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A “crise” do Supremo Tribunal Federal e a delimitação de suas competências

5 de agosto de 2001

Juiz federal do Tribunal Regional Federal TRF - 5ª Região, Especialista em Direito Processual Civil e Mestrando em Direito (UFPE) Membro do Instituto dos Advogados de Pernambuco

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A “crise” do Supremo Tribunal Federal não é um fenômeno recente. Como afirma o prof. Alfredo Buzaid, seus primeiros sintomas se manifestam ainda no começo da década de 30, quando o Decreto n.o 20.669, de 23 de novembro de 1931, determinava ao Supremo Tribunal Federal a realização de quatro sessões semanais de julgamento enquanto não esgotasse a pauta de processos conclusos (Buzaid, 1972:145).

Segundo o eminente Ministro Moreira Alves, o tema começou a ser aflorado ainda em 1926, por Herculano de Freitas, “quando não iam muito distantes os dias em que um dos mais ilustres dos juízes da Corte Epitácio Pessoa – julgará, durante todo o período em que nela pontificará, menos de noventa processos, sem que jamais se lhe assacasse a injuria de desidioso” (Moreira Alves, 1982:42).

Há mais de setenta anos, portanto, começava a dar sinais de vida o desequilíbrio entre o número de processos distribuídos e o de processos julgados pelo Supremo Tribunal Federal, que se denominou “crise”.

De logo justifico as aspas, considerando que um dos elementos do conceito de crise e sua “duração normalmente limitada” (Pasquino, 1999:303), bem como tendo em vista a “crise da idéia de crise” (Bornheim, 1996).

Dito isso, observe-se que a discussão doutrinaria sobre a “crise” se inicia com mais vigor em artigo do Ministro Filadelfo Azevedo publicado em 1943, onde alertava para a “eternização” das demandas e para a instabilidade social decorrente do acumulo de processos na Corte Suprema. Na mesma oportunidade, criticava o hábito pelo qual “todo mundo pretende trazer seu casinho (sic) ao Supremo por menos interesse social que possa envolver” (Azevedo, 1943:8).

O referido Pretório, na visão de Carlos Maximiliano, teria também sua cota de culpa, ao ampliar sua competência para além do expresso na Constituição, transformando-se paulatinamente em uma terceira instância (apud Maciel, 2000:270).

De qualquer sorte, as informações divulgadas pelo Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário apontam, ao lado do aumento crescente no numero de processos recebidos, a expansão quantitativa dos julgamentos, existindo anos “deficitários”, nos quais o acumulo de processos foi recrudescido, mas também anos “superavitários”, nos quais se conseguiu atenuar os efeitos da “crise”.

Somando-se o volume anual de processos recebidos e de julgamentos, constantes do referido banco de dados, obtêm-se os seguintes resultados, organizados por década: (quadro abaixo)

Observe-se que os números divulgados pelo Supremo Tribunal Federal não permitem a paridade de processos recebidos e processos julgados. Ou seja, para cada processo recebido não há apenas um julgamento.

Se existisse tal paridade, todo o acumulo de processos decorrente de três décadas de “crise” (5.771 processos, de 1940 a 1969) não seria suficiente para justificar uma diferença positiva de 7.220 processos nas décadas de 70 e 80, a não ser que se tratasse de um acumulo anterior a 1940 e que ao fim de 1989 o Supremo Tribunal Federal estivesse completamente “em dia”.

Um único cômputo no registro “processo recebido” pode, portanto, ensejar diversas entradas no diagrama “julgamentos”, conforme sejam interpostos embargos de declaração, agravos regimentais etc., assaz prejudicando a utilidade do banco de dados.

Melhor seria se, como sugerido por Candido de Oliveira Filho ainda em 1946, os relatórios anuais do Supremo Tribunal Federal e, atualmente, também as informações do Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, mencionassem o “resíduo”, ou seja, o número de processos não julgados encontrado ao final de cada ano (Oliveira Filho, 1946:389).

Independentemente deste fato, o número de processos referente ao ano 2000 por si só constitui motivo de preocupações: 105.307 processos recebidos e 86.138 julgamentos. Em apenas um ano, recebeu-se volume de processos equivalente a quase um terço de toda a década de noventa, causando um acumulo de, no mínimo, 19.169 feitos.

A “crise”, intuitivamente, conduz a mecanismos que limitam o ingresso de processos na Corte Suprema, como a menor tolerância as falhas na interposição de recursos (ausência de procurações, de peças necessárias à formação do instrumento etc.). Por outro lado, há as restrições impostas pelo Supremo a sua própria competência, como, verbi gratia, a interpretação conferida às alíneas “f’ e “n” do inciso I, do art. 102, da Constituição Federal.

Embora o dispositivo constitucional expressamente se refira as entidades da administração indireta, o Supremo vem declinando de sua competência para processar e julgar causas propostas por autarquias federais contra Estado membro, salvo se não tiverem representação no território daquela unidade da federação.

