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A extinção das obrigações do falido pela satisfação parcial do crédito e o princípio constitucional da segurança jurídica

15 de junho de 2016

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Maria Cristina de Brito LimaDe acordo com o Código Civil (Lei no10.406/2002), empresário é aquele que exerce profissionalmente atividade eco­nômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços (artigo 966). Mas o que efetivamente está por trás deste perfil de quem exerce esta atividade profissional? Que figura é esta no contexto brasileiro? O que caracteriza este profissional? O que a sociedade espera dele?

O mestre Rubens Requião (2005) destaca dois elementos essenciais para a configuração da figura do empresário: (i) iniciativa e (ii) capacidade de assumir riscos.

Em outras palavras, a iniciativa do empresário está caracterizada por sua competência para determinar o caminho a ser percorrido pela empresa (estrutura organizada para a produção e circulação de bens ou de serviços), com conveniência e determinação no ritmo de sua atividade.

Já na capacidade de assumir riscos, evidencia-se a aptidão para assunção dos riscos do negócio, pelos quais responderá o empresário, uma vez que a ele cabe analisar as melhores perspectivas para sua atividade, assumindo, ainda, as desvantagens do insucesso.

Nessa linha, tem-se que, para ser empresário, é imperioso que se tenha uma boa dose de audácia, uma visão de longo prazo e uma flexibilidade inovadora, uma vez que não se pode desconsiderar eventuais obstáculos no percurso, os quais devem ser superados.

Na verdade, a observância dessas características acabam por beneficiar toda a sociedade, pois é inegável que a atividade empresarial promove o desenvolvimento econômico e social da Nação. Insta evidenciar que a figura do empresário é imperiosa para que se alcance a estatura de uma sociedade minimamente desenvolvida.

São muitos os exemplos que comprovam a mudança de cidades e pessoas com a chegada de empresas; são empregos criados, diretos e indiretos, são necessidades educacionais e de saúde atendidas, são formas de lazer propiciadas; enfim, é uma mudança plena na vida da sociedade, que só se verifica justamente pela audácia e pelo espírito empreendedor do empresário.

Vale, por exemplo, lembrar como era a cidade de Volta Redonda (RJ) antes da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN); a cidade de Concórdia(SC) antes da (ex) Sadia (atual BRF); a cidade de Pindamonhangaba (SP) sem a empresa Nobrecel S/A Celulose e Papel; a cidade de Ribeirão Preto (SP) sem a Indústria de Alimentos Nilza; o que falar ainda da cidade de Ibema (PR), a qual nascera em 1988 por desmembramento do Município de Catanduvas (PR) e assim fora batizada em homenagem à empresa Ibema Papelcartão, lá sediada.

Amartya Sem (1999:19), fundador do Instituto Mundial de Pesquisa em Economia do Desenvolvimento, laureado com o Prêmio de Ciências Econômicas em memorial de Alfred Nobel de 1998, por suas contribuições à teoria da decisão social e do “welfarestate”, é cirúrgico ao revelar que:

a ligação entre liberdade individual e realização de desenvolvimento social vai muito além da relação constitutiva – por mais importante que ela seja. O que as pessoas conseguem positivamente realizar é influenciado por oportunidades econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por condições habilitadoras como boa saúde, educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas. As disposições institucionais que proporcionam essas oportunidades são ainda influenciadas pelo exercício das liberdades das pessoas, mediante a liberdade para participar da escolha social e da tomada de decisões públicas que impelem o progresso dessas oportunidades.

Por aqui se pode perceber o quão importante é para a sociedade que alguns de seus membros possam desenvolver e nutrir a audácia de ter iniciativa e forte capacidade de assumir riscos pelo seu exercício, pois o Estado “sozinho” não conseguiria suprir todas essas necessidades humanas. Sua função constitucional precípua, portanto, está em ser agente normativo e regulador da atividade econômica, exercendo, na forma da lei, funções de fiscalização, incentivo e planejamento (artigo 174), revertendo o proveito fiscal advindo das atividades econômicas desenvolvidas pelo empresário no atendimento das necessidades sociais (educação, saúde, seguridade social, segurança pública, dentre outros direitos sociais – artigos 6o, 144, 196, 205, 217).

Na essência, se o empresário desempenha bem sua atividade econômica, significa maior circulação de riqueza e, por conseguinte, maior recolhimento de tributos, possibilitando uma melhor arrecadação do Estado para atender ao seu fim primordial. Além dos benefícios decorrentes da atividade econômica propiciarem incremento no PIB do País, o seu exercício ainda tem o condão de incrementar o IDH populacional1.

Sem a atividade empresarial não estaríamos, nem de longe, experimentando o atual nível de desenvolvimento tecnológico em todos os segmentos que hoje o mundo vivencia.

2. Mitigação de riscos

Nada mais justo que, nesse contexto, a sociedade concorde em assumir algumas responsabilidades inerentes ao desenvolvimento econômico e tecnológico, a fim de incentivar que aqueles seus membros audaciosos possam promover o esperado desenvolvimento econômico e social que almejamos. Os empresários assumem os riscos, mas, com efeito, todos nós nos beneficiamos dos resultados.

