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A crise da representação política

30 de novembro de 2007

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A democracia moderna nasceu sob a idéia da repre-sentação. Os representantes eleitos pelo povo exercem o poder em nome deste (§ único, art. 1º, da CF). Este é o princípio fundamental da democracia, único a legitimar o exercício do poder político. Existe, pois, uma relação necessária entre o poder, a lei e a vontade coletiva que lhe dá legitimidade. A lei pode, todavia, ser formalmente válida e, ao mesmo tempo, ilegítima quando não expressa essa vontade coletiva. A exigência democrática é que a lei possua legalidade e legitimidade, pois somente assim o exercício do poder estaria justificado.

Em nosso país, pode-se afirmar que houve uma ruptura entre o conceito e a realidade, ou seja, a prática não se ajustou à teoria democrática. Com o advento do neo-liberalismo, entra em crise a ideologia que reflete a proposta do modelo político e entra em crise o partido que é o instrumento para, uma vez alcançado o poder, realizar o novo modelo proposto pela ideologia.

O discurso político na atualidade não está mais voltado para a solução dos grandes problemas sociais, mas enredado em uma esfera de interesses autônoma e imediata. Os partidos políticos renunciam a ideologia e abandonam os programas partidários, transformando-se, não raro, em agências de negócios. Porém, quaisquer que sejam as mudanças experimentadas no mundo real e quaisquer que sejam os desajustes entre a teoria e a prática, a idéia essencial do regime democrático segue sendo a representação, pois, sem ela, não há democracia.

A Revolução Francesa de 1789 consolidou a doutrina da duplicidade segundo a qual o representante, após a eleição, goza de absoluta independência política em relação ao representado. Na assembléia constituinte de 1791, Sieyés asseverava: “É para a utilidade comum que os cidadãos nomeiam representantes, bem mais aptos que eles próprios, a conhecerem o interesse geral e a interpretar sua própria vontade”. Portanto, conforme este célebre constituinte, ao povo falta instrução e tempo para o exercício das funções parlamentares.

A ascensão do Estado Liberal consolidou a teoria da duplicidade que servia adrede a uma ordem política de cunho aristocrático que afastava o povo do exercício imediato do poder. Essa doutrina perdurou até o início do século XX, adotada, até então, ainda pela maioria das Constituições européias, inclusive a Carta Alemã de 1919, que vedava o mandato imperativo e assegurava a plena autonomia aos representantes.

Com a organização da classe operária e o recrudescimento dos movimentos reivindicatórios agravados pela crise entre o capital e o trabalho, verga o sistema representativo com base nesse modelo de cunho liberal. A vontade popular, fonte da autêntica soberania, volta a ser perseguida. Todavia, na sociedade de massas, a vontade do povo que deveria resultar de um modelo de inspiração genuinamente popular acaba por se perder no seio dos partidos e dos grupos de pressão. Como dizia o célebre Rousseau: “O cidadão que se fizera rei na ordem política, como titular de um poder soberano e inalienável, acabou se alienando no partido e no grupo a que vinculou seus interesses”.

Nessa nova fase, busca-se a identidade entre as aspirações das classes sociais emergentes e as instituições representativas daqueles valores fundamentais do regime democrático. Sem embargo das transformações sociais efetivamente ocorridas, o que se vê, mais uma vez, é o aumento da distância entre a vontade geral e a ação política dos representantes. Ao invés da vontade popular, prevalece a vontade dos grupos, seus interesses, suas reivindicações.

A realidade de nossos dias nos leva a buscar, na dinâmica e na defesa dos interesses desses grupos e das categorias profissionais e econômicas, a única resposta satisfatória do que restou da representação. Assim, o sistema de representação hoje só se explica se o vincularmos aos interesses políticos, econômicos e sociais de cada segmento da sociedade. Dir-se-á, porém, que, em uma democracia, a pluralidade dos interesses em jogo torna natural a formação de grupos na consecução de seus mais variados e múltiplos objetivos. Todavia, a decomposição da vontade popular através da criação da vontade autônoma de grupos, impedindo a formação daquela vontade geral soberana, estreitamente ligada aos interesses coletivos, fere de morte o sistema representativo baseado no princípio da identidade. Cabe aqui, a propósito, relembrar Hegel: “A representação não devia ser do indivíduo com seus interesses, mas antes das esferas essenciais da sociedade e seus grandes interesses“.

