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A exceção do domínio em ação possessória

24 de julho de 2012

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O problema

As Organizações Não Governamentais – ONGs1 que patrocinam os interesses dos trabalhadores sem terra, elegem os imóveis rurais a serem invadidos, a partir da existência de problemas com os seus títulos de propriedade.

Nos conflitos possessórios promovidos pelos fazen­deiros,  surge, então, como matéria de defesa dos autores da invasão multitudinária, a alegação de carência da ação possessória por falta de interesse-adequação (ou, mesmo, de improcedência), em razão do autor não possuir título, ou deste ser inválido ou ineficaz, em inusitada exceção do domínio. Os processos eternizam-se, então, com a infindável produção de complexas provas para resolver a questão dominial, não sendo incomum remontar a registros paroquiais, avisos régios, cartas de sesmarias, etc.

A exceção do domínio

A vedação à inadmissibilidade da alegação de domínio da coisa objeto do interdito possessório (“feci quia dominus sum”), ou, simplesmente, “exceptio proprietatis” ou “exceptio dominii, constitui princípio cristalizado há milênios.

Embora excepcionalmente admitida entre parte dos glosadores, com base no princípio “comete dolo o que pede aquilo que deve ser restituído” (“dolo facit qui petit quod redditurus est”), essa admissão decorreu, dentre outras causas, a de ter essa corrente entre os glosadores, baseado no direito germânico, em que não havia a distinção entre o petitório e o possessório, em razão da Gewere2.

Contudo, sempre prevaleceu a repulsa à exceção de domínio nos interditos possessórios. Astolpho Rezende observa que, no Direito Romano, “o réu não se podia de­fender com a alegação de domínio, isto é, ser proprietário da coisa que constituía objeto do interdito, em face da própria natureza e finalidade deste, e dos fundamentos de proteção da posse contra qualquer violência, fosse esta meramente turbativa, ou expulsiva.” 3

Savigny, para demonstrar a inadmissibilidade da exceção de domínio do bem objeto do interdito possessório, invoca trecho de Ulpiano, pelo qual a controvérsia relativa à posse é, por sua natureza, independente da que tem a propriedade: “nihil commune habet proprietas cum possessione”4

A teoria de Ihering sustenta integralmente a vedação à exceção do domínio, pois tem por fundamento a proteção da posse em si mesma, sem cogitar a sua causa subjacente: “os interditos foram introduzidos para regular provisoriamente a relação possessória durante o processo sobre a propriedade. A posse tornou-se uma relação independente, separada da propriedade. O motivo histórico da introdução dos interditos baseia-se no interesse de regular a posse, no debate que concerne à propriedade.”5

O Código do Processo Civil francês, promulgado por Napoleão, consagrou o princípio da separação: “le possessoire et le petitoire ne seront jamais cumulés”.

Título 58, do Livro 4o, das Ordenações Filipinas – “Dos que tomam forçosamente a posse da coisa, que outrém possui”, estabelecia:

Se alguma pessoa forçar, ou esbulhar a outra, da posse de alguma casa, ou herdade, “ou de outra possessão”, não sendo primeiro citado e ouvido com sua justiça, o forçador perca o direito que tiver na coisa forçada, de que esbulhou o possuidor, o qual direito será adquirido e aplicado ao esbulhado, e lhe seja logo restituída a posse dela. E se o forçador não tiver direito na coisa em que a força, pagará ao forçado outra tanto quanto a coisa valer, e mais todas as perdas e danos, que na força, ou por sua causa dela em qualquer modo, pagará ao forçado outro tanto quanto a coisa valer, e mais todas as perdas e danos, que na força, ou por causa dela em qualquer modo receber. E posto que alegue que é senhor da coisa, ou lhe pertence ter nela algum direito, não lhe seja recebida tal razão, mas sem embargo dela seja logo constrangido a restituí-la ao que a possuía, e perca todo o direito que nela tinha, pelo fazer por sua própria força, e sem autoridade da justiça.

§ 1o E esta pena de o forçador perder o direito, que na coisa tinha, haverá lugar na força verdadeira; porque, se fosse quase-força, assim como se algum ocupasse a posse de coisa vaga, que não fosse por outrem corporalmente possuída, a qual o forçador cuidava ser alheia, e depois achou que era sua, será o forçado recebido a provar sumariamente como a coisa é sua; e se provar até quatro dias peremptórios por escritura pública, ou por testemunhas, nos casos que por nossas Ordenações podem ser recebidas, será relevado da pena dita pena, e de qualquer outra que no caso couber. Porém, sem embargo de assim provar, será o esbulhado restituído à sua posse. E sendo restituído, poderão litigar ordinariamente sobre a propriedade. E não provando dentro nos quatro dias como era sua, perderá de todo o direito que na coisa tinha, sem lhe ser dado nunca mais tempo para provar como era sua.

