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A Ética pós-moral: Uma visão escatalógica da norma tradicional

31 de março de 2008

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Gilles Lipovetsky, em seu “Crepúsculo do Dever”, parodiando, obviamente, o “Crepúsculo dos Ídolos”, de Friedrich Nietzsche, propõe-se a analisar, com rigor pós-moralista, o atual estágio da sociedade dita pós-moral. Este estágio decorreria de uma drástica ruptura da ética tradicional, regida pelo acendrado culto ao dever, tendo como paradigma, dogma e postulado, a exaltação do desapego benemérito em relação à sua vontade pessoal, com a ética hedonística e libertária, que privilegia o individualismo em todas as instâncias valorativas possíveis.
Lipovetsky, com a frieza de um legista, disseca o cadáver da moral estabelecida, gestora de duzentos anos do arcabouço democrático no mundo ocidental, segundo a qual o indivíduo é obrigado a manter, perenes e sacralizadas, virtudes cingidas pelos laços heterônimos ditados por exigências de padrões costumeiros engessados, para os quais o conceito de dever é relativo e nunca, absolutamente, uma conduta de escolha própria ou uma conquista eclodida na necessidade de prover um projeto axiológico estritamente pessoal.
A sociedade pós-moralista não é, para Lipovetsky, como pode parecer, uma ruptura sem onerosidade nem complicações. O bem-estar consumista e hedonista não se deslinda das obrigações de responsabilidade coletiva, apenas deixa o indivíduo livre para fazer o bem, sem remorso e sem compromissos com qualquer ordem preestabelecida, tendente a anular a liberdade de fruir do prazer e das satisfações pessoais.
A época pós-moral é uma ruptura sem retorno, mas a ruptura é com o tradicionalismo dos interditos morais preestabelecidos pelos oráculos que ditam o que se deve fazer para merecer o acolhimento e a estima dos seus coaldeados. Com efeito, o que há não é uma negação radical do bem em si, como costuma se entender, mas a liberdade de tratar esse mesmo bem a nosso modo, sem que o nosso direito de gozar a existência seja controlado por vontade que não a nossa. A responsabilidade moral com o ecossistema, o Estado e o indivíduo, continua com sua importância, até mesmo por imperativos de sobrevivência em grupo. É claro que as regras são mais deontológicas e mais lógicas do que éticas, porque visam, sobremodo, ao dever de coexistir do que ao de parecer bom.
O paradoxo, ou a aparente negação da sociedade pós-moralista em si mesma, é o espectro virtual de graves chamamentos à eticidade no estado consumista, materialista e amoral em que vivemos, onde a relação homem-homem é superada pela relação homem-coisa. As massivas campanhas em favor da bioética, do ecossistema e da saúde pública, não significam a negação do egotismo ou a exaltação humanística da fraternidade, mas a necessidade de manter boas regras no interior da nave-mãe Terra, em que todos se aboletam.
Tem que ser levado em conta que, em qualquer relação entre pessoas, deve existir um mínimo ético. Este minimalismo tem, em geral, duas vertentes: uma localizável no indivíduo e outra na sociedade ou no mundo onde ele estiver inserido. Na primeira acepção, esse minimalismo é a menor existência possível de imposição heterônoma – da sociedade para o indivíduo. Na segunda, é o reconhecimento de imposições estritamente necessárias à coexistência dos indivíduos, de maneira que nenhuma delas penetre o âmago da liberdade, do querer e do fazer do indivíduo, quando isso condisser com o seu gosto pessoal, sem prejuízo de outrem.
O autor de “Crepúsculo do Dever” explicita, ainda, o chamado imperativo narcísico, em contraposição ao imperativo categórico kantiano, o bem teleológico visado pelo indivíduo, que se afirma com os ideais do pós-moralismo. Para ele, a ética da felicidade própria para satisfazer seus gozos pessoais não expira no consumismo ou na exacerbação da libido sem culpa. O corpo também deve ser cultuado com tudo aquilo que possa satisfazê-lo no conforto, na higiene, no culturalismo físico das academias, nos cuidados estéticos e dietéticos, e nas preconizações da longevidade.
Sendo o culto de si mesmo, o narcisismo supera as instâncias valorativas do imperativo categórico e aí estaria simbolizada a contestação adversativa da moral tradicional e da ética a ela pertinente.
Mas há uma alça falsa no caixão bem construído de Gilles Lipovetsky. A inefabilidade das leis naturais das quais somos presas contingentes. É que a sociedade não existe em espaço de vontades difusas ou aleatórias, nem sobrevive em anomia absoluta. Em grupo, o individualismo tem um limite; nele, quem não se harmoniza com o corpo é anticorpo, é partícula estranha, fatalmente sujeita à fagocitose social de que é agente natural o Direito.
Ao cabo dessas considerações, somos levados a pensar que a palavra “pós-moderno” é um desses neologismos nascidos in vitro nos laboratórios semânticos dos nossos dias, ou que o processo de “desconstrução” seja coisa unicamente associada ao negaceio brutal do anticristo Friedrich Nietzsche.
A partir dos meados do século XIX, já se chamava de “pós-moralista” o pensador crítico revisionista da filosofia do humanismo moderno, isto sem nenhuma concessão aos respeitáveis devotos do iluminismo. Talvez até com mais rigor, a filosofia das luzes da Era Moderna (séculos XVIII e XIX) – que erigira o antropocentrismo (no centro de tudo todos os interesses do homem) e estabelecera a escala axiológica humanística, que ainda nos orienta –, concomitante ao império da razão, seria objeto dessa devastação, dessa nova maneira de pensar. O próprio Nietzsche costumava deixar bem claro que o seu “martelo”, com o qual filosofava, só sabia destruir “ídolos”, jamais construí-los.
Ora, se os “desconstrutores” que “mataram” Deus, “desmentiram” as verdades, “avacalharam” a metafísica e “implodiram” os “ídolos” somatizados nos ideais superiores, como os direitos do homem, a ciência, a razão, a democracia, o socialismo, a igualdade de oportunidades, lembrados por Luc Ferrry, em seu “Aprender a Viver – Filosofia para os Novos Tempos”, quais são, pois, os entes substitutos capazes de controlar essa massa humana descomunal, de vários bilhões de pessoas distribuídas pela superfície da Terra, muitos vivendo em miséria absoluta, outros em guerra fratricida, embora lutando por causas respaldadas por teologias radicais, sem esperança nenhuma de armistício, remissão ou fim?
Qualquer que seja o motivo do devaneio desses pensadores, dessa pirotecnia de construção, o melhor objetivo a ser colimado, ainda é, indiscutivelmente, a paz. O melhor alentador da harmonia ainda é a Justiça, voltada aos direitos e garantias fundamentais do homem, para que este não regrida à Idade da Pedra. Destruir essas conquistas do homem, sem substituí-las por algo semelhante ou melhor, seria voltar tudo ao caos, e nesse precipício escatológico e apocalíptico, nem os “desconstrutivistas” nem os “pós-moralistas” teriam condições de sobreviver.