A caixa preta

5 de dezembro de 2004

Compartilhe:

Recente pesquisa de opinião concluiu que 61% dos brasileiros consultados não acreditam na justiça. Triste constatação da profunda crise que grassa no Estado Democrático de Direito do Brasil.

Mas, a que se deve tão acentuado descrédito? Responderão todos os brasileiros que há morosidade na prestação de justiça pelo Estado. É verdade que os juizados especiais vêm funcionando com relativa eficiência, considerados a insuficiência de meios e a  grande procura pelos cidadãos necessitados de justiça. Basta dizer que já se contam aos milhares o número de processos distribuídos em alguns deles, sobretudo nos estados mais industrializados – São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia – fato determinante da democrática instituição da fila para a audiência inaugural.

O povo brasileiro, porém, vem sendo mal informado sobre as causas dos problemas que acometem os pretórios e afligem os magistrados brasileiros e por isso mesmo, empresta crédito às panacéias propostas e difundidas como remédios milagrosos, curativos do calo ao câncer. Vende-se a imagem de que o juiz é tardinheiro, desonesto ou tendencioso e que o “controle externo”, sugerido pelo Poder Executivo, resolverá a crônica morosidade observada na prestação de justiça pelo Judiciário, um dos poderes da União nesta República Federativa do Brasil, como diz a Constituição no seu artigo 2º, que vale transcrito para conhecimento de todos os que lerem este desabafo:

“Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

Os poderes, em que se fraciona o Estado Democrático de Direito, são independentes e harmônicos e ao Poder Judiciário assegura a Carta Magna “autonomia administrativa e financeira” (art. 99 da CF).

Na verdade, a autonomia financeira se subordina aos humores dos governantes nos estados federados, onde se repetem as desrespeitosas negativas de liberação de verba pública orçamentária, e ao famoso contingenciamento no plano federal.

Poder forte e que dita as diretrizes no Brasil é o Executivo, que arrecada e paga. Veja-se, por exemplo, o que ocorre com o Legislativo para a formação das famosas maiorias, constituídas mediante barganhas e conchavos não muito recomendáveis.

Aos magistrados cumpre aplicar a lei, decretos e  regulamentos editados pelos Poderes Legislativo e Executivo. E não raro são diplomas inadequados, promulgados contra os interesses de parcela significativa do povo, como tem acontecido repetidamente nos últimos anos: tablita; retenção de depósitos das cadernetas de poupança; FGTS; correção a menor da inflação, o mais injusto dos gravames incidentes contra a camada social dos mais pobres; redução das pensões; imposição de tributos aos aposentados; aumento da idade e do tempo de serviço necessários à concessão de aposentadoria; não pagamento de atrasados, como se observa presentemente no que diz respeito às diferenças correspondentes à aplicação da URP a que têm direito milhões de aposentados; enfim, todas as maldades ou bondades praticadas pelos Poderes Legislativo e Executivo repercutem no Poder Judiciário.

E é nele, estuário e desaguadouro de todas as mágoas, sofrimentos, angústias, indignações e revoltas, que o povo encontra a resposta as suas aspirações de justiça. E o povo sabe disso e por isso procura o Judiciário aos milhões,  buscando, com sede crescente, justiça aos seus reclamos. A grande quantidade de ações propostas – cerca de 15.000.000 (quinze milhões) – é fantástica e supera a capacidade de julgamento do aparelho judiciário.

E quem é o maior responsável pelas lides neste país? As estatísticas o revelam, sem contestação: o Poder Executivo, responsável por 80% (oitenta por cento) dos recursos que chegam ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal. Se o Poder Executivo fosse um razoável cultor das leis,  por certo não seria tão acentuada a crise por que passa o Poder Judiciário.

Todavia, não informam ao povo que no ano de 2002 foram distribuídas 12.437.533  (doze milhões, quatrocentos e trinta e sete mil, quinhentos e trinta e três)  ações para serem julgadas por cerca de 13.000 (treze mil) juízes. Não dizem à população brasileira que o STJ julgou 216.999 (duzentos e dezesseis mil novecentos e noventa e nove) recursos no ano de 2003; e que o STF decidiu outros 158.785 (cento e cinqüenta e oito mil, setecentos e oitenta e cinco).

Não positivam que cada um dos Ministros do STJ, do STF, do TST julgou, em média, cerca de 10.000 (dez mil) recursos. Não noticiam que os juízes brasileiros são os  campeões de sentenças no mundo, com uma proporção de 30.000 habitantes por juiz, enquanto é muito menor a proporção nos países ocidentais desenvolvidos.

