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A atuação diversificada e necessária do(a) juiz(a) e a efetividade das leis afirmativas de igualdade de gênero

27 de abril de 2015

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caetanoI. Introdução

Por infeliz tradição, sabe-se que, ao longo da história, sempre se submeteu o gênero feminino ao masculino, situação que vem se revertendo somente nas décadas derradeiras, isso por conta de muita luta e de sucessivos reclamos das mulheres e dos Movimentos Sociais que defendem a causa.

Foram vitórias obtidas principalmente no terreno político-legislativo, editando-se por isso legislações de vanguarda, destinadas a garantir a imprescindível igualdade de gêneros.

Mas se por um lado há que se reconhecer importante vitória contra o secular regime patriarcal predominante, por outra vertente seria um equívoco pensar que a crise da desigualdade entre os gêneros possa estar solucionada só com a criação e edição desse novo sistema legislativo, isso porque nem sempre (ou quase nunca) têm vindo os direitos e garantias, tal como por essa rede legal reconhecidos, devidamente acompanhados da necessária e imprescindível efetividade.

E é justamente nesse segmento, o da efetividade da lei, que atuam os(as) juízes(as), atuação essa que de uma maneira geral não se dá a contento e nisso identifico dupla motivação, a saber: (1) ou os juízes (e juízas) são vítimas inconscientes desse sistema patriarcal de dominação, que passa de geração em geração por meio da transferência de valores normalmente maquiados pelas Instituições Família e Religião; (2) ou porque desconhecem não o texto legal, mas por absoluta ausência de sensibilidade à verdadeira importância de um conhecimento mínimo e atual da discussão que se dá como pano de fundo do conflito (gênero), estando sempre inserido esse debate no que vem a ser conhecido pelo Universo Jurídico como a seara dos “Direitos Fundamentais”.

O objetivo desse trabalho é promover análise crítica dessa atuação, que se dá no terreno do judiciário, demonstrando que deverá obedecer a novos paradigmas, inteiramente diversos dos que se tem pensado em termos de atuação dos(as) juízes(as), que não raro se recusam a assumir sua responsabilidade como agentes transformadores da realidade social, sempre a pretexto de garantir imprescindível e inexistente neutralidade.

II. O relevante papel da efetividade da lei

Como já assinalei, não se pode nem se deve dar pouco crédito ao que já se conseguiu em termos de equiparação dos gêneros.

As leis editadas com essa finalidade, se não têm a capacidade, por si só, de pôr fim a uma crise que já perdura por tantos séculos, ao menos têm cumprido a relevante tarefa de trazer para o consciente social o que antes vinha sendo equivocadamente tratado nos limites do privado.

Mas a par de tantas vitórias, será preciso que os Movimentos Sociais e Feministas tenham também a consciência da importância da continuidade e da permanência de sua atuação, direcionada agora para o terreno da efetividade do regime legal especial que conseguiram.

Do contrário, direitos tão sagrados como os que foram criteriosamente pensados por Martha Nussbaum, como, por exemplo, os do sentido, das emoções, da saúde e da própria vida (para que valha a pena vivê-la!), correm o risco de não saírem do papel, frustrando o tão almejado sonho de equivalência e igualdade da mulher.

Infelizmente a situação das mulheres, em que pese tenha se alterado e muito, ainda não lhes está a garantir a necessária tranquilidade.

Ao que parece tem mesmo se mostrado insuficiente o status igualitário pretendido pelo universo feminino, ao menos se imaginado em proporção a tantos direitos que terminaram reconhecidos pelos textos legais editados no último decênio.

A impressão que fica é a de que os privilégios masculinos permanecem infelizmente como de outrora, sem que haja a favor da mulher a tão revolucionária e substancial reforma que o legislador se propôs a fazer. Célia Amarós e Ana Miguel Alvarez observaram exatamente isso no texto que produziram (Teoria Feminista y Movimentos Feministas), verbis:

Hoy, más de dos siglos después de la Declaración de los Derechos de la mujer y la ciudadania, las mujeres hemos derribado casi todos los obstáculos y las discriminaciones legales en las sociedades democráticas, y sin embargo, la situación comparativa entre los sexos continua sin experimentar cambios revolucionarios. Es decir, las mujeres hemos consechado enormes éxitos si comparamos nuestra situación con la de hace cincuenta años, pero no es así si lo que comparamos es la situación entre varones y mujeres en la a actualidad.

