A Constituição, a Sociedade Civil e o Intelectual

19 de janeiro de 2012

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(Artigo publicado originalmente na edição 129, 04/2011)
 
A Constituição de 1988 rompeu com a tradição de pacto entre elites. O seu texto revolucionou o arcabouço da ordem constitucional ao aprimorar institutos e criar outros.
 
Todas as Constituições anteriores decorrem de anteprojeto redigido por uma comissão de reduzido grupo, ao contrário do texto de 1988, que recebeu contribuições dos diversos segmentos da sociedade, em trabalho hercúleo de seu Relator, Sen. Bernardo Cabral, e demais constituintes, que não ficaram presos aos limites  de um grupo.
 
A grande transformação que a Constituição operou está na linha ideológica.
 
A ordem anterior incluiu a segurança nacional com base no binômio esguiano, segurança-desenvolvimento, sem explicitá-la no Texto.
 
Este binômio, que compunha os objetivos nacionais inscritos nos manuais da ESG, teve o uso reprovável. Trata-se do binômio da década de sessenta reciclado do lema positivista Ordem e Progresso escrito na bandeira nacional, que, sob a égide da ideologia dominante na tecnoburocracia militar do período anterior, propiciou, por razões de alegada segurança, prisões e injustiças sob a capa da busca do desenvolvimento.
 
A partir de 1988 ocorre a grande virada: os objetivos nacionais são expressos, sem consultar  manual, escolhidos pelo povo, que os incorporou ao artigo 3º, que dispõe, no inciso I, da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e, no inciso II, garantir o desenvolvimento nacional. Portanto opção de que para o desenvolvimento nacional é preciso ter liberdade, justiça e solidariedade, além de incluir entre os objetivos, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outra discriminação.
 
Quem escolhe os objetivos de um povo não é o jurista nem o intelectual, é o próprio povo. Ao jurista, e aos intelectuais em geral, cabe dizer como atingir os objetivos, e de preferência conforme o canto de Milton Nascimento, “todo artista deve ir onde o povo está”, todo jurista deve ir também onde o povo está.
 
No Brasil há um movimento pendular, que oscila entre mais liberdades para o cidadão ou mais poderes ao Executivo, mais centralização para a União com menor competência aos Estados e municípios e vice-versa. A Constituição de 1988 privilegiou a repartição de competências com ampliação dos Municípios, alargou a liberdade e direitos do cidadão e atribuiu mais poderes ao Legislativo.
 
Não faltaram críticas à Constituição de 1988. É tradição política e jurídica alegar necessidade de revisão e ingovernabilidade que o Texto acarreta. Em 1891, o constituinte Bulhões de Carvalho, de caneta na mão, ao assinar a primeira Constituição republicana, proferiu discurso revisionista por uma única razão: era unitarista, contrário ao federalismo. Mas em 1914 confessou ao amigo historiador Aureliano Leal, que se tornara federalista, mais tarde. A força revisora tomara corpo desde a promulgação e obteve êxito em 1925, após “acordo em torno da mesa do Presidente da República”, Arthur Bernardes, como de hábito na política brasileira.
 
Os fatos políticos provaram que a panaceia para os males, a Revisão, não acabou com o domínio de oligarquias nem evitou a Revolução de Trinta, nem, apesar da nova Constituição de 1934,  impediu o golpe de 37.
 
A Constituição de 1988 enfrentou críticas de interesses contrariados, que não perceberam o avanço dos direitos fundamentais individuais e sociais, da dignidade da pessoa humana e a natureza transformadora das bases ideológicas do Estado, e cogitam, volta e meia, revisão ou mini-constituinte, pacto e coisas do gênero.
 
Uma Constituição, segundo Karl Loewestein, pode ser: normativa, que  caminha junto com o processo de poder, conforme o traje que cai bem, na medida; semântica, que detém a dinâmica do processo de poder, está aquém, conforme um traje apertado, a impedir os movimentos, comuns em  regimes totalitários que servem à perpetuação dos detentores do poder; nominal, que é a  educativa, à frente da dinâmica do processo de poder, que faz o país avançar gradativamente e visa um dia tornar-se normativa, por isso é  prospectiva e carregada de normas programáticas, dirigente, conforme o Texto de 1988.
 
A Constituição atual traçou diretrizes  que permitem  transformar a sociedade em níveis mais elevados e ela possibilita expurgar os resquícios do patrimonialismo de Estado, retrógrado e conservador que sustentou complexos coloniais arraigados em nossa cultura e que ainda persistem, não por conta do seu texto, mas dos costumes políticos descritos por Raimundo Faoro, em “Os donos do poder”.
 
Neste trabalho, o rei fica nu. Ao tratar da centralidade do papel do Estado na formação política, aponta para o patronato político acima da administração civil e militar, que comanda a nação como grande árbitro, detentor da soberania do povo e que por ela decide.
 
O discurso da Presidente da República repleto de bons propósitos e compromissos, depende para se concretizar, muito mais da libertação da sociedade a patamares éticos e morais, que não se operam da noite para o dia porque decorrem de longa formação sociológica da sociedade. A transformação que desejamos não depende apenas dos Chefes de cada um dos Poderes, mas de toda a sociedade para imperar a justiça, a igualdade e a liberdade.
 
