobre os demais projetos de lei em geral.[3]

Observa-se, pois, que a urgência define uma via ou instrumentalização jurídica diversa para o comportamento estatal de que se cuide em dada espécie. Esta via altera a competência, quer em sua extensão ordinária, quer em sua forma de exercício. Em geral, a urgência amplia a competência. Sempre, modifica-lhe o conteúdo ou a forma.

Referente à questão da urgência prevista ou previsível no sistema constitucional, cabem algumas observações para o claro equacionamento da situação jurídica por ela determinada.

Inicialmente, há que se registrar que os sistemas jurídicos e, principalmente, os sistemas constitucionais, referem-se, expressamente, a condições de urgência em algumas passagens.

Nestas, a Constituição cuida de especificar elementos que, acoplados e analisados sistematicamente, conformam o contingente e o continente da urgência apresentada.

Pode, entretanto, ocorrer que não se tenha expresso na norma constitucional a situação de urgência. Duas situações podem ocorrer neste particular: ou a situação não foi prevista, embora fosse previsível; ou na imprevisibilidade nos limites do humano em face dos dados da realidade momentânea de uma sociedade.

No princípio alvitre, tem-se que, se a situação era previsível, mas sobre ela deixou de expressar-se o constituinte, é de se buscar saber se a ausência de previsão decorreu de eleição livre e denegatória do acolhimento da urgência para a situação, caso em que ela, em princípio, não será admitida juridicamente.

Nesse caso, considerar-se-á que a necessidade que deflagraria a redução do prazo procedimental dos poderes públicos ou a modificação do processo de sua condução não foi tida, no sistema, como suficiente para determinar a alteração das competências e a modificação da ordem figurada e posta ao obrigatório e geral acatamento. Na hipótese em epígrafe, os danos provocados pela necessidade não amparada para o célere comportamento estatal, pela inexistência e impossibilidade jurídica do aproveitamento de condição de urgência, serão reparados nos termos da responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado, na forma da legislação vigente.

Se a situação era previsível, porém não se debruçou sobre o tema constituinte, mas sua ocorrência pode ser admitida e as questões dela sugeridas solucionadas pela interpretação ou aplicação principiopológica ou analógica dos casos previstos no sistema jurídico, tem-se que a urgência poderá ser alegada e acolhida validamente, desde que a necessidade concretamente demonstrada tenha sido imperiosa, grave e o interesse público seja irreparável e comprometedor de todo o sistema sócio-político e jurídico. A apuração da hipótese, para sua aceitação e configuração de sua legitimidade jurídica, é, no caso, muito mais rigorosa em extensão e na profundidade das causas,procedimentos e efeitos sociais.

Diversa parece-me ser o caso quando a situação tida como urgente não foi prevista no sistema jurídico por tangenciar condição ou circunstância absolutamente imponderável nos limites da capacidade humana de antevisão e cogitação.

Há que se obter a solução para a legitimidade jurídica e valida constitucional da urgência pela análise a) do interesse público protegido especificamente, b) do cuidado sistêmico com o tratamento da finalidade buscada na hipótese vertida, c) da suficiência do procedimento estatal.

A imprevisão e imprevisibilidade da circunstância avaliada como urgente determina que ela somente pode ser acolhida validamente no sistema a) se não destoa dos princípios sustentadores da construção jurídica positiva, b) se anão acarretar outro tipo de malefício ou dano além de igual daquele que se pretende evitar ou do benefício que se pretende fazer a sociedade auferir, e, especialmente, c) se for legítima, vale dizer, consentida e aquiescida pelo povo, por instrumentos de validação popular definidos no ordenamento constitucional.

Sendo os princípios os pilares nos quais se sustém o edifício jurídico-normativo, é certo que a conduta estatal deflagrada e fundamentada em razões de urgência não se pode converter em um desfazimento ou reforma constitucional, ainda que transitória, dos sistema posto, ao argumento de não se poder permitir a tramitação regular e tempestiva de alguma mudança eventualmente  tornada necessária. Os princípios têm que ser acatados integralmente mesmo em casos de urgência. O agravo a qualquer deles significa a invalidação do provimento estatal aperfeiçoado por ruptura de todo o sistema em nome da urgência. Ora, gravidade maior não pode haver que o desequilíbrio geral e a falta de qualquer parâmetro para a atuação do Estado.

Também não se pode considerar válida a urgência se o comportamento que nela se fulcrar não estiver equilibrado, nem for proporcional ao malefício que se busca impedir ou o benéfico que se procura fazer a sociedade haurir. O princípio da razoabilidade impõe-se necessariamente para a apuração da validade da urgência alegada e do comportamento nela fundamentado. Razoabilidade aqui se estende como uma “racional adequação dos fins aos meios”, mas sendo a medida desta razão[4] o valor da Justiça idealizada e positivada no sistema jurídico. Não basta, de conseguinte, para acolhimento válido da urgência alegada, a razoabilidade técnica. Faz-se mister a comprovação da razoabilidade jurídica, da razão suficiente da Justiça que o ordenamento normativo impõe como a finalidade genérica obrigatória orientadora da positivação e da aplicação do Direito.

A transgressão do princípio da razoabilidade desconecta o comportamento respaldado na argumentada urgência dos fundamentos de Direito sem os quais não pode subsistir juridicamente qualquer provimento estatal.

