A Constituição de 1988 e os direitos políticos

14 de julho de 2011

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(Artigo originalmente publicado na edição 99, 10/2008)
 
Penso que a Constituição de 1988 – promulgada por um dos mais destacados brasileiros de todos os tempos, o meu amigo Ulysses Guimarães –, representou um passo formidável para o fortalecimento e consolidação das instituições democráticas no Brasil.
 
Ao final de uma ditadura que durou vinte anos, marcada por sistemáticos golpes contra a democracia, a Nação estava ansiosa pela volta à legalidade. Por isso, ganhou tanto espaço nos debates daquela época a defesa dos direitos políticos. Os brasileiros ansiavam por uma cidadania plena.
 
Creio que é bom esboçar aqui um rápido quadro do que foram os anos que vão de 1964 a 1985, quando com a eleição de Tancredo Neves encerramos o ciclo que teve início com o golpe militar de 1964. Sistematicamente, ao longo desse tempo, os governos militares lançaram mãos de incontáveis expedientes “jurídicos” para se manter no poder, para encurralar ou eliminar os adversários e para calar quem ousava erguer a voz. Eram os famosos casuísmos, inventados a cada eleição, a cada vitória da oposição.
 
O mais destacado desses episódios foi o envio pelo Governo ao Congresso do famoso “pacote de abril” de 1977, um conjunto de leis outorgado em 13 de abril pelo então Presidente da República do Brasil, Ernesto Geisel, que, dentre outras medidas, fechou temporariamente o Congresso Nacional.
 
Este “pacote” era constituído por uma emenda constitucional e seis decretos-leis que alteravam em profundidade as futuras eleições. Determinava o “pacote” que um terço dos senadores não mais seriam eleitos por voto direto, mas sim indicados pelo Presidente da República. Surgiam então os “senadores biônicos”, que acabariam dando ao Regime Militar um maior apoio no Congresso Nacional. Outra medida do “pacote” estabelecia a extensão do mandato presidencial de cinco para seis anos, a manutenção de eleições indiretas para governador e a diminuição da representação dos estados mais populosos no Congresso Nacional.
 
Assim, metade das vagas para o Senado, que em 1978 renovou dois terços de seus integrantes, foi preenchida por votação indireta através de um Colégio Eleitoral reunido nas respectivas Assembléias Legislativas.
 
Portanto, em 1998 o nosso sistema político estava no chão, destruído.
 
Naquele ano, começaram os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, que fora uma das principais bandeiras da oposição ao longo da ditadura.
 
Penso que, num texto destinado à revista de Direito, o mais indicado é que se faça, ao tratar da Constituinte, um mergulho mais profunda na História.
 
O conceito de governo do povo, expresso, literalmente, pela palavra democracia, foi inicialmente institucionalizado na Grécia antiga, onde se estabeleceu a essência do princípio democrático, com a participação popular na deliberação dos assuntos afetos àquela sociedade. Essas ações constituíram, de fato, os primórdios daquilo que entendemos hoje como atividade política: formação de lideranças, articulações entre líderes, confronto de idéias e objetivos. Segundo Bobbio, a verdadeira consolidação do que chamamos de atividade política, e, por conseqüência, seus direitos e deveres, adveio com a Constituição americana aliada aos princípios fundamentais da igualdade, da liberdade e da fraternidade adotados na Revolução Francesa, em 1789.
 
No Brasil a criação de nossa democracia têm sido um enorme e lento desafio, com idas e vindas, avanços e retrocessos em sua institucionalização. Rigorosamente, podemos falar com certa convicção, quer seja por oportunidades históricas, seja pelos sucessivos estados de exceção por que passamos, que este amadurecimento e esta busca de nossa emancipação democrática veio somente com a Constituição Cidadã de 1988.
 
Na verdade, alguns de seus mandamentos, principalmente no que se refere à fixação dos chamados direitos políticos, em muitos casos resgataram dispositivos que em certa época já haviam sido objeto de normatização. Talvez, a conjectura que nos leva a crer que a Carta de 88 realmente é inovadora, baseia-se no fato de neste diploma haver uma “amarração jurídica” coerente, que em seu conjunto, enumera e organiza todo o conceitual do chamado Direito Político.
 
Por exemplo, a nossa primeira Constituição, de 1824 – outorgada pelo Imperador –, concentrou muitos poderes nas mãos do Poder Imperial ou, eufemisticamente, Poder Moderador, dando-lhe plenos poderes de intervir nos outros Poderes Montesquianos. Contudo, já vislumbrava-se na Carta Magna as primeiras garantias dos direitos civis,  políticos e até humanos.
 