Neste aspecto a Constituição pode contribuir para que o poder não permaneça nas mãos de poucos, que se opere o arejamento das classes dirigentes, mas não impede que vicejem condutas que, sob a manto da legalidade, obedeçam à finalidade que não seja ética e não vise o bem comum.
 
Nenhuma Constituição impõe a ética na política, que é fruto de educação e do amadurecimento político, nem pode estancar os costumes enraizados, que confundem o público e o privado na orgia da malversação do dinheiro público e do compadrio.
 
A Constituição aponta para responsabilidade e improbidade, baliza a atuação da Administração Pública, cabendo aos tribunais dirimir conflitos de infração às normas.
 
Nossa Constituição educa ao definir quem tem dever para com os filhos, as crianças e os adolescentes, o futuro do país; o idoso; o meio ambiente; a educação; a saúde; os índios, nossos irmãos, filhos da mesma terra, com os quais urge regatar enorme dívida.
 
Um Estado pode ser transformado pela ação política ou pela elaboração jurídica. Isto quer dizer que se a Constituição indica a direção, cabe ao homem, onde estiver, nos três poderes, na Administração pública ou privada, nas empresas, na escola, na rua e nos quartéis, zelar, de modo pacífico, mas enérgico e ativo, pela  escolha do próprio povo.
 
O Texto Maior estabeleceu novas formas de relação entre indivíduo e Estado, possibilitou o controle da constitucionalidade pela sociedade, cuja atuação na propositura das ações tem sido reduzida pelo STF, sob alegação da pertinência temática.
 
Apesar dos avanços, a Constituição foi transformada em canteiro de obras, com emendas desnecessárias, outras propostas de emenda no desvario reformador para o pior, como se Constituição fosse rascunho, que se apaga para reescrever, conforme conveniências particulares.
 
As emendas constitucionais em quantidade alarmante, desnaturam o sentimento constitucional, levam o povo ao descrédito nas suas instituições e desrespeito pela Lei Maior como um símbolo de segurança jurídica e democracia. Sem segurança jurídica uma sociedade não pode gozar de saúde democrática plena.
 
Mini-constituinte seria um golpe, à luz do Direito Constitucional, porque não há ruptura ou turbulência da ordem constitucional nem o texto previu este processo, sendo, pois,  inconstitucional. Não se muda as regras do jogo depois de ele começado.
 
Os parlamentares têm, com certeza, questões cruciais a tratar, no campo das reformas política e tributária, fiscalizar a saúde agonizante e a educação, cuidar de disciplinar as fronteiras e a circulação de drogas e outras vicissitudes que não surgiram por conta da Constituição, além das graves questões interna corporis para resgatar o respeito do povo aos seus legisladores, sob  desconfiança da opinião pública, pagando os justos pelos pecadores.
 
Concluímos, pois, que a Constituição de 1988 resulta da luta do povo, em favor da democracia e contra o arbítrio, assim como a História do Direito é a história da luta do homem por justiça e liberdade.
 
Não nos esqueçamos, que os intelectuais em geral, jurista, magistrado, professor, escritor, legislador, dentre outros, estão irremediavelmente vinculados ao compromisso social, que inclui  respeito à ética e à proteção dos direitos da cidadania dos demais concidadãos.
 
Os juristas ao longo da História participaram do avanço do direito e dos destinos da política brasileira, dentre eles: Urbano Pessoa, líder intelectual da revolução Praieira, preso, julgado e condenado, a seguir eleito presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB); Joaquim Nabuco, no mundo jurídico e político; Perdigão Malheiros, jurista da abolição da escravatura, presidente do IAB; Afonso Arinos, político e prof. de Direito; Victor Nunes Leal, Ministro do STF cassado pela ditadura e prof. de Direito; Célio Borja, líder da Câmara dos Deputados, que durante a ditadura não temeu alertar que “se a polícia quiser invadir a Faculdade de Direito, terá que passar primeiro por cima do  líder da Câmara” e assim impediu o massacre,  ministro do STF e Presidente do TSE, Ministro da Justiça e prof. de Direito; Raimundo Faoro, político, integrante do PT, escritor e Presidente do Conselho Federal da OAB; Miguel Seabra Fagundes, Ministro da Justiça, Presidente do IAB; Clóvis Ramalhete, Consultor Geral da República, Ministro do STF e prof. de Direito; Miguel Reale, ocupou cargo político,  jusfilósofo e prof. de Direito; Marcelo Cerqueira, preso pela ditadura, dividiu a cela com Darcy Ribeiro, deputado federal, Consultor da República, Presidente do IAB, prof. de Direito; Bernardo Cabral, parlamentar cassado pela ditadura, presidente do Conselho Federal da OAB, político e Relator da Constituinte, Deputado, Senador e prof. de Direito.
 
O poeta Otavio Paz no ensaio “El Ogro Filantrópico”, apesar de criticar a submissão do escritor à religião ou partido, não deixa de reafirmar o compromisso do intelectual com a realidade que o cerca.