O “Assento de 16 de fevereiro de 1786”, interpretando o “Alvará de 9 de Novembro de 1754”, sobre a transmissão da posse civil nas sucessões legítimas, dizia que se deve
julgar transmissível a posse, até para se não seguir o visível absurdo de se julgar nos interditos restituitórios, e nos outros casos ocorrentes no foro, a referida posse aquele mesmo, a que, pelo processo e evidência notória dos autos, se depreende não lhe dever ser julgada a propriedade.” O “Assento” suscitou infindável controvérsia, assim resolvida por Lafayette6:

A ação de força espoliativa não se ilude com a exceção de domínio. O autor do esbulho é sempre condenado a restituir a coisa ao esbulhado, embora alegue domínio evidente e notório; fica-lhe, porém, salvo o direito de disputar por ação competente a propriedade da coisa.

A pena da perda do direito sobre a coisa, cominada ao forçador, caiu em desuso.

A disposição do Direito romano, segundo a qual era inadmissível nas ações possessórias a exceção do domínio, tem sido uniformemente aceita pelos Códigos modernos. Esta exceção não tem só por causa a repressão do procedimento do autor da violência, que, deixando de invocar a autoridade legal, faz justiça por suas próprias mãos; mas resulta também da diferença entre a ação possessória e a petitória.

O domínio e a posse são duas entidades radicalmente diferentes; cada uma é protegida por ações igualmente diversas; assim, pois, uma sentença proferida em ação possessória evidentemente não poderia constituir coisa julgada em relação ao domínio.

Neste particular, o nosso Direito reproduz o Direito romano e está de harmonia com o Direito moderno.

Pensam alguns que o Assento de 16 de fevereiro de 1786 derrogou as citadas Ordenações, permitindo ilidir-se o interdito com a exceção de domínio evidente e notoriamente constante dos autos.

Essa opinião é o resultado da inteligência errônea do dito assento.7

O art. 505 do Código Civil de 1916, acabou contrariando a tradição do direito brasileiro anterior, ao dispor: “Não obsta à manutenção, ou reintegração de posse, a alegação de domínio, ou de outro direito sobre a coisa. Não se deve, entretanto, julgar a posse em favor daquele a quem evidentemente não pertencer o domínio.”

Já em 1920, em acórdão de 4 de agosto, relatado pelo Ministro Pedro Lessa, o Supremo Tribunal Federal mitigou esse regra, o que, na prática, manteve a orientação do direito anterior:

A alegação de domínio, do último período do art. 505 do Código Civil, só tem cabimento, e muito racionalmente, quando dois litigantes pretendem a posse, alegando domínio. Nesse caso, é justíssimo que se reconheça a posse àquele a quem evidentemente pertencer o domínio, e que se negue a posse a quem evidentemente falece o domínio.

Esse entendimento desaguou na Súmula 497 do Supremo Tribunal Federal

Será deferida a posse a quem, evidentemente tiver o domínio, se com base neste for ela disputada.

Por tal razão, Consolo ensinava8:

Uma regra a observar é que as exceções, ou os pedidos reconvencionais do réu, não devem ultrapassar o círculo da indagação possessória, e invadir o mérito da controvérsia. Ultrapassa-se o círculo da indagação possessória quando o réu procura contrariar a posse do autor com títulos que concernem ao mérito, o direito de propriedade ou os seus desmembramentos. A regra fere tanto o autor como o réu; o primeiro não pode fundar a sua ação, como o segundo não pode fundar a sua exceção em títulos de mérito. Aquele verá repelida a sua ação; este, a sua exceção. As exceções do réu não podem fazer mudar nunca a índole do juízo, converter o possessório em petitório; o juiz não as terá em conta; mantendo-se o autor na órbita possessória, o juízo não sofrerá mudança.

No mesmo sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ESPECIAL No 327.214 – PR (2001/0064905-6) RELATOR: MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA EMENTA –DIREITO CIVIL. INTERDITO PROIBITÓRIO. EXCEÇÃO DE DOMÍNIO. ART. 505, SEGUNDA PARTE, CC/1916. ENUNCIADO SU­MULAR No 487/STF. INCIDÊNCIA. PRECEDENTES DO STJ. LIMINAR INAUDITA ALTERA PARTE. AGRAVO. SENTENÇA DEFINITIVA. PENDÊNCIA DE JULGAMENTO DA APELAÇÃO. RECURSO ESPECIAL DESACOLHIDO.