Em 1891, surgiu a primeira Constituição Republicana, de nítida identificação com a Constituição americana. Lá, já constam dispositivos, entre outros, que regulam a forma federativa da União, a forma e o sistema de governo (República Presidencialista). Manteve aqueles poucos direitos políticos e civis consagrados na Constituição Imperial e, timidamente, os ampliou, para permitir a uma parcela da sociedade apenas, o voto direto para deputados, senadores, presidente e vice-presidente da república.
 
A Constituição de 34, chamada de “Constituição social”, que veio após a revolução constitucionalista de 1932, teve  pouca participação popular. Mas, mesmo assim, esta Carta ampliou os direitos individuais e foi inovadora ao introduzir os direitos sociais, notadamente centrada na proteção ao trabalhador. No aspecto político, esta Norma Maior significou muito para as mulheres, na medida em que instituiu o voto feminino.
 
Como já havíamos observado antes, nossa história constitucional é cíclica em alguns aspectos. No caso do período de 37 a 46, nosso país viveu a “ditadura de Vargas”. A Constituição do “Estado Novo”, de 1937, foi um completo retrocesso. Toda espécie de direitos e garantias já consagrados foram suprimidos. Nossa tenra democracia deu um largo passo para o passado. Felizmente, veio a Constituição democrática de 46, onde as liberdades políticas e os direitos humanos foram reconquistados e ampliados. Como exemplo de direitos ampliados, temos a proibição do trabalho noturno a menores de 18 anos, a institucionalização do direito de greve e o fortalecimento da Federação.
 
Quase 20 anos depois, veio o golpe de 1964, o mais grave movimento de retrocesso em nossa construção de uma democracia. Novamente, os direitos humanos e as liberdades são suprimidos. Em vez de Cartas Constitucionais, nosso ordenamento jurídico passa a ser regulado pelos abomináveis atos institucionais com punições e arbitrariedades, tendo no AI-5 a expressão máxima do terror e do medo provocado pela ditadura militar. A tortura, a ausência de liberdade, as perseguições e assassinatos políticos marcaram este período.
 
Com uma desfaçatez incomensurável, os agentes do regime autoritário deram suporte legal à ilegalidade dos AIs, via “Constituição de 1967” e sua sucessora, na verdade uma grande emenda substitutiva, a “Constituição de 1969”, que incorporou as aberrações e  arbitrariedades dos atos institucionais.
 
Finalmente, chegamos à Constituição de 1988 que institui o Estado Democrático de Direito destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.
 
Estabelece ainda, o fortalecimento da Federação, formada pela união indissolúvel dos estados e municípios e do Distrito Federal, declara seus princípios fundamentais e afirma a soberania popular. Além de instituir como novo paradigma, aí sim uma grande novidade, a democracia participativa.
 
Todo cidadão, inclusive os analfabetos, possui direitos políticos garantidos na Constituição Federal de 1988. O principal direito político e o mais exercido por todos é o direito de votar e ser votado. Mas a participação da população não se limita ao voto para a escolha de seus representantes no Poder Executivo e no Poder Legislativo.
 
Estão previstos no artigo 14 da Constituição Federal, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, também como direitos políticos.
 
“Art. 14 – A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
 
I – Plebiscito;
 
II – Referendo;
 
III – Iniciativa Popular.”
 
Estes direitos políticos foram regulamentados apenas dez anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, com a publicação da Lei nº 9.709 de 18 de novembro de 1998.
 
O plebiscito é a consulta inicial ao cidadão, sobre como deve o Poder Legislativo agir em relação a determinado assunto. A iniciativa popular também foi regulamentada na Lei nº 9.709/98, e já deu bons frutos legais.
 
Se o significado de democracia é governo do povo, sem a garantia de participação da população não existe democracia de fato. Sem a sociedade organizada participando das questões estatais, há sempre o risco de que regimes autoritários surjam e ocorram retrocessos nos direitos conquistados.
 
Nessa perspectiva, a Constituição Federal de 1988, ao incorporar os direitos humanos e a democracia plena em nosso país, impôs ao Legislativo a regulamentação de tais direitos e o incentivo de uma participação cada vez maior dos cidadãos e cidadãs.
 
Além destas inovações atinentes aos cidadãos, cumpre observar os avanços na liberdade e na legitimação das representações políticas. É esse anelo que cria o quadro de estabilidade institucional, que antes não existia, pois, ou não havia a sustentação legal, ou as prerrogativas e a segurança das garantias dos direitos políticos estavam dispersas no arcabouço legal.
 
É com este intuito que a partir de 1988 os vários setores da sociedade organizada pressionam e colaboram na elaboração e aprovação das legislações complementares, com o objetivo de regulamentar e aprofundar os direitos humanos, os direitos sociais e a democracia participativa.
 

 
Pedro Simon
Senador da República

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