Por outro lado, há quem prefira explicar a representação como um processo de assimilação da política e das opiniões, uma ação recíproca de aproximação entre governantes e governados (Sobolewsky). O processo de representação é assim, processo de adaptação do mérito das decisões políticas às opiniões dos grupos envolvidos e, majoritariamente, as crenças e convicções da classe dominante.

O que realmente importa ressaltar nesse contexto é que a crise da representação política, a ruptura entre representantes e representados tem como causa principal a ruptura entre o Estado e a sociedade civil. Essa ruptura é uma das mais dramáticas da atualidade, pois se trata de duas entidades que, na verdade, são únicas. O Estado é a forma mais orgânica e complexa da sociedade. O Estado é a própria sociedade organizada. A sociedade tem sido, até hoje, o antecedente necessário do Estado. Sem sociedade, não existe Estado, pelo menos sob a ótica das teorias contratualistas que inspiraram os sistemas democráticos.

A sociedade é anterior ao Estado, seja do ponto de vista cronológico, seja sob o prisma ontológico. Isso significa que a sociedade não apenas precede ao Estado, mas determina sua natureza, sua essência e existência. A sociedade é o ser do Estado. O restabelecimento dessa verdade, isto é, a dependência do Estado à sociedade e, em conseqüência da vontade geral de que bradavam os revolucionários franceses, é condição de sua justificação histórica, exigência mesmo da própria sobrevivência da democracia.
Em uma percepção realista, a verdade é que hoje os representantes respondem aos interesses do poder político, que, por sua vez, responde aos interesses do poder econômico nacional e internacional, muito mais que aos interesses de seus próprios eleitores. O poder político ganhou autonomia em relação a sua fonte legítima, ao mesmo tempo em que passou a integrar outra estrutura: o poder econômico.

Contudo, o mercado atuando sobre a sociedade tecnológica de nossos dias não poderá resolver esse problema, mas tenderá a agravá-lo ainda mais. A única solução possível deve partir de uma política que reconcilie os efeitos mecânicos do mercado para um fim social formulado pela sociedade e pelo Estado. Enquanto a política não voltar a ser formulada de acordo com os interesses da nação e da sociedade, ela continuará, cada vez mais, sendo um jogo sem outro propósito do que a busca do poder pelo poder em todos os níveis.

Daí porque nossa reforma política deve começar pelo aperfeiçoamento das regras que disciplinam a representação popular. Repugna a sociedade brasileira, a cada eleição, a deplorável constatação do estado de indigência moral e intelectual dos candidatos às casas legislativas. A cada eleição, fortalece-se, entre os operadores do direito eleitoral, a convicção da necessidade da exigência de certo grau de escolaridade mínima aos postulantes a cargos eletivos. A pretexto de que seria antidemocrático exigir-se certo grau de escolaridade aos candidatos, permite-se um verdadeiro atentado a nossas instituições democráticas. Toda a nossa experiência à frente do Ministério Público Eleitoral no Estado do Rio de Janeiro por mais de cinco anos reforça essa convicção.

Por outro lado, estamos na era da informação e, como não podia deixar de ser, o mundo caminha na inevitável direção da educação dos povos, sobretudo os emergentes, situação historicamente irreversível e incompatível com as condições de elegibilidade, nesse particular, postas pelo constituinte de 1988. O analfabetismo não se coaduna com o exercício de direitos políticos. Acreditar que um analfabeto é capaz de construir juízos de valor a fim de fazer escolhas de nomes e programas de políticas públicas é mera demagogia.