I – A proteção possessória independe da alegação de domínio e pode ser exercitada até mesmo contra o proprietário que não tem posse efetiva, mas apenas civil, oriunda de título.

II – Na linha da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do verbete sumular n. 487/STF, firmada na vigência do Código de 1916, cabe a exceção de domínio nas ações possessórias se com base nele a posse for disputada.

O art. 1.210, § 2o, do Código Civil de 20029, estabeleceu a absoluta separação entre os juízos possessórios e petitórios, cristalizando a orientação pretoriana do Supremo Tribunal Federal, consubstanciada na Súmula 497 do STF.

Os Enunciados nos 78 e 79 do Conselho da Justiça Federal, aprovado nas Jornadas de Direito Civil de 2002, têm o seguinte teor, respectivamente: “tendo em vista a não recepção, pelo novo Código Civil, da ‘exceptio proprietatis’ (art. 1.210, § 2o), em caso de ausência de prova suficiente para embasar decisão liminar ou sentença final ancorada, exclusivamente, no ‘ius possessionis’, deverá o pedido ser indeferido e julgado improcedente, não obstante eventual alegação e demonstração de direito real sobre o bem litigioso”; e “A ‘exceptio proprietatis’, como defesa oponível às ações possessórias típicas, foi abolida pelo Código Civil de 2002, que estabelece a absoluta separação entre os juízos possessório e petitório”.

Outrossim, deixou absolutamente cristalino ser de todo irrelevante, do ponto de vista da proteção possessória, a questão da propriedade e a relativa a outros direitos quaisquer sobre a coisa.

O possuidor assume, pois, uma posição sobranceira que lhe assegura a proteção específica (“ius possessionis”), independentemente de qualquer discussão em torno do ius possidendi.

Nada obstante isso, alguns precedentes jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça têm decidido pela vigência da Súmula 487 do STF, que não afrontaria o art. 1.210, § 2o, do CC, com isso retomado a disposição do art. 505, parte final, do Código Civil de 1916:

AgRg no RECURSO ESPECIAL No 906.392 – MT (2006/0262398-5) – REL. MIN. JOÃO OCTÁVIO DE NORONHA EMENTA – PROCESSO CIVIL. ART. 535, I E II, E 555 DO CPC. CONTRARIEDADE. IMPROCEDÊNCIA DA ARGUIÇÃO. REEXAME DE PROVA. SÚMULA N. 7 DO STJ. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. SOBREPOSIÇÃO DE TÍTULOS. DISPUTA DE ÁREA. DISCUSSÃO DA POSSE PELOS LITIGANTES COM BASE NO DOMÍNIO. SÚMULA N. 487 DO STF. QUESTÕES FÁTICO-PROBATÓRIAS. REEXAME. SÚMULA N. 7 DO STJ. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. SÚMULA N. 83 DO STJ. DECISÃO AGRAVADA MANTIDA.

2. Embora na pendência de processo possessório não se deve intentar ação de reconhecimento do domínio (art. 923 do CPC), constatada a sobreposição de documentos registrais, sob perícia de que os autores têm menos área que prevê seu título de propriedade em confronto com o título apresentado pelos réus, é plenamente cabível a exceção de domínio, se, com base neste, ambos os litigantes discutem a posse.

3. Incidência, no caso, da Súmula n. 487 do STF, assim expressa: “Será deferida a posse a quem evidentemente tiver o domínio, se com base neste for disputada”.

4. Assentada a orientação do Tribunal a quo com base em extenso debate de questões fático-probatórias, circunscritas em matéria pericial acerca da sobreposição de títulos de propriedade, o reexame da causa sob o enfoque da ocorrência de esbulho e atendimento aos requisitos necessários à proteção possessória esbarra no óbice da Súmula n. 7 do STJ.”

Em seu voto, o relator, Min. João Octávio de Noronha, ressaltou que: “Embora na pendência de processo possessório não se deve intentar ação de reconhecimento do domínio (art. 923 do CPC), constatada a sobreposição de documentos registrais, sob perícia de que os autores têm menos área que prevê seu título de propriedade em confronto com o título apresentado pelos réus, é plenamente cabível a exceção de domínio, se com base neste ambos os litigantes discutem a posse. Ainda que a posse mereça proteção legal por si mesma, independentemente da alegação de propriedade ou de outro direito sobre a coisa, nada impede que ocorra a manutenção ou reintegração da posse – art. 1.210, § 2o, do Código Civil de 2002 –, quando deferida a posse em favor de quem comprovar o melhor domínio sobre gleba posto em concorrência com outrem. Não se verifica, pois, nenhuma infringência à norma do art. 505, parte final, do Código Civil de 1916, nem ao disposto no art. 1.210, § 2o, do atual Código Civil, a teor da diretriz jurisprudencial expressa na Súmula n. 487 da Suprema Corte, firmada sob a vigência do diploma civil revogado, ‘in verbis’: ‘Será deferida a posse a quem evidentemente tiver o domínio, se com base neste for disputada’”.

