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A exclusão e o direito à segurança alimentar

5 de novembro de 2005

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Conforme nos diz o prêmio Nobel da Paz John Boyd Orr “a fome tem sido através dos tempos a mais perigosa das forças políticas”. A propósito, foi ela que precipitou a Revolução Francesa, em outubro de 1789, quando uma multidão de mulheres invadiu a Bastilha bradando por pão e incitando uma nova ordem social.

Nos anos de 1840, a fome e a peste instigam, da mesma forma, o clamor do movimento cartista na retórica do “pão ou sangue”.

A fome se revela como algo universal, um quadro sombrio. No século XIX, na China, ela matou cerca de 20 milhões de pessoas. Nos últimos 80 anos do século passado outros milhões de vidas foram destruídas, na Índia, sob o flagelo da fome. Em 1996, divulgando relatório da CIA, o jornal Washington Post, revelou casos de canibalismo na Coréia do Norte, praticados por camponeses na falta de ter com que se nutrir. Cerca de 90% da população, naquele ano, teve alimentação racionalizada em 600 calorias diárias, enquanto se estima que o necessário para o ser humano deva estar na faixa de 2.400 calorias.

Denúncias de desaparecimento de gatos e pombos viraram manchetes dos meios de comunicação no ano seguinte na Coréia. Um jornal de Hong Kong noticiou a execução de várias pessoas condenadas sob a acusação de vender carne humana no mercado negro.

Segundo o relatório da FAO, em 1996, havia 800 milhões de famintos nos países em desenvolvimento, sendo que deste total 215 milhões estavam na África subsaariana. Nicholas D. Kristof correspondente do jornal New York Times tem seu artigo reproduzido no jornal Estado de São Paulo, no dia 28 de maio de 2003, com o título O que foi feito contra o holocausto africano? dizendo a respeito de Eritréia: “ esta encantadora nação foi saudada nos anos 80 como uma das mais brilhantes esperanças da África, um símbolo de renascimento africano. Sua economia crescia até que Hillary Clinton apareceu por aqui… Eritréia agora está se transformando numa ditadura de  bandidos: encarcera evangélicos, prende mais jornalistas que qualquer outro país do continente, e o regime que antes deu poderes às mulheres agora as estupra…o líder que libertou seu povo há uma década agora o está matando de fome”.

O jornal Estadão noticiou no dia sete de outubro de 2002 que a fome chegou a ameaçar 15 milhões de pessoas na Etiópia e Eritréia. Segundo dados da FAO, 5 a 10 milhões de pessoas são vítimas da fome no Afeganistão. No Sudão, a fome mata de 20 a 50 pessoas por dia.  As pesquisas revelam que na África são encontrados 38 milhões de famintos. Deste total, 18 milhões estão na Etiópia, Sudão, Eritréia. Outros 16,4 milhões em sete países da África e 2,7 milhões de pessoas na região dos Grandes Lagos, enfrentando problemas parecidos.

Na Zâmbia, cerca de um quarto da população, ou seja, quase dois milhões e 300 mil pessoas estão em situação caótica em função da seca nos últimos três anos. O êxodo para as cidades fragiliza ainda mais a agricultura. As pessoas se alimentam mais de raízes e animais silvestres.

A extralimitação de valores, a se entender a exclusão social, e neste caso por meio da fome, avança os continentes africano e asiático. Na Coréia do Norte, aproximadamente 70 mil crianças desnutridas podem fenecer de fome em breve. De acordo com a UNICEF, as reservas alimentares estão chegando ao fim. Seria preciso mais de um milhão de toneladas em alimentos para suprir as necessidades apenas este ano. Nos últimos dez anos três milhões de pessoas não sobreviveram à fome.

O Mapa da fome no mundo revela a decadência humana na falta de solidariedade, nos desperdícios alimentares que crescem a cada dia, na distribuição injusta de terras e de rendas. Segundo a FAO, a fome está destruindo a vida de 5 a 20 milhões de pessoas por ano no mundo. Cerca de 100 milhões de indivíduos estão sem teto. Os dados mostram que 1,1 bilhão de indivíduos estão na pobreza; deste, 630 milhões são extremamente pobres. São aproximadamente 150 milhões de crianças subnutridas com idade inferior a cinco anos, uma para cada três existentes no mundo.

As pesquisas da FAO têm as consecutivas perspectivas do percentual da população subnutrida para o ano de 2015 no mundo: Oriente médio e Norte da África, 7%; Sul da África, 23%; Sul da Ásia, 12%, Leste da Ásia, 12%; e , América Latina e Caribe, 6%.

No Sul da Ásia, nos anos de 1990-1992, tivemos 290 milhões de subnutridos; em 1997-1999, 300 milhões; em 2015 a previsão é de 190 milhões, enquanto para 2030 a expectativa chega a 120 milhões.

No Leste da Ásia, nos anos de 1990-1992, os subnutridos chegaram a 270 milhões, que, em contrapartida, diminuíram em 1997-1999. Os índices para 2015 são de 130 milhões de indivíduos. Para o ano de 2030, teremos cerca de 75 milhões de pessoas subnutridas ou desnutridas.

No Sul da África, em 1990-1992, tivemos 160 milhões de pessoas vítimas da subnutrição; em 1997-1999, 190 milhões. No ano de 2015 a tendência é que os índices cresçam alcançando 200 milhões de subnutridos, voltando a cair em 2030, para 180 milhões.

O Oriente Médio e Norte da África contavam em 1990-1992, com 20 milhões de pessoas nesta situação, e em 1997-1999, os índices subiram para 25 milhões. A estimativa para 2015 é que aumente para 30 milhões os subnutridos e que em 2030, eles baixem para cerca de 27 milhões.