Ademais, a urgência imprevista e imprevisível no sistema constitucional e que venha a ser figurada depende de aprovação posterior inequívoca do povo, sendo este referendo direto ou indireto, conforme o regime político democrático adotado. Infere-se, pois, que para que o comportamento estatal possa ser tido como urgente e, na esteira desta circunstância, modificador do sistema de competências postas para a normalidade institucional, não basta seja ele legal; antes, impõe-se seja ele legítimo. Se nenhum dos princípios constitucionais pode ser quebrantado, ameaçado ou transgredido, e um dos princípios constitucionais atuais é, exatamente, o democrático — sem o qual ou sem que para a realização do qual não se há falar em Constituição —, não se conceberia como praticável o transtorno institucional integral em nome da salvaguardada de um dos seus pontos. É para se guardar o sistema constitucional positivo legítimo, eficaz e aplicável que se adotam medidas urgentes, não para destruí-lo. Se o Direito é legitimamente aceito e aplicado, o transtorno institucional inaceito, ainda que forcejado ao argumento da urgência, opera-se de forma ilegítima e inaceitável juridicamente. Alguém deve definir o que é urgente em determinado Estado: este “alguém” é o titular do Poder, eis que a urgência é um fundamento e dá uma forma própria e especial ao exercício do Poder. Como o povo – como titular soberano e insubstituível do Poder – é quem afirma, juridicamente, pelas suas leis e, basicamente, pela Constituição, como se exerce o Poder, a modificação da forma regular positivada tem que ser por ele definida. E como na hipótese aqui vislumbrada, a urgência não foi prevista, nem seria previsível, ela tem que ser referendada para se legitimar.

Finalmente, deve ser esclarecido que se a urgência não pode ser desculpa para atuações incompatíveis com o sistema posto, é certo que ela determina um comportamento que não pode deixar de ocorrer. Assim, tem-se, de um lado, a obrigação de agir na forma a sanear a necessidade imediata, grave e concreta apurada pelo Estado, e, de outro, há o impedimento absoluto de se conduzir sob o regime da urgência quando a circunstância não configurar esta especial contingência.

O que é uma responsabilidade gravíssima e incontornável e um dever do Poder Público é de distinguir os casos de urgência – que impõem um comportamento que não pode deixar de ser levado a efeito – e a impossibilidade jurídica absoluta de atuar em nome da urgência e pelas vias por esta determinadas quando inocorrente a hipótese.

O erro de avaliação do caso – a inagir quando a hipóteses seria de atuar e a agir quando o caso seria de inércia – determina a responsabilidade e constitucional criminosa dos agentes públicos. A dificuldade é tanto maior quando se tem que se em algumas oportunidades é nítida a ocorrência ou a inocorrência da urgência, situações existem em que a distinção faz-se difícil. Nem por isso, contudo, será imune ao controle institucional e popular. Nem por isso, entretanto, escapará o agente público da responsabilidade pelo seu cometimento ou pela sua urgência reclamadora de seu posicionamento e conseqüente atuar.

E aqui, enfoco a questão da responsabilidade por declinação de urgência em caso que ela não existe. Responde, evidentemente, o agente público por crime contra a Constituição se, em matéria constitucional que é a de aqui se trata, conduzir-se segundo modelo excepcional embasado em alegação de urgência, a qual vier a ser apurada como inexistente na espécie apreciada. Além de responder política e administrativamente com a perda do cargo ou função e de arrostar as conseqüências constitucionalmente fixadas[5], o agente público responde civil e penalmente pelos danos que vier provocar ou pelos benefícios que impedir as pessoas de legalmente angariar como decorrência do comportamento público. É que se a competência é vinculada e atuou-se contra ou além ou à margem da disposição normativa, claro que está que se agiu contrariando a Constituição, o que não se admite em sistemas constitucionais democráticos.

NOTAS ___________________________

1- Esta é a inteligência de Aliomar Baleeiro, que, em votos memoráveis, no Supremo Tribunal Federal, debruçou-se sobre o tema e afirmou seu entendimento sobre a natureza política do conceito de urgência: “Decreto-lei no regime da Constituição de 1967.
“I. A apreciação dos casos de “urgência” ou de “interesse público relevante”, a que se refere o ar!. 58 da Constituição de 1967, assume caráter político e está entregue ao discricionarismo dos juízes de oportunidade ou do valor do Presidente da República, resssalvada apreciação contrária e também discricionária do Congresso … ” (Recurso Extraordinário 62.7311GB, in RTf, vol. 45, p. 559)
No julgamento do caso em epígrafe, afirmava o grande magistrado do Supremo Tribunal do país:. “Não me parece duvidoso que a apreciação de ‘urgência’ ou do interesse público relevante” assume caráter político: – é urgente ou relevante o que o Presidente entender como tal, ressalvado que o Conngresso pode chegar a julgamento de valor contrário, para rejeitar o decreto-lei. Destarte, não pode haver revisão judicial desses dois aspectos entregues ao discricionarismo do Executivo, que sofrerá apenas correção pelo discricionarismo do Congresso.

2-   É o que ocorria no sistema jurídico brasileiro da Emenda Constitucional 1/69, em cujo art. 55, determinava-se a titularidade excepcional do Presidente da República, “em casos de urgência ou de interesse público relevante”, para expedir decretos-leis sobre as matérias arroladas naquele mesmo dispositivo.
Atualmente, e em feição diversa na natureza, procedimento, âmbito de incidência possível e efeitos, tem-se a medida provisória, prevista no art. 62, da Constituição Brasileira de 1988.

3-    Art. 64, §1º, da Constituição da República do Brasil.

4-    Cf. Juan Francisco Linares, Razonbalidad de las leyes, Buenos Aires, Astrea, 1970, pp. 107 e segs.

5-    Art. 85, da Constituição da República do Brasil.