Alardeiam, sim, os defeitos e comportamentos condenáveis de um ou outro magistrado, sem considerar o direito de defesa e, sobretudo, sem informar o quão insignificante é o número dos infratores das regras rígidas de conduta impostas pela lei e pela sociedade.

Não esclarecem que o juiz é o mais fiscalizado dos agentes públicos, pois atua sob o constante crivo dos advogados das partes;  é obrigado a relatar os processos e  a fundamentar as suas decisões, que são submetidas a reexame pelos Tribunais, necessariamente quando uma das partes é o Estado, e mediante recurso das partes, comumente.

E a fiscalização social sobre o magistrado? Não há cidadão cuja conduta sofra maior censura. Nos Municípios, nas comunidades menores, o juiz, o padre e o prefeito  estão entre os mais observados.

Demais disso, o juiz não pode empatar a lide. Uma das partes na demanda será sempre vitoriosa, desagradando o vencido. E quando o vencido é defendido por um advogado sem compostura, que imputa ao magistrado defeitos para  justificar o  seu fracasso, desperta o ódio, a  maledicência, crucificando-se o juiz acoimado injustamente de parcial ou vendido. Agrava-se a cena quando se vive no país do “jeitinho”, e o comum das pessoas pensa que o direito transita por linhas tortas, e que seria possível ao Judiciário deixar de aplicar a lei consoante as regras da ciência do direito. Mas para prevenir que um desses “injustiçados” venha a indicar um ou outro caso até escabroso, em que se tenha decidido teratologicamente, lembro que as sentenças poderão ser sempre submetidas a recursos, ou seja, à revisão coletiva pelas Turmas ou Câmaras dos tribunais.

A pugna judiciária não se assemelha ao jogo de futebol, submetido à decisão unilateral de um árbitro. O processo judicial é permeado de recursos, submetidas as decisões e sentenças, no  Brasil, a uma dezena deles, nos quais o julgamento se faz coletivamente (ou deve ser coletivo).

Mas não elucidam o povo sobre a árdua e difícil tarefa de julgar, e, o que é pior, permitem confusão entre as atribuições do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia. É comum ler-se que o juiz ainda não deu o seu parecer, ou a imputação ao Judiciário de omissões do Ministério Público, dos desmandos e malvadezas da polícia e a ignomínia dos presídios.

Não positivam que a polícia e o sistema penitenciário se subordinam ao Poder Executivo e que o Judiciário não é órgão acusador, mas julgador, e deve coibir os excessos, abusos e  transgressões à lei, cometidos pelos agentes públicos.

As prisões arbitrárias, inquéritos mal feitos e retardados, torturas, tratamento abusivo do  detido, erros e equívocos na investigação criminal, enfim, as mazelas policiais devem merecer atenção do Judiciário via habeas corpus que, quando concedidos, são noticiados como desserviços à sociedade, invectivados pela mídia com manchetes chamativas deste quilate – “A polícia prende e a justiça solta”.

O povo, contudo, não é informado de que por falta de presídios,  há mais de 90.000 (noventa mil) mandados de prisão sem cumprimento pelo Executivo carioca. Em São Paulo, são mais de 150.000 (cento e cinqüenta mil). As prisões são depósitos onde se amontoam seres humanos, destituídos de qualquer dignidade. Carandiru, retratado pelo cinema, diz um pouco da sordidez a que se reduzem os criminosos.

Todos os defeitos, porém, são debitados ao Poder Judiciário, o que explica a distorção revelada pela estatística. Se a mídia desse nome aos bois, apontando os culpados, veria todo o povo que a  maioria dos males, senão todos, decorre da má administração da coisa pública, em todos os níveis de poder, com supremacia quase  absoluta do Poder Executivo.

Temos leis imperfeitas, inadequadas e até  injustas, irrefletidamente  impostas na via estreita e sinuosa das medidas provisórias ditadas pelo Poder Executivo e que impuseram prejuízos notáveis à parcela significativa do povo brasileiro. E continua a fabricação legal com a profusão de medidas provisórias baixadas e anunciadas pelo governo.

O único bastião de resistência do povo é, e continuará sendo, o Poder Judiciário. Nele desaguaram as chuvas abundantes da insensatez inflacionária e das  desastrosas experiências econômicas deflacionárias, acentuando desmesuradamente o fenômeno da morosidade da justiça, que não é só nosso, mas de todo o mundo civilizado, e é velho e revelho, herança dos tempos coloniais.

No Brasil, é certo, a inadequação do processo e o crescimento da economia, causas permanentes da lentidão do Judiciário mal aparelhado, juntou-se a multidão  atingida pelos planos econômicos. E já se noticiam  novos problemas com a anunciada falta de meios para acudir ao pagamento das  indenizações a que o Estado foi condenado pelo mais recente desses planos – o Real. Seguem-se reuniões entre aposentados e representantes do Poder Executivo para resolver o problema da “ressuscitação” do cadáver da URP, como vêm os economistas definindo as sentenças prolatadas pelo Poder Judiciário.