Quanto à América Latina e o Caribe foram encontrados, segundo as pesquisas, 60 milhões de subnutridos nos anos de 1990-1992, e 55 milhões nos idos de 1997-1999. As expectativas são de que estes números sejam reduzidos em 2015 alcançando a casa dos 45 milhões de subnutridos e caia para 20 milhões em 2030.

O órgão oficial de dados estatísticos nos EUA, Escritório do Censo, revela que o número de pobres aumentou de 11,3% em 2000, para 11,7% dos 281 milhões de habitantes em 2001. Enquanto o orçamento de defesa absorve 400 bilhões de dólares, o setor social fica com 16 milhões.

Para a FAO, os indigentes no Brasil superam a casa dos 50 milhões de habitantes, ou seja, um número maior que toda a população da Argentina, que é de 38 milhões de cidadãos. O Jornal da Paraíba, do dia 27 de janeiro de 2002, na reportagem de Luciana Oliveira e Elizangela Monteiro divulga os dados da Fundação Getúlio Vargas: a região Nordeste ocupa um dos primeiros lugares na questão de miséria e indigência no país. No Maranhão, 63% das pessoas são consideradas indigentes; no Piauí, 61,7%; no Ceará, 55, 7%; em Alagoas, 55,4%; na Bahia, 54%; em Pernambuco, 50,9%; na Paraíba, 50, 2%; Em Sergipe, 50,14%; e, no Rio Grande do Norte, 46,9% são indigentes. No Centro-Oeste, a exemplo de Goiás, estes números caem para 25, 46%; Minas Gerais, 26,79. Os menores índices estão na região de Santa Catarina ocupando a casa de 14,40% e São Paulo, com 10,40%.

O artigo 5° da Carta Magna brasileira garante, entre outros direitos, o da alimentação. Vejamos o conceito de Segurança Alimentar para a FAO, concebido em 1988: “assegurar que todas as pessoas tenham, em todo momento, acesso físico e econômico aos alimentos básicos que necessitam. Assim, esta política deverá ter três propósitos específicos: assegurar a produção alimentar adequada, conseguir a máxima estabilidade no fluxo de tais alimentos e garantir o acesso aos alimentos disponíveis por parte dos que os necessitam”.

A Segurança Alimentar deve ser percebida como um instrumento capaz de promover o desenvolvimento socioeconômico via agricultura sustentável, que gere riqueza e maior distribuição de seus frutos. A Segurança Alimentar deve garantir o acesso aos alimentos a baixo custo.

O governo brasileiro, em pronunciamento presidencial, no prefácio do Relatório do Brasil para a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento-ECO 92, articula: “Temos reiterado que a pobreza e a miséria, que impõem a milhões níveis de vida incompatíveis com a dignidade humana, são óbices a serem superados para a construção de uma ordem ambiental mundial mais justa, saudável e equilibrada”.

O modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil tem acelerado as desigualdades sociais, engendrado misérias extremas e levado à degradação ambiental, que, de certo modo, já acena a sua vulnerabilidade. Há poucos dias, o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, alertou para o fato de que o Brasil enfrenta a maior crise dos últimos tempos no setor agrícola e que pode vir a importar produtos como o milho, devido ao cambio, taxas de juros, e falta de recursos orçamentários. Segundo ele, a crise na agricultura tem efeito muito maior para o setor do que o impacto da crise política. A previsão é de que haja uma queda de aproximadamente 5% na plantação de grãos no país, além de queda do superávit comercial. Se chover regularmente, a safra para 2006 pode chegar a 120 milhões de toneladas de grãos, caso contrário, cairá para cerca de 110 milhões, enquanto se esperava 132 milhões de toneladas. Assim, poderá haver aumento do preço dos alimentos, o que acarretará também uma maior inflação.

Neste quadro caótico, a Segurança Alimentar torna-se mais uma vez comprometida. Não basta produzir alimentos em quantidades suficientes via agricultura sustentável. É preciso, todavia, permitir o acesso a estes alimentos por meio de sua distribuição eqüitativa entre as várias regiões do país. Conforme o Relatório do Brasil para a Conferência da ONU já mencionado o nosso país apresenta os piores indicadores de qualidade de vida da população. Isto se deve ao fato de que os recursos públicos ou subsidiam os grandes agricultores com financiamentos e créditos agrícolas, ou estes não são empregados de forma adequada.

A Segurança Alimentar foi definida nos seguintes termos na I Conferência Nacional de Segurança Alimentar, em Brasília, em julho de 1994: “ Um conjunto de princípios, políticas, medidas e instrumentos que asseguram permanentemente o acesso de todos os habitantes em território brasileiro aos alimentos, a preços adequados, em quantidade e qualidade necessárias para satisfazer as exigências nutricionais para uma vida digna e saudável, bem como os demais direitos da cidadania!”

Diz-nos Tristão de Athayde, no seu texto O Fiat e o Caos, “onde há riqueza exagerada há pobreza exagerada, isto é, miséria (…). A passagem da força à violência é uma conseqüência dessa perda de noção e da vigência do conceito de limite (…) que só pode ser resolvida na medida em que os donos do poder e da riqueza não se decidirem a limitar-se a si próprios, no seu poder e na sua riqueza, se pretendem evitar   que as vítimas de sua falta de riqueza recorram a meios irracionais, como a violência, para cercear ou agravar situações irracionais. Pois, qualquer que seja o fim da peleja, o Salmista continuará cantando sob os rios da  Babilônia- o abismo chama o abismo. Só o Amor vence o Amor.”.