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A equidade no Código do Consumidor

23 de agosto de 2013

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Sergio Cavalieri Filho1. Introdução

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) refere-se à equidade em dois momentos. Pri­­meiramente, no artigo 7o, ao dispor que “os direitos previstos neste Código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade”. No artigo 51, ao tratar das cláusulas abusivas, dispõe o CDC serem nulas de pleno direito “as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que (…) estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade.

Em face da pluralidade de significados atribuídos à equidade e dos vários contextos em que a palavra é utilizada (Teixeira de Freitas1 já observava que o vocábulo equidade é uma das palavras mais utilizadas pelos operadores do Direito, sem que consigam, contudo, satisfazer o seu verdadeiro sentido), este estudo tem por finalidade contribuir para a identificação do sentido da equidade no Código do Consumidor.

2. Conceito multissignificativo

Desde os seus primórdios, a equidade relaciona-se com justiça, liberdade, igualdade, adequação, proporção, retidão e simetria, razão pela qual é impossível lhe dar uma definição rigorosa.

O termo grego epiekeia significa o que é reto, equilibrado, justo. Por sua vez, o termo latino aequitas vai no mesmo sentido. De modo abrangente, é correto dizer que equidade é o valor inspirador do Direito, seu substrato ou sua própria essência, correspondente ao modelo ideal de justiça.

Com sentido de direito justo, a equidade foi utilizada por Celso: “Direito é a arte do bom e do equitativo2”. Celso, ao definir assim o ius, quis chamar a atenção para a circunstância de que o Direito era intimamente penetrado pela aequitas: trata-se de um Direito justo. Cícero também considerava a aequitas como a regra moral do direito, afirmando que “o direito é a equidade estabelecida”3.

Modernamente, a equidade repousa sobre a ideia fundamental da igualdade real, de justa proporção; indica o sentimento de justiça fundado no equilíbrio, na equanimidade, na serenidade, na imparcialidade, na retidão. Sintetiza princípios superiores de justiça que possibilitam ao legislador e ao juiz criar e aplicar o Direito com igualdade e razoabilidade, estabelecendo igualmente o direito de cada um. Em suma, a equidade é a justiça, não da lei, mas a justiça como ideia, noção ou princípio.

3. Funções da equidade

Ao se falar em equidade da lei, equidade da justiça, equidade valor, equidade integrativa, equidade corretiva, equidade interpretativa, equidade quantitativa, esses e outros sentidos atribuídos à equidade na realidade indicam as funções que ela pode exercer. Entre tantas, três merecem destaque: a valorativa, a integrativa e a corretiva.

3.1. Equidade valor 

Como já destacado, a equidade é valor imanente do modelo ideal de justiça, umbilicalmente ligado ao conceito de Direito. Na sua função valorativa, a equidade permeia todos os princípios do Direito, é fundamento da sua coesão e harmonia social. É instrumento do legislador na elaboração da lei, exigindo que este, ao estabelecer a norma jurídica, escolha meios adequados, necessários e proporcionais (razoabilidade).

No Direito romano, a equidade valor foi o fundamento da elaboração do direito honorário, que permitiu que se desenvolvesse e se humanizasse o velho ius quiritium, insulado no hermetismo de prejuízos de origem. O mesmo aconteceu na Inglaterra, por volta do século XVI, com a criação das Cortes de Chancelaria, que, sob a invocação da equidade, contribuíram para a formação de um complexo de princípios (rules of equity) transformados em corpo de normas jurídicas4.

Há muito que se coloca ser a equidade um instrumento do juiz para integrar o Direito ou para ajustá-lo à realidade. Mas a equidade é antes de tudo parâmetro para a atividade legislativa, ideal condutor de todo o ordenamento jurídico. As leis devem ser justas e, para serem justas, não podem se afastar do ideal de justiça (equidade). Para haver congruência entre a norma e suas condições externas de aplicação – causa, suficiência, vinculação à realidade –, é preciso se harmonizar com o ideal de justiça.

Essa é a oportuna lição de Sílvio Venosa: “Tratamos aqui da equidade na aplicação do Direito e em sua interpretação, se bem que o legislador não pode olvidar os seus princípios, em que a equidade necessariamente deve ser utilizada para que a lei surja no sentido da justiça5. Agostinho Alvim refere-se, também, à equidade valor, embora a denominando de equidade legal, verbis:No segundo caso – equidade legal –, a justiça seria aproximada, pois ocorre quando o próprio legislador minudencia a regra geral, especificando diversas hipóteses de incidência da norma. Haveria uma aproximação ao caso concreto, mas não uma justiça perfeita (…) a equidade está no direito e não fora dele6. Washington de Barros Monteiro lembra que “a equidade, como ideal ético de justiça, deve entrar na formação mesma da lei7. Nas palavras de Ferreira Borges, “a lei sem equidade é nada; os que não veem o que é justo ou injusto senão através da lei nunca se entendem tão bem como os que o veem pelos olhos da equidade.8