De igual sorte, o princípio constitucional da moralidade pública não se coaduna com a elegibilidade de pessoas que, embora sem condenação transitada em julgado, respondem a processo criminal ou por improbidade administrativa. Diz a norma constitucional que a lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato (art.14, § 9º).

O princípio da moralidade adotado, expressamente, pela Constituição de 1988, revela, sobretudo, quando direcionado à proteção do regime democrático, a necessidade de impedir o deferimento de candidaturas que não reúnem aquele mínimo de seriedade capaz de legitimar o exercício dos mandatos legislativos. Quando o Constituinte se refere à vida pregressa do candidato, certamente, não quis limitar-se à ausência de antecedentes criminais. A expressão tem um significado bem mais abrangente. Relaciona-se com a vida pregressa profissional e social daquele que postula o exercício de um mandato político, e devem ser excluídos todos aqueles cuja conduta pessoal não se enquadra nos padrões de moralidade média vigorantes na sociedade.

É importante observar, outrossim, que a moralidade pública não é apenas indissociável de toda atividade estatal, mas guarda estreita correlação com a conduta de todo integrante de determinado grupo em relação a assuntos afeitos à coletividade. É o que se passa no relacionamento entre filiado e partido político, onde prevalece qualquer tipo de interesse em detrimento de seus fins institucionais. É indispensável, para tanto, introduzir, no art. 16 da Lei 9096/95, a obrigatoriedade, no ato da filiação, da comprovação de ausência de antecedentes criminais e de atos de improbidade administrativa, sem a exigência de decisão definitiva na esfera do judiciário. Essa providência associada à exigência de um determinado grau de escolaridade (médio ou fundamental), tanto no ato de filiação partidária quanto no pedido de registro de candidatura, responde, neste tópico, aos anseios do constituinte de 1988 com a moralidade para o exercício do mandato eletivo.

Por outro lado, como vimos, a essência do mandato político encerra uma relação de representação e, nesta, uma relação de confiança. Essa confiança depositada pelo povo em seus representantes é que dá legitimidade ao exercício do mandato. Ora, é público e notório que a opinião pública brasileira vem revelando uma crescente e preocupante perda de credibilidade em relação ao Congresso nacional e, mais diretamente, na atuação dos parlamentares.

Recente pesquisa realizada pelo Ibope, no segundo semestre do ano passado, revelou que apenas 20% dos entrevistados manifestaram confiança no Senado, 15% na Câmara dos deputados, 10% nos partidos políticos e 8% nos políticos em geral. Essa decepção generalizada com a atuação de nossos parlamentares fortalece, a cada dia, a imperiosa necessidade de se introduzir entre nós o instituto da revogação popular de mandatos eletivos, denominado pelos norte-americanos de recall, único instrumento capaz de restabelecer a confiança do povo em nossas instituições democráticas.

Oportuno salientar que o referido instituto não é novidade entre nós, visto que algumas de nossas primeiras Constituições estaduais republicanas já contemplavam a revogação popular de mandatos eletivos: a do Rio Grande do Sul, em seu art. 39, a do Estado de Goiás, em seu art. 56, e as Constituições de 1892 e 1895 do Estado de Santa Catarina. Na América Latina, a Constituição da República da Venezuela, promulgada em 1999, adotou o referendo revocatório em relação a todos os cargos públicos providos pelo voto popular (art. 72). Nos Estados Unidos da América do Norte, 14 Estados introduziram o recall em suas Constituições, tendo sido o primeiro deles a Califórnia, em 1911, e o último o Estado da Geórgia, em 1978.

O referendo proposto, aliás, presente em alguns projetos em tramitação no Congresso Nacional, realizar-se-ia, por iniciativa popular, dirigida ao Superior Tribunal Eleitoral, mediante a assinatura de, pelo menos, 2% do eleitorado nacional, distribuído ao menos por sete Estados da Federação, com, pelo menos, 0,5% em cada um deles. A Justiça Eleitoral assumiria, dessa forma, a função de convocar e realizar o referendo, que só poderia ocorrer um ano após a posse dos eleitos, assegurando a necessária isenção em todas as fases do procedimento.