A verdade está em que esse quadro equiparativo só demonstrará real situação de equilíbrio se e quando as leis de proteção da mulher forem adequadamente observadas e aplicadas, sob novo e adequado paradigma, porque do contrário corre-se o risco, inclusive, de terminar em descrédito grande parte dessas conquistas, como nos alerta Elena Larrauri, em seu estudo “La Mujer ante el Derecho Penal”, ao registrar:

[…] lo peor que sucede cuando se recurre al derecho penal es que el mensaje simbólico es equívoco: el problema real parece solucionado con la simple promulgación de una ley, algo no excesivamente custoso, en segundo lugar cada proceso de notoria publicidad en el cual se afirma la inocencia del acusado (recuérdase los recientes casos en EE.UU.) refuerza la imagen de la mujer mentirosa y del pobre hombre acusado. “En el sentido simbólico, cada proceso de violación no condenado es una victoria de los valores falocéntricos (Smart, 1989, 34).

Sobre isso terão de refletir as mulheres e os Movimentos Sociais que as acompanham, ou seja, que não se poderão contentar com vantagens tão superficiais e epidérmicas como as que lhes foram oferecidas até agora, produzidas que foram pela simples edição de textos legais, havendo ainda tormentoso caminho a ser perseguido, vale dizer o de fazer acontecer modificações muito mais profundas e radicais, agora no subsequente terreno da efetividade de todo o sistema legal especial concebido.

III. A esperada atuação do judiciário

Principalmente porque se tratam de Legislações de Gênero e por isso de natureza afirmativa, espera-se do judiciário resposta muito mais efetiva e positiva do que aquela que se tem observado.

Formado inicialmente o(a) juiz(a) para atuar só mediante provocação, nos anos derradeiros, quer queira quer não, se acha comprometido(a) com o fenômeno da Jurisdicionalização da Política.

O(a) juiz(a) já não é mais um(a) frio(a) e inflexível aplicador(a) do texto legal, tendo se transformado em um(a) verdadeiro(a) administrador(a) de situações conflituais, porque não dizer em um(a) agente importantíssimo(a) nesse processo de profundas e necessárias transformações que a própria sociedade reclama.

O(a) juiz(a), por mais que se recuse a admitir, está cada vez mais comprometido(a) socialmente.

E para dar cabo dessa tarefa há de atuar com imprescindível pró-atividade, fazendo sepultar a ideia, já mais que obsoleta, de que o agir dessa maneira poderia comprometer sua necessária imparcialidade.

Sabe-se, e não de agora, que o conceito de Imparcialidade não se confunde com de Neutralidade e quem o diz com sabedoria é Caio Henrique Lopes Ramiro, que leciona:

Destarte, enquanto a imparcialidade do juiz está ligada ao princípio do juiz natural, podendo, dessa forma, ser entendida como uma garantia dada ao jurisdicionado, sendo certo que a imparcialidade ressalva o julgador do comprometimento com uma das partes e com o objeto do processo, sendo entendida como uma conduta omissiva para com este; a neutralidade leva o julgador a um comportamento comprometido, ou seja, parcial, comportamento de compromisso com o ideal maior do Direito, que é a busca da justiça.

Concluindo o mesmo autor com sabedoria:

Desta forma não pode mais prosperar esse mito de que todo juiz é neutro, alheio a todos os acontecimentos, apolítico, acrítico. O juiz tem, sim, um engajamento axiológico, acredita em algo, tem princípios, é um cientista; sendo assim suas decisões são motivadas pelo que acredita, por toda sua experiência profissional de vida, portanto, a atividade do julgador tem um engajamento ideológico, mesmo sendo considerada por muitos que desejam o status quo, uma atividade neutra, em que o julgador não pode mais levar em consideração os fatos sociais de sua época e demonstrar valores na motivação de sua sentença.

Não se deve também sobre o thema abrir mão da opinião do jurista Dalmo de Abreu Dallari, que com habitual precisão observa:

No tocante a motivações ideológicas, o fato é que todos os juízes fazem opções político-eleitorais, sendo preferível reconhecer isso do que fingir uma neutralidade absoluta, que seria sinônimo de indiferença, inaceitável em qualquer cidadão.

Que caia, portanto, e de uma vez por todas, o mito de que o(a) juiz(a) possa ser neutro(a) e indiferente ao aspecto social das questões que lhes são submetidas – imparcial sempre, neutro(a) jamais!

O grande problema reside, como já alertei no correr desse trabalho, quando o(a) juiz(a) manifesta sua predisposição político-social em desfavor da lei que terá de aplicar, notadamente quando ela ostenta natureza afirmativa, como as de Igualdade de Gênero.