Em suma, justiça e equidade (valor) são inseparáveis. A justiça é uma virtude que consiste em dar a cada um o que é seu. Representa basicamente uma preocupação com a igualdade e com a proporcionalidade. A primeira, implica uma correta aplicação do Direito, de modo a evitar o arbítrio; a segunda, significa tratar de modo igual os iguais e de modo desigual os desiguais, na proporção de sua desigualdade e de acordo com seu mérito. Equivalência e proporção.9

Temos como certo que o legislador valeu-se abundantemente da função valorativa da equidade ao estabelecer a vulnerabilidade do consumidor como pedra de toque de todo o sistema consumerista, bem como na modificação e na revisão de cláusulas contratuais excessivamente onerosas, na proteção contra as práticas e cláusulas abusivas e na inversão do ônus da prova entre os direitos básicos do consumidor. O próprio princípio da equivalência contratual, núcleo dos contratos de consumo, tem por fundamento a equidade. O desequilíbrio do contrato e a desproporção das prestações das partes ofendem o princípio da equidade.

Enfim, esses e outros revolucionários institutos do CDC foram consagrados em busca do modelo ideal de justiça nas relações de consumo, ou, como está expresso no próprio Código, com base na “harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo, na compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico (…), na boa-fé e no equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores” (art. 4o, III).

3.2. Equidade integrativa

A lei, por necessidade lógica, é genérica e universal, ou, como observa Ruggiero, “[o] direito positivo, na verdade, não pode proceder senão por preceitos e disposições de caráter geral, pois que não pode observar cada caso individualmente e as circunstâncias particulares de cada relação de fato; regula o que sucede normal e geralmente (id quod plerumque accidit) e, baseando-se na medida dos casos que sucedem mais frequente e vulgarmente, formula por abstração e quase como uma operação estatística a norma fixa e universal à qual todos os casos que se verifiquem no futuro devem obedecer.”10

Entretanto, por mais abrangente e minuciosa que seja, a lei não pode prever todas as circunstâncias particulares que se verificam na vida real. Não é raro ocorrer que o caso concreto apresente peculiaridades diversas das previstas ou que não foram previstas na lei. É aí que tem lugar a função integrativa da equidade, a mais conhecida e usual. Uma vez que a lei falhou por excesso de simplicidade, caberá ao juiz suprir a omissão estabelecendo a regra que o próprio legislador teria estabelecido se tivesse conhecimento do caso.

Aristóteles, um dos primeiros filósofos gregos a tratar da equidade integrativa, na sua obra A retórica, disse que, “quando houver um vazio ou uma lacuna na lei, pode o juiz usar da equidade não para corrigir a norma existente, mas para suprir uma lacuna. Essa equidade integradora, que o juiz vai empregar no vazio da lei, é alcançada mediante o exame das circunstâncias do caso e o encontro de uma solução que esteja de acordo com o ordenamento e realize a justiça.”11

Desde Aristóteles, portanto, a equidade integrativa tem por função permitir ao juiz, havendo lacuna ou omissão na lei, resolver o caso, sem chegar ao ponto de criar uma norma, como se fosse o legislador. Como bem arremata Amaral Neto, a equidade é para Aristóteles “o método de aplicação de lei não escrita para remediar a aplicação da lei escrita.”12

Temos, também, como certo que a equidade a que se refere o CDC no seu art. 7o – “[os] direitos (…) que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade” – é a equidade em sua função integrativa, no caso de lacuna no sistema consumerista. Deve, então, o juiz procurar expressar, na solução do caso, aquilo que corresponda a uma ideia de justiça da consciência média, que está presente na sua comunidade. Será, em suma, a justiça do caso concreto, um julgamento justo, temperado, fundado no sentimento comum de justiça.

3.3. Equidade corretiva

Além da equidade integrativa, ou além dessa função da equidade, Aristóteles se refere à equidade corretiva, em Ética a Nicômaco, aquela que o juiz vai aplicar quando tiver necessidade de afastar uma injustiça que resultaria da aplicação estrita da lei. É uma espécie de correção à regra geral, que deixa de ser aplicada diante da peculiaridade da espécie. Na sempre lembrada lição de Caio Mário, “considerado o sistema de direito positivo, ainda ocorre a presença da equidade, com a ideia de amenização do rigor da lei. Equiparada ou aproximada ao conceito de justiça ideal, a equidade impede que o rigor dos preceitos se converta em atentado ao próprio direito, contra o que Cícero já se insurgia ao proclamar ‘summum ius, summa injuria’.”13

Na sua função corretiva, a equidade permite ao juiz ir além da lei para garantir a aplicação do justo. Por outras palavras, o direito, que é obra da justiça para estabelecer uma relação de igualdade e equilíbrio entre as partes, na justa proporção do que cabe a cada um, permite ao juiz aplicar, em certos casos, a equidade corretiva. Essa equidade vai além da lei, porque procura garantir a aplicação do espírito da lei. Lembra o mestre Ruy Rosado a lição de São Tomás, segundo a qual “a equidade não é contra o justo em si, mas contra a lei injusta; quando ao juiz é permitido o uso da equidade, ele pode ir além da lei para garantir a aplicação do justo. O direito, que é obra da justiça para estabelecer uma relação de igualdade entre as partes, na justa proporção do que cabe a um e a outro, permite ao juiz julgar com equidade.”

