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A adoção e seus efeitos

5 de julho de 2000

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A problemática que se pretende enfrentar nestas poucas linhas, obviamente sem a pretensão de esgotar a matéria, refere-se aos efeitos da adoção, à luz do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como do princípio da igualdade entre filhos estabelecida no parágrafo 6º, do art. 227, da Constituição Federal, relativamente às adoções que tenham sido realizadas anteriormente a vigência da atual Carta Política

Segundo CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, (in Instituições de Direito Civil, vol. V, 11ª edição, Forense, págs. 213 e 214) a adoção “é o ato jurídico pelo qual uma pessoa recebe outra como filho, independentemente de existir entre elas qualquer relação de parentesco consangüíneo ou afim”. Na mesma esteira, a adoção “tem natureza de ato complexo de vontade”.

A adoção , em suma, é um ato que estabelece entre duas pessoas laços de filiação e paternidade. Este instituto assume relevo ímpar quando ligado à causa da criança e do adolescente, considerando o momento atual em que vivemos, onde o Estado, por sua Carta Magna, chamou para si a responsabilidade de promover programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente. Os deveres da família, da sociedade e do Estado, relativamente à criança e ao adolescente se encontram insculpidos no art. 227 e seus parágrafos, da Constituição Federal.

Na vigência do antigo Código de Menores (Lei nº 6.697/79), nosso ordenamento jurídico comportava três modalidades de adoção, a saber: a adoção simples, regulada pelo Código Civil; e as adoções simples e plena, previstas naquele mesmo estatuto menorista. Com a entrada em vigor do ECA (Lei no 8.069, de 13.07.90), restaram revogadas as modalidades de adoção previstas no anterior estatuto menorista, vigendo, a partir de então, em matéria de infância e juventude uma única modalidade de adoção, equivalente a adoção plena, prevista no antigo Código de Menores. Esta modalidade nova de adoção, concebe uma paternidade por ficção legal (“FICTIO IURIS”), cujos efeitos se identificam com os da filiação consangüínea. Uma vez deferida, esta adoção é irrevogável , passando o adotado a ser filho efetivo dos adotantes. (J. FRANKLIN ALVES FELIPE, in Adoção, Guarda, Investigação de Paternidade e Concubinato, 8ª  Edição, Forense, pág. 73). A doutrina reconhece pacificamente que a adoção produz tanto efeitos pessoais, quanto patrimoniais. Neste último se enquadram os relativos à sucessão, decorrentes do falecimento do adotante.

A Constituição Federal, em seu art. 227, parágrafo 6º instituiu a igualdade de direitos e qualificações entre os filhos havidos ou não da relação do casamento ou por adoção, proibindo, ainda, quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação, sendo certo que a partir da sua vigência firmou-se entendimento no sentido de que os direitos sucessórios seriam os mesmos entre os filhos de sangue e, aqueles havidos por adoção, desde que o óbito tivesse ocorrido em data posterior à vigência do Texto Maior.

Portanto, em relação à matéria sucessória, a jurisprudência e a doutrina são pacíficas ao entender que a capacidade para suceder é regida pela Lei em vigor no tempo da abertura da sucessão, conforme preceitua o art. 1.527 do Código Civil Brasileiro. (RT 647/173; RTJ 82/152; Revista Jurídica 168/91; IOB 20-91, nº .6.137; SÉRGIO GISCHKOW PEREIRA, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, TÂNIA DA SILVA PEREIRA e HUMBERTO THEODORO JÚNIOR).

No que diz respeito aos efeitos pessoais da adoção, a doutrina e a jurisprudência têm se mostrado conflitantes, considerando-se o posicionamento de alguns de nossos doutrinadores, em confronto com recente julgado proferido por uma das mais altas Cortes do País, o qual teve como relator o Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA. Destacamos, assim, a existência de julgado do STJ (RE, nº 26.834-RJ), do qual foi relator o eminente Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, onde aquela Corte de Justiça entendeu de não admitir a irretroatividade do ECA, de modo a alcançar a adoção simples concretizada em 1981. Segue a transcrição da ementa do acórdão, “in verbis”:

DIREITO CIVIL. ADOÇÃO SIMPLES CONCRETIZADA EM 1981. REVOGABILIDADE. SUPERVENI NCIA DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. IRRETROATIVIDADE. RECURSO NÃO CONHECIDO.

O advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) não teve condão de tornar irrevogável adoção simples de menor impúbere realizada sob a égide do revogado Código de Menores (Lei 6.697/79). Aplicação dos princípios tempus regit actum e da irretroatividade das leis.

Em contrapartida e, destacando o aspecto conflituoso da matéria, enfatizamos a doutrina majoritária acerca do tema “sub exame”. SÉRGIO GISCHKOW PEREIRA, em seu trabalho “A adoção e o Direito Intertemporal”, publicado na Revista dos Tribunais nº 686, páginas 267, 268 e 269, transcrevendo CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, afirma que “As leis que definem o estado da pessoa aplicam-se imediatamente a todos que se achem nas novas condições previstas”, buscando respaldo nos ensinamentos do grande mestre do Direito Intertemporal que foi PAUL ROUBIER. Tal posicionamento encontra supedâneo na diferenciação feita por ROUBIER entre estatuto legal e contrato, quando o instituto da adoção é colocado no patamar de “estatuto legal”, sendo no dizer do mestre ROUBIER, uma situação jurídica primária, enquanto o contrato é colocado como uma situação jurídica secundária, que é constituído sobre a base primária.