Mas o que fazer? O “bode expiatório” continuará na sala,  desviando as atenções da verdadeira causa das mazelas, constantes e aflitivas do povo brasileiro: a má administração da coisa pública.

Resta, porém, que a aplicação da lei de responsabilidade conduza os administradores públicos ao bom caminho, afastando-os da conduta irresponsável de transferir as responsabilidades pelos pagamentos das obras e dos desmandos aos seus sucessores. A ação livre do Ministério Público, já reclamada, deverá coibir o “investimento” supérfluo, inadequado, desaconselhável, perdulário ou desonesto, enriquecedor  de uns poucos larápios em detrimento de todo o povo.

A esperança é a última que morre, e o Poder Judiciário, bem ou mal, é o último bastião dos direitos do cidadão. E como diz e sabe o povo:  “tarda mas não falha”.

O estranhável e inusitado é que a advocacia, ou melhor, a OAB, defenda o controle externo do Judiciário, onde se fará presente o Poder Executivo, o maior adversário da advocacia brasileira em todos os quadrantes, mormente no campo da aplicação da lei penal.

É de imaginar-se o quadro difícil a ser enfrentado pelos criminalistas, constantes adversários do “clamor social” pela  punição dos apontados culpados de crimes, diante de um Judiciário controlado pelo Estado policial. Quantos Pilatos surgirão? É tão fácil agradar, seguir a onda, satisfazer ao clamor. Já o fizeram antes, condenando Cristo à crucificação.

Não faz muito, a polícia maranhense  desenterrou ossadas de meninos assassinados por um degenerado. São mais de quinze (15) os jovens mortos. Lamentável, porém, é que três pessoas inocentes foram presas, sob suspeita. Nada se disse em favor delas. Apodreceriam na prisão se não se descobrisse o criminoso confesso. O mesmo episódio ocorreu no Rio Grande do Sul, e a crônica criminal está repleta de condenações de inocentes. Os irmãos Naves que o digam; ou os professores degradados de São Paulo, levianamente acusados de pedofilia.

E os criminalistas injustiçados, invectivados pela mídia e até acusados  por falsos crimes, com flagrantes forjados? Quem os julgará? O juiz controlado, submetido ao guante do julgamento por Conselho integrado de pessoas estranhas à magistratura, desafeiçoadas da difícil missão de julgar?

Creio que a publicação da carta dirigida por Rui Barbosa a Evaristo de Moraes ajudaria melhor à compreensão da nobre função da advocacia, profissão indispensável à prestação da justiça, tão desgastada nos nossos dias.

E lembro que “controle externo” já tivemos, com os indesejados “atos institucionais” baixados pela “Revolução de março de 1964”, numa reedição dos promulgados pela ditadura Vargas.

Enfim, os pronunciamentos de eminentes advogados, do STF, do STJ, dos Tribunais Federais e Estaduais, da AMB, e a lição do grande filósofo Aristóteles são contrários à composição do Conselho de Justiça defendida pelo Poder Executivo, o grande causador da morosidade do Judiciário pela administração inconveniente e até ilegal dos interesses da nação brasileira, em todas as esferas.

Entre manter a independência e a autonomia do Poder Judiciário e a reforma sugerida, ficamos com a sábia lição de Aristóteles, lembrada por Saulo Ramos em artigo publicado nesta conceituada Revista, ed. 44/março de 2004, sob o título “Aristóteles estava certo”: “O governo é uma coisa complexa demais para  que seus problemas sejam decididos por muitos, quando problemas menores são reservados à sabedoria e capacidade de poucos. Assim como médico deve ser julgado pelo médico, assim também devem os homens em geral ser julgados pelos seus pares. E não deverá esse mesmo princípio ser aplicado às eleições? Pois uma eleição certa só pode ser feita por pessoas capazes: um geômetra, por exemplo, fará a escolha certa em assuntos de geometria; ou um piloto em assuntos de navegação. De modo que nem a eleição de magistrados nem sua convocação para prestação de contas deverá ser confiada a muitos”. (Política, III,11, apud “Os Grandes Filósofos“, Aristóteles, Will Durant, tradução de Maria Thereza Miranda, Edição Ediouro, pg. 97/98).

E controle externo já tivemos, na Bahia, declaradamente exercido pelo Senador Antonio Carlos Magalhães, e foi desastroso, como podem atestar magistrados e advogados.

E por certo que o povo, na sua sabedoria, faz muito positiva a frase: “cada macaco no seu galho”.