“Para aplicar a equidade ao caso concreto”, prossegue o Ministro Ruy Rosado, “nesse sentido de que é preciso afastar a lei injusta para obter a aplicação do princípio de justiça, disse ainda Aristóteles que o juiz deve usar a régua dos arquitetos de Lesbos, flexível e maleável, que permite ao engenheiro, ao medir o objeto, acompanhar os contornos desse objeto. Essa, diz ele, é a régua da equidade. Essa sempre é a régua do juiz, pois, ao tratar de aplicar a lei, deve o julgador usar uma régua que lhe permita ajustar a sua decisão à hipótese em exame, ajustá-la àquele caso, para fazer a justiça do caso concreto. Nesse sentido, a equidade é um princípio e uma técnica de hermenêutica, sempre presente em toda aplicação da lei.”14

Temos igualmente como certo que é à equidade corretiva que se refere o CDC quando, no inciso IV, do art. 51, fulmina de nulidade as cláusulas contratuais que sejam incompatíveis com a equidade. A norma dá ao juiz a possibilidade de valoração da cláusula contratual, invalidando-a (total ou parcialmente) naquilo que for contrária à equidade e à boa-fé. O juiz não julgará por equidade (como no caso de equidade integradora), mas dirá o que não está de acordo com a equidade no contrato sob seu exame, dele excluindo o que for necessário para restabelecer o equilíbrio e a justiça contratual no caso concreto.

4. Limites ao emprego da equidade 

Por todo o exposto é de se concluir que o emprego da equidade pelo juiz deve se limitar às hipóteses previstas no CDC. Em sua função integrativa, permite ao juiz suprir a omissão do legislador e preencher eventual lacuna do sistema consumerista. Por sua função corretiva, permitido será ao juiz afastar obrigações iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, anular cláusulas contratuais excessivamente onerosas, etc., em busca de uma solução equitativa.

A equidade, entretanto, em nenhuma  hipótese poderá ser fundamento para afastar o direito positivo e se fazer livremente a justiça do caso concreto. De Page, citado por Caio Mário, já advertia que a equidade “não pode servir de motivo de desculpa à efetivação das tendências sentimentais ou filantrópicas do juiz (…) pois que a própria norma já contém os temperos que a equidade naturalmente aconselha.”15

Por último, observa Caio Mário que a equidade “é, porém, arma de dois gumes. Se, por um lado, permite ao juiz a aplicação da lei de forma a realizar o seu verdadeiro conteúdo espiritual, por outro lado pode servir de instrumento às tendências legiferantes do julgador, que, pondo de lado o seu dever de aplicar o direito positivo, com ela acoberta sua desconformidade com a lei. O juiz não pode reformar o direito sob pretexto de julgar por equidade, nem lhe é dado negar-lhe vigência sob fundamento de que contraria o ideal de justiça. A observância da equidade, em si, não é um mal, porém a sua utilização abusiva é de todo inconveniente. Seu emprego há de ser moderado, como temperamento do rigor excessivo ou amenização da crueza da lei.”16

Notas ____________________________________________________________________

1 FREITAS, Teixeira de. Vocabulário jurídico: com apêndices. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1883. Verbete “equidade”, p. 66.

2 ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. v. 1. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense, [S.d.], p. 96.

3 Idem.

4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. I. 20.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 76.

5 VENOSA, Silvio. Direito Civil: parte geral. 12.ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 26.

6 ALVIM, Agostinho. Da equidade. In Revista dos Tribunais, v. 797, p. 767-770.

7 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: parte geral. v. 1. 25.ed. São Paulo: Saraiva, p. 44.

8 BORGES, Ferreira. Diccionário jurídico-comercial. Pernambuco: Typographia de Santos e Companhia, 1843, v. I. Verbete “equidade”, p. 150.

9 AMARAL NETO, Francisco dos Santos. A equidade no Código Civil brasileiro. In R. CEJ. Brasília, n. 25, p. 17, abr./jun. 2004.

10 RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil, Ed. Saraiva, 1971, 3.ed. v.I, p. 27

11 apud Ruy Rosado de Aguiar Júnior. Comentários ao novo Código Civil, arts. 472 a 480. v. VI, tomo II, Gen/Forense, p. 155.

12 Op. cit. p. 19.

13 Op. cit. p. 76.

14 Op. cit. p. 154.

15 Op. cit. p. 77.

16 Op. cit. p. 76-77.