Conclusão

Conclui-se, pois, que a admissibilidade da exceção do domínio em ação possessória (“exceptio proprietatis” ou “exceptio dominii”), é repugnada em toda a história do direito brasileiro, e afronta os arts. 5o, inciso LIV0, da Constituição Federal, e 1.210, § 2o, do Código Civil, ressalvado, contudo, o entendimento jurisprudencial no sentido da subsistência da Súmula 497 do Supremo Tribunal Federal, pela qual se admite a possibilidade excepcional da alegação de domínio, se com base neste for disputada.

A prevalecer essa corrente jurisprudencial, o sistema do atual Código Civil não inovou o sistema anterior.

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Notas

1 “Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST”, “Comissão Pastoral da Terra – CPT”, “Confederação dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG” e respectivas “Federações dos Trabalhadores na Agricultura – FETAGRI”, etc.

2 Em MOREIRA ALVES, Posse, p. 162 e segs. A Gewere é o instituto que, no direito germânico medieval, corresponde à possessio. Segundo Huber, a Gewere se apresenta como forma sob a qual o direito real é defendido, conquistado e transferido; todo direito real é reconhecido no mundo jurídico sob a figura de uma Gewere (em “Die Bedeutung der Gewere im Deutschen Sachenrecht, p. 21, apud MOREIRA ALVES, idem, p. 83).

3 Astolpho Rezende. A posse e sua Proteção, 2a edição, São Paulo, Lejus, 2000, p. 596.

4 Idem, ibidem.

5 Idem, ibidem. Ver, ainda, Os Interditos Recuperandae Possessionis, em Fundamentos dos Interditos Possessórios, p. 96 e segs., não se olvidando, a propósito, que, na época clássica, a possessio civilis e  a possessio ad interdicta dispunham de duas espécies de interditos: os interdicta retinendae possessionis causa (interditos para a conservação da posse) e os interdicta recuperandae possessionis causa (interditos para a recuperação da posse), apud MOREIRA ALVES, opus cit., p. 63 e segs.

6 Apud Astolpho Rezende, cit., p. 572.

7 In “Direito das Coisas”, § 22, no 3, p. 89 e segs.

8 Apud Astolpho Rezende, cit., p. 587.

 Referências_________________________

ALVES,   José  Carlos   Moreira.   Posse,  Introdução histórica, lª ed., Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1985.

A detenção no Direito Civil Brasileiro (conceito e casos), em Posse e Propriedade doutrina e jurisprudência, Saraiva, São Paulo, 1987.

COELHO, Antônio Augusto de Souza.  A propriedade rural na nova Constituição, em A propriedade e os direitos reais na Constituição de 1988, coordenado por Carlos Alberto Bittar, Ed.  Saraiva, São Paulo, 1991.

IHERING, Rudolf von.  A teoria simplificada da posse, baseada na trad. da 2a ed. por ADHERBAL DE CARVALHO, sobre o título Questões de direito civil, Rio de Janeiro, Garnier, 1900, Saraiva, São Paulo, 1986.

PEREIRA, Lafayette Rodrigues.  Direito das Coisas – atualizada conforme o Código Civil de 2002 por Ricardo Rodrigues Gama, t. I, 1ª ed., Campinas, Russel, 2003.

REZENDE, Astolpho. A posse e sua Proteção, 2a ed., São Paulo, Lejus, 2000.

SALEILLES, Raymond.  La Posesión.  Elementos que la constituyen y su sistema en el código civil del Imperio alemán, tradução de J. M. NAVARRO DE PALENCIA, Libreria General de Victoriano Suárez, Madrid, 1909.

SAVIGNY, Friedrich Carl von.  Traité de la Possession en Droit Romain, tradução da 7ª edição alemã para o francês por STAEDTLER, Henri, 4ª ed. Bruyjalant Chrustophe et Cie., Editeurs, Bruxelas, 1893.

SODERO, Fernando Pereira.  Direito Agrário e Reforma Agrária, Legislação Brasileira, São Paulo, 1968.

O Módulo Rural e suas implicações jurídicas, Ltr, São Paulo, 1975.