A estrutura jurídica de Itaipu

28 de fevereiro de 2010

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O novo governo paraguaio, presidido pelo ex-bispo Fernando Lugo, pretende receber anualmente US$1,5 bilhão pela energia elétrica vendida ao Brasil após pretendida revisão do Tratado de Itaipu. Trata-se de cifra quase seis vezes maior do que a desembolsada pelo governo brasileiro desde o início de 2007.
O Tratado de Itaipu, que criou a binacional, é obra de inteligente engenharia jurídica, pensada e elaborada pelo saudoso Professor Miguel Reale, constituindo-se numa lição de costura geopolítica que pôs fim a um conflito de fronteira, gerando a partilha de um recurso natural comum: as águas do Rio Paraná. Gerou uma empresa atípica: é binacional regendo-se pelas normas de Direito Internacional Público. Não é estatal, nem sociedade por ações.
Em conferência proferida no Conselho Técnico de Economia, Sociologia e Política de Federação do Comércio do Estado de São Paulo, o Professor Reale acentuou as providências que antecederam a criação da binacional: o cuidadoso exame dos problemas de Direito Internacional envolvidos na área.
A hidrelétrica de Itaipu é constituída pelas “Centrais Elétricas Brasileiras” (Eletrobrás) e pela “Administración Nacional de Eletricidad”, do Paraguai (ANDE), com igual participação do capital, regendo-se pelas normas do Tratado e do Estatuto.
Demonstrando a característica dessa estrutura jurídica sui generis, Reale lembrou que embora a empresa seja constituída pela Eletrobrás e a ANDE, o Estatuto só poderá ser alterado mediante autorização prévia dos dois governos.
Surgiu, assim, uma “entidade internacional de natureza empresária”; pois, em função do aproveitamento dos recursos hídricos comuns, poderão ser resolvidas as situações jurídicas e o quadro de direitos e deveres, respeitando sempre o princípio de igualdade das soberanias, que desde as lições de Rui Barbosa, em Haia, constitui um dos elementos basilares de nossa política externa.
Importante princípio de paridade e de respeito mútuo presidiu a elaboração do Tratado de Itaipu. O Estatuto da empresa pública binacional permitiu superar o impasse que surge em toda sociedade anônima, onde dois grupos detenham número igual de ações. Dada a natureza do empreendimento, não pode haver, na Itaipu, predomínio de uma parte sobre a outra, transferindo-se eventuais divergências para o plano diplomático: entendimento e acerto entre os dois governos, inclusive no tocante à interpretação das cláusulas do Tratado e seus anexos.
Embora o Tratado e o Estatuto não confiram explicitamente personalidade jurídica autônoma à Itaipu, tal configuração está implícita no artigo IV do Estatuto: “a empresa terá capacidade jurídica, financeira e administrativa e também responsabilidade técnica, para estudar, projetar, dirigir e executar as obras que tem como objeto, pô-las em funcionamento e explorá-las, podendo, para tais efeitos, adquirir direitos e contrair obrigações”.
No tocante ao tipo de royalty previsto no artigo XV do “Tratado”, é devido pela Itaipu aos dois países em razão da utilização do potencial hidráulico, devendo ser pago em dólares.
Relevante também é o ponto relativo à atribuição de poderes outorgados pelos dois governos à entidade por eles criada com o fim de explorar os recursos hídricos possuídos em condomínio, assegurando-lhes, assim, ampla isenção fiscal, quer para os materiais e equipamentos que adquirir em qualquer dos dois países ou importar de terceiros, para utilizá-lo na construção da Central Elétrica, quer sobre os lucros da empresa ou os pagamentos por ela efetuados. Os dois governos comprometeram-se, ainda, a não colocar qualquer entrave ou gravame fiscal no movimento de fundos da Itaipu que resultar do Tratado, bem como garantir livre trânsito aos materiais adquiridos ou importados (Tratado, art. XII) e a conversão cambial necessária ao pagamento das obrigações assumidas.
O artigo IV do Estatuto configura explicitamente perso­nalidade jurídica autônoma à Itaipu. Como essa personalidade jurídica se destina à exploração de um bem público, outorgado conjuntamente pelos dois estados “condôminos”, resulta mais do que caracteriza a existência de uma pessoa jurídica pública de caráter internacional, como conclui magistralmente o criador da Itaipu, Professor Miguel Reale.
O Tratado de Itaipu salienta no artigo XIII que a energia produzida será dividida em partes iguais, sendo reconhecido a cada um dos países o direito de adquirir a que não for utilizada pelo outro para seu próprio consumo, assegurada sempre a aquisição do total da potência instalada.
Ao entregar a Ordem Nacional do Mérito ao Professor Miguel Reale, o Presidente Fernando Henrique Cardoso ressaltou o papel essencial que ele teve na definição da Itaipu binacional, como tratadista, propositor e orientador do Tratado que permitiu um relacionamento adequado com Paraguai, que se espera continue prosperando.
O Ministro Celso Amorim tem reiterado que a essência do Tratado de Itaipu não pode ser negociada. Pelos motivos desenvolvidos neste artigo, estou de pleno acordo com o nosso Ministro das Relações Exteriores.