No tocante a alínea “n” do citado dispositivo, firmou a Corte o entendimento de que a sua competência originaria se restringe aos casos de interesses “privativos” de toda a magistratura. Em outros termos, em se tratando de direito extensivo aos demais agentes estatais, como os servidores públicos, compete aos órgãos judiciários de primeira instância processar e julgar o feito.

Ao juiz de primeira instancia, portanto, caberá decidir sobre a existência de um direito que também se lhe aplica, apenas pelo fato de não ser privativo de sua categoria.

A influência do acumulo de processos e nítida, chegando a ser expressamente invocada como razão de decidir, consoante se verificou no cancelamento da Súmula n. 384, ocasião em que o relator, Ministro Sydney Sanches, consignou: “não se trata, é verdade, de uma cogitação estritamente jurídica, mas de conteúdo político, relevante, porque concernente a própria subsistência da Corte, em seu papel de guarda maior da Constituição Federal e de cúpula do Poder Judiciário Nacional”. Ao que concluiu: “se não se chegar a esse entendimento, dia vira em que Tribunal não terá condições de cuidar das competências explícitas, com mínima de eficiência, de eficácia e de celeridade, que se deve exigir das decisões de uma Suprema Corte” (Questão de Ordem no Inquérito n. 587/SP).

Entretanto, na contra mão de todo o exposto, destaque-se que o Supremo Tribunal Federal recentemente admitiu que lhe fossem conferidas novas competências por medida provisória, sem qualquer vinculação com as previstas na Constituição.

É o que ocorre com a possibilidade de novo pedido de suspensão de liminar, decorrente da Medida Provisória n. 1.984 e suas reedições, que alteraram a redação da Lei n. 8.437/92 para permitir a privatização do Banco do Estado de São Paulo S/A – BANESPA, reiteradamente vergastada por liminares concedidas na primeira instancia, algumas mantidas pelos Tribunais de segundo grau.

Neste caso, o Supremo Tribunal Federal, entendendo que a suspensão de liminar não possui natureza recursal, acolheu a nova competência estabelecida em medida provisória, cassando as liminares concedidas para a obstrução do processo de privatização do BANESPA, por constituírem grave lesão a economia pública.

Historicamente, porém, sempre se defendeu que as competências processuais do Supremo Tribunal Federal “não podem ser aumentadas nem diminuídas por lei ordinária” (Barbalho, 1992:235), enquanto os próprios integrantes daquela Corte há muito tempo externam suas preocupações com o acúmulo de processos.

Além dos Ministros Alfredo Buzaid e Filadelfo Azevedo, já citados, observe-se que, no discurso proferido quando de sua posse no cargo de Presidente do STF, em 1985, o decano Ministro Moreira Alves registrava que a sobrecarga de processos “além de desumana, impede que se dedique mais tempo ao exame das questões de real interesse para a ordem jurídica do pais” (Moreira Alves, 1985:135).

O Ministro Carlos Mario da Silva Velloso, outrossim, em diversos artigos sugere a transferência de competências do Supremo Tribunal Federal para o Superior Tribunal de Justiça, pois não “condizem a sua condição de Corte Constitucional” (Velloso, 1995: 15).

O Ministro Sydney Sanches, em se referindo aos processos acumulados no Supremo Tribunal Federal no final de 1996, afirmava que restavam “três mil com os ministros” e que “apenas nesses processos não dispuseram de tempo para elaborar seus relatórios e votos, embora todos trabalhem incansavelmente, mesmo nos feriados e fins de semana” (Sanches, 1997:418).

Mais incisivo, alude o Ministro Celso de Mello a “extrema gravidade dessa situação, que esta a comprometer – e até mesmo a inviabilizar – a atuação do Supremo Tribunal Federal, provocada pelo volume excessivo de recursos e de processos” (Mello Filho, 1998:21, destaques no original), afirmando que pode afetar “o próprio coeficiente de legitimidade político-social do Poder Judiciário” (Mello Filho, 1998:11).

Em “desabafos” a Revista Isto É (Silva, 1996:24), afirmaram os componentes da Suprema Corte: “isso aqui é um massacre” (Min. Sydney Sanches), “nunca trabalhei tanto” (Min. Mauricio Correa), “tanto trabalho afeta a qualidade das decisões” (Min. Celso de Mello), “a perspectiva de voltar as funções de Ministro e assustadora” (Min. Sepúlveda Pertence, quando no final de seu mandato como Presidente da Corte).

Nesta época em que se discute a reformulação do controle de constitucionalidade, com vistas a reforma tributaria prestes a ser efetivada, não se pode olvidar os reclamos da sociedade, que não tolera a morosidade decorrente do acumulo de processos.

Se a própria Corte reconhece a gravidade da situação e a impossibilidade de atender as suas competências atuais, o acréscimo de atribuições, sem uma maior discussão com todos os setores envolvidos (e aqui me refiro aos advogados, ao Ministério Público, aos juízes das diversas instancias, as Faculdades de Direito e a sociedade civil em geral), representa o enfraquecimento da função jurisdicional e, a fortiori, da própria democracia brasileira.

Resta clamar, na expressão de Saramago, pela “responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”.