Nesse ponto a lembrança de que o(a) juiz(a) é produto do meio que cresceu e foi educado(a), vale dizer, dentro de um mundo indiscutivelmente patriarcal, aceitando a posição de desigualdade das mulheres (e isso curiosamente também se aplica a um expressivo e surpreendente quantitativo de juízas mulheres) como uma situação rotineira e natural.

Assim foram educados(as) e assim provavelmente hão de pensar na idade madura, ao tempo em que exercem sua judicatura, ao menos se considerada a realidade atual.

É exatamente o que explica K. Millet em seu texto sobre “Política Sexual”, ao lecionar:

El patriarcado gravita sobre la institución de la familia. Esta es, a la vez, un espejo de la sociedad y un lazo de unión con ella; en otras palabras, constituye una unidad patriarcal dentro del conjunto del patriarcado. Al hacer de mediadiore, entre el individuo y la estructura social, la familia suple a las autoridades políticas o de otro tipo em aquellos campos en que resulta insuficiente el control ejercido por estes. La familia y los papeles que implica son un calco de la sociedad patriarcal, al mismo tiempo que su principal instrumento y uno de sus pilares fundamentales. No solo induce a sus miembros a adaptarse y amoldarse a la sociedad, sino que facilita el gobierno del estado patriarcal, que dirige a sus ciudadanos por mediación de los cabezas de familia. Incluso en aquellas sociedades patriarcales que les conceden la ciudadania legal, las mujeres salvo en contadas ocasiones, no suelen entablar contacto con el Estado sino a través de la familia.

Será preciso, então, que o(a) juiz(a) responsável tenha um mínimo de consciência de que, como ser humano que é, terá provavelmente suas convicções já incorporadas, fatalmente com valores defendidos por um regime patriarcal que se busca ultrapassar e sepultar.

O(a) juiz(a) deve ter a consciência de que será necessário se despir de preconceitos e opiniões preconcebidas ou idealizadas, incorporadas dentro de uma cultura machista, porque do contrário não terá a virtude tão essencial que já identificamos, de provocar as transformações que o próprio texto legal em toda a sua essência está a conclamar.

Mas para que haja por parte do aplicador da lei esse ideal, será preciso que antes se dê conta, também, da proporção e da relevância do thema que se coloca à sua frente.

Falo do exercício contínuo da sensibilidade que os(as) juízes(as) devem sempre incorporar no exercício da função. Em outros termos, será preciso que o(a) juiz(a) se sinta tão “humano(a)” quanto àqueles que irá julgar, sabedor(a), por exemplo, nas legislações vinculadas ao gênero, das dificuldades que enfrenta a mulher nesse terrível plano de desigualdade social.

Só assim se sentirá à vontade para, dependendo da situação em concreto, empoderá-la o suficiente para garantir-lhe um mínimo de equiparação e igualdade ao gênero que lhe é diferente.

Não falo de privilégio, mas sim de isonomia!

E em se tratando de legislação de igualdade de Gênero, o caminho adequado para o exercício dessa sensibilidade é o conhecimento mínimo da causa feminista.

Infelizmente há juízes(as) decidindo questões de gênero e de igualdade sem ter o saber mínimo necessário e principalmente atual da relevância do assunto, que como já dissemos alhures, tem estreita vinculação com o thema dos Direitos Humanos, abraçado que foi pela unanimidade das Constituições do Mundo Ocidental.

IV. Conclusão

Há que se ter em conta o grande avanço com que se houve a questão da igualdade de gênero nos últimos quarenta ou cinquenta anos, principalmente concentrado na edição de leis que garantem à mulher um mínimo de isonomia, mas não se deve perder de vista o raciocínio de que essas leis necessitam de maior efetividade, haja vista que sua aplicação ainda se submete a um regime patriarcal, próprio do universo masculino.

No centro da garantia dessa efetividade está a figura do(a) juiz(a), que necessita ser consciente e proativo(a), comprometido(a) com a mudança social radical e profunda do sistema que a lei e a sociedade reclamam, mas que, para atingir esse desiderato, terá de se despir, antes, de todo um conceito que lhe foi impingido a título de “educação”, afastando preconceitos próprios de um patriarcado falido, sempre consciente, no exercício essencial de sua sensibilidade, de que está a decidir sobre temas da mais alta envergadura, porque vinculados a Princípios Fundamentais e assim elencados com certeza na Carta Constitucional que se comprometeu a observar.

O(a) juiz(a) que nega a igualdade do gênero desrespeita via de consequência o que de mais sagrado há na sua Constituição, que protege o direito a vida, com um mínimo de dignidade e respeito, preservando como era de se esperar a natural igualdade e equivalência dos gêneros masculino e feminino.