A dor a mais

5 de novembro de 2004

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Sou pai de quatro filhos. Todos desejados, acalentados, bem-vindos. Felizmente, no âmbito da minha família, nunca deparei com a escolha entre prosseguir ou interromper um processo gestacional, seja qual for o motivo. Se acontecesse de defrontar com tão angustiante situação, deixaria à minha mulher a decisão. É que, em última análise, a mim convulsionariam as dores emocionais e morais do gesto; sobre ela recairiam ainda os sofrimentos físicos e psicológicos de tão radical deliberação, pois é certo que, nesses casos, as repercussões corpóreas e espirituais são mais diretas, profundas e duradouras na mulher. O homem, por mais presente e integrado, acaba assistindo a tudo a certa distância.

Todas essas considerações vêm a propósito do intenso debate que mobiliza o país desde que deferi um pedido de liminar formulado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), possibilitando, assim, a antecipação terapêutica do parto ou, em outras palavras, a interrupção da gravidez de feto anencéfalo, sem o receio da glosa penal. Assenti sobretudo aos argumentos de que a permanência do feto mostra-se potencialmente perigosa, podendo ocasionar danos à saúde e à vida da gestante. Anuí à lógica irrefutável da conclusão sobre a dor, a angústia e a frustração experimentadas pela mulher grávida ao ver-se compelida a carregar no ventre, durante nove meses, um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá. Não pude deixar de concordar em que, para qualquer pessoa nessa situação, ficar à mercê da permissão do Estado para livrar-se de semelhante sofrimento resulta, para dizer o mínimo, em clara violência às vertentes da dignidade humana – física, moral e psicológica. Definitivamente, não tive como aquiescer à ignomínia de, à luz da letra fria – e quiçá morta – da lei, condenar-se a gestante a suportar meses a fio de desespero e impotência, em frontal desrespeito à liberdade e à autonomia da vontade, direitos básicos, imprescindíveis, consagrados em toda sociedade que se afirme democrática. É até possível para alguns passar incólume pela decisão de, mediante simples omissão, escudados pelas lacunas ou obsolescências da legislação, impingir dor e aflição a outrem. Ora, principalmente em caso penoso como o que se põe em discussão, há que se calçar o sapato não com o próprio pé, mas com o pé do outro, de modo a sentir exatamente onde lhe machuca o calo. Seria então de bom alvitre que o julgador, para aguçar o termômetro da sensibilidade, perguntasse a si mesmo, antes de qualquer decisão: e se fosse com a minha filha, minha mulher, minha irmã? Suportaria eu esses nove meses de tormento, de espera sem esperança?

Ao fim e ao cabo, a pergunta que não quer calar é: quem poderá, efetivamente, dimensionar a dor alheia? Quem poderá condenar outrem a querer, antes de tudo, preservar a si mesmo, colocando à margem outros valores? Por que se deve respeitar os valores de quem tem fé e olvidar as convicções de quem ignora dogmas religiosos ou trajetórias espirituais ? Em nome de que deus ou sob a égide de que premissas humanitárias defende-se o direito à efêmera sobrevivência de um em detrimento do risco e do padecimento, sabe-se lá a gravidade das conseqüências, de outro?

Penso que, no cerne da questão, está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. São muitos e de crucial importância os valores em jogo. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana. Ao saber-se portadora de uma nova vida, a mulher percebe inundar-lhe o sentimento de maternidade. São nove meses de substanciais mudanças no seu dia-a-dia, vivenciadas minuto a minuto. O dissabor das modificações físicas, estéticas, logo é suplantado pela alegria de descobrir-se reeditando o impressionante milagre da vida. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade ao nível máximo e todos os esforços são direcionados ao alvissareiro acontecimento que é o nascimento de uma criança. A natureza, entrementes, reserva surpresas às vezes desagradáveis. Diante da notícia da existência de uma deformação irreversível no feto, constatada graças aos avanços tecnológicos no campo da medicina, postos à disposição da humanidade justamente para amenizar padecimentos, e ao agigantá-los, vê-se a gestante em brutal encruzilhada: ou se rende à fatalidade e queda, inerte, ante o lapso do legislador, aguardando submissa o término desse desditoso período, como se cumprisse uma sentença, como se merecesse ser castigada, ou ousa se rebelar, preferindo lutar pelo bem-estar pessoal, quem sabe até resguardando a própria sanidade física e mental.

O certo é que, em se tratando da anencefalia, a ciência médica atua com 100% de certeza. Consoante atestam confiáveis dados estatísticos, 50% dos fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino. Se porventura a gestação chega a termo, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável, não havendo nenhuma chance de serem afastados os efeitos da deficiência. Portanto, diante de tais circunstâncias, não há como refutar a assertiva de que se prolongar a gestação é infligir à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. Como negar que, nessa hipótese, acaba-se por obrigar a gestante a conviver diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta de que o feto, dentro de si, nunca poderá se tornar um ser vivo? Se assim é, configura-se situação concreta que foge às restrições relativas ao aborto – que sempre pressupõe a potencialidade da vida. Em suma, a saúde, como definida pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, sob os aspectos físico, mental e social. Daí haver entendido ser mister afastar-se esse distorcido quadro, impedindo-se que se projete no tempo tão esdrúxulo drama – essas as razões que me levaram à concessão da comentada liminar.

Logicamente, diante da complexidade das questões envolvidas, da importância dos valores em jogo, é bastante compreensível – e até desejável – que toda a sociedade se manifeste num salutar e profícuo debate de idéias e opiniões – sem cerceamentos ou preconceitos de qualquer espécie. Estamos numa era em que mais do que nunca é preciso exercitar a tolerância e cultivar o respeito pelas manifestações externadas pelos diversos segmentos sociais. Há que se ouvir não só pessoas com experiência e autoridade na matéria, mas todos os que, de uma forma ou de outra, sintam-se alcançados pelo desfecho da controvérsia e queiram ou entendam possam dar alguma contribuição. Por isso, como relator do processo, resolvi incentivar o debate, com o intuito de enriquecê-lo, abrindo oportunidade a que interessados – na simples condição de parte do tecido social – pronunciem-se. Bem sei que a discussão jamais se esgotará, tantos e tão significativos mostram-se os aspectos envolvidos. De minha parte, serei todo ouvidos, estando pronto à evolução se convencido da erronia do pronunciamento implementado no campo acautelador. Que, ao final, com respaldo na necessária lógica da razão, com esteio no arcabouço normativo-constitucional, mas sobretudo consideradas as vertentes éticas e humanitárias que se encontram no âmago da questão, chegue a Corte à decisão mais sábia, mais prudente, mais justa, como sempre sói acontecer. Oxalá assim seja mais uma vez.