ROUBIER nos ensinou que na adoção “as partes não são livres para estabelecerem como quiserem os efeitos jurídicos do ato”. Neste particular a vontade age apenas na formação do ato, mas não no pertinente aos efeitos do ato, que decorrem exclusivamente da lei, podendo assim, serem alterados em qualquer tempo. E, conclui que no caso da adoção, “a lei não modifica os efeitos de um contrato mas os de um estatuto legal”. Seguindo, cita a doutrina de WILSON DE SOUZA CAMPOS BATALHA, que assim se pronuncia a respeito do tema, “in verbis”: “Os efeitos da adoção, entretanto, são subordinados às leis sucessivas, por se tratar de estatuto legal: a esse respeito é de admitir-se a incidência imediata das leis novas”.

Podemos citar TÂNIA DA SILVA PEREIRA, em sua obra “Direito da Criança e do Adolescente – Uma Proposta Interdisciplinar”, editora Renovar, páginas 259/260, onde transcreve trechos das obras de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA e SÉRGIO GISCHKOW, demonstrando, assim, uma perfeita adequação à corrente doutrinária que sustenta ser o instituto da adoção um “estatuto legal” diferente do simples contrato, não estando assim, adstrito às noções de “direito adquirido” e de “ato jurídico perfeito”. Fundamenta, ainda, seu entendimento num fator de importância capital que ela chama de “a adesão do Brasil à chamada “Doutrina Jurídica da Proteção Integral”…”.

A adoção, “data venia”, das abalizadas vozes em contrário é um ato jurídico primário, basilar e voltado precipuamente para a proteção da criança e do adolescente. É, na voz da doutrina, um “estatuto legal”, portanto, estando em patamar superior, onde os conceitos de “direito adquirido” e de “ato jurídico perfeito”, não possuem um maior vigor de enfrentamento, como possuem relativamente as matérias que se encontram no plano meramente contratual, que ROUBIER denominou de “situação jurídica secundária”.

A sustentação desta tese doutrinária, não importa em dar efeito retroativo ao Estatuto da Criança e do Adolescente mas, sim, de se aplicá-lo aos casos de adoção existentes, lembrando que os efeitos da adoção são para o futuro, ou seja, se protraem no tempo, não ficando adstritos à época em que se deu a constituição do instituto. É a aplicação da regra do efeito imediato e geral, que é diferenciada magistralmente por ROUBIER, daquela relativa ao efeito retroativo. No dizer de SÉRGIO GISCHKOW PEREIRA “A eficácia imediata resguarda os efeitos que antecederam à lei, atingindo somente os posteriores, com o que se evita a retroação”.

O posicionamento doutrinário ora defendido se adequa aos princípios norteadores da Constituição Federal, que erigiu ao patamar de fundamento da República, os princípios da dignidade da pessoa humana e da cidadania. Ademais, o legislador constituinte ainda elencou como objetivo fundamental da República, aquele constante do inciso IV, do art. 3º, verbis: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Podemos, portanto, concluir, data venia do preceituado na ementa de acórdão do Colendo Superior Tribunal de Justiça antes transcrita, que os efeitos da adoção previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, aplicam-se em sua plenitude a todos os casos de adoção, inclusive àqueles em que a constituição do instituto se deu em data anterior à vigência do novel instituto, bem como da Constituição Federal, quer sob a modalidade de adoção simples ou de adoção plena.

Caso se entendesse de forma diversa, com toda certeza, estaríamos incidindo em um caso de discriminação, o que é vedado pela mesma Lei Maior. Não há como se conceber dois casos de adoção de criança, onde uma teria sobre si todos os efeitos jurídicos do instituto e, outra apenas poderia se fazer valer de alguns destes efeitos. É entendimento nosso de que o interesse da criança e do adolescente tem maior relevo e, deve prevalecer sobre questões técnicas de somenos importância, aí incluídas aquelas relativas a interesses patrimoniais, por exemplo.

Finalizando, enfatize-se que a Constituição Federal, em seu parágrafo 6º, do art. 227 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no 8.069 de 13.07.90), art. 41 “caput”, ao estabelecerem igualdade de direitos e qualificações entre filhos adotivos e aqueles havidos ou não da relação de casamento, fizeram com que mesmo as “adoções simples” de crianças e adolescentes realizadas em data anterior às suas vigências, passassem a ser regidas pela novel legislação, atribuindo-se aos adotados a plena condição de filhos, com todos os direitos, quer pessoais, quer patrimoniais. Por derradeiro, vale transcrever as felizes palavras de SÉRGIO GISCHKOW PEREIRA, constantes do trabalho antes mencionado, que bem retratam o posicionamento aqui defendido, “in verbis”:

“… A adoção é instituto por demais sublime e grandioso, para que se o amesquinhe com exegeses restritivas, alicerçadas no fechamento egoístico da família consangüínea, em estranhas concepções sobre meias filiações e no aceitar de uma desigualdade que só provocará traumas psíquicos ao adotado, tudo em nome de interesses menores, porque puramente patrimoniais, vinculados à herança…”.