Veja-se, por exemplo, a telefonia celular. Ela já é parte indissociável do nosso cotidiano. A sociedade até tem ciência da probabilidade de eventual dano à saúde que o seu uso corriqueiro possa ocasionar, mas mesmo assim não abre mão de utilizar o fabuloso aparelhinho celular que pode, a todo momento, ser utilizado.

Da própria leitura do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) verifica-se que o legislador impõe à sociedade a assunção de determinados riscos em produtos e serviços, ou seja, se o uso e os riscos são aqueles que razoavelmente se espera, não há falar em defeito (artigos 12 § 1o, II e 14 §1o, II). Tudo para demonstrar que compete também à sociedade arcar com uma parcela do desenvolvimento tecnológico e social implementado por aqueles que desbravam o árduo e inovador campo da tecnologia, como atividade econômica que gera benefícios diretos para toda a sociedade.

Mas não é só aqui que vemos esta necessária divisão de responsabilidades entre o empresário e a sociedade brasileira.

Não é em vão a preocupação que a quebra de qualquer sociedade empresária gera no meio em que está inserida. Desemprego, queda de arrecadação, distúrbios familiares2, falta de perspectivas de vida, entre outras tantas mazelas. E tanto isso é verdade que levou o legislador brasileiro a positivar, no artigo 47 da Lei de Recuperação Judicial e Falência (Lei 11.101/2005), o princípio da preservação da empresa3.

A preservação da empresa norteia-se pela geração de riqueza econômica que contribui para o crescimento e o desenvolvimento social do País. Os princípios que a sustentam não só prestigiam a sua preservação, mas também passam pelaseparação dos conceitos de empresa e empresário, pela celeridade e eficiência dos processos judiciais e, em especial, na segurança jurídica.

A empresa acaba se tornando mais importante que o seu criador, leia-se empresário. Frise-se que ela cria emprego e renda, desempenhando, assim, uma função social de relevo no contexto brasileiro, além dos diversos benefícios que traz à sociedade, principalmente no que toca à estabilidade das relações sociais.

Ao distinguir o conceito de empresa e de empresário, evidenciando naquela um conjunto organizado de capital e trabalho para a produção ou circulação de bens ou serviços e neste a pessoa natural ou jurídica que a controla, a Lei especial reitora da matéria viabilizou uma nova oportunidade para ambos os entes: empresa e empresário. A empresa recupera-se; o empresário reabilita-se. A criatura separa-se do criador. É como um filho que nasce; uma vez nascido, separado da mãe está, tendo vida própria. Como filho, recebe os conselhos e advertências paternas e, uma vez amadurecido, ganha autonomia. No caso da empresa, a autonomia se reflete numa governança corporativa eficaz, que se desvincula, de certa forma, do seu criador4.

3. A figura estereotipada do empresário brasileiro

Outro aspecto que convém ser abordado é o do imaginário popular. Para este, o empresário é aquele que usufrui dos benefícios que o lucro propicia e nada mais. Daí a conclusão de que aquele que tem um “carrão”, ou um “casarão” beneficiou-se dos “favores” do capital às custas do suor alheio.

Essa visão está impregnada de crenças religiosas, que, via de regra, faz do agente econômico um “usurpador”, numa visão distorcida do que efetivamente é a atividade empresarial. Vale dizer, desconsidera todo o esforço e poupança empregados, bem como os elevados riscos que lhe são inerentes.

Confunde-se o exercício da atividade econômica e seus riscos com a usura. Sabe-se que a proibição à usura vem desde há muito. O Código de Hamurabi já abolia a usura, entendendo tratar-se de cobrança de remuneração abusiva pelo uso do capital.  Aristóteles (1998:28), em sua obra “Política”, já evidenciava ser a usura abominável, considerando-a “mais odiosa que o tráfico de dinheiro, que consiste em dar para ter mais e com isso desviar a moeda de sua destinação primitiva”.

Contudo, essa visão parece ser equivocada, uma vez que o próprio empresário também sofre os efeitos da incidência de cobrança abusiva de juros. O capital também é para ele relevante, viabilizador do fim maior: a organização econômica destinada a fazer circular a riqueza (bens e serviços).

A despeito de tempos difíceis como o hodierno, em que os efeitos da “Operação Lava Jato”5 vem desconstruindo moralidades falsificadas e revelando verdades ocultas dos seus autores (outrora conhecidas como figuras respeitáveis), é preciso atentar para a necessidade de o País mudar de mentalidade e dar crédito a quem merece ter crédito.

Existem Empresários e empresários. Assim como Profissionais e profissionais. Existem aqueles que efetivamente assumem o seu papel de agente propulsor do desenvolvimento econômico e social e aqueles que pensam ser a vantagem pessoal sua meta. Com os primeiros, a lei deve dialogar; com os últimos, ela deve rugir!

Diferenciar o bom do mau é uma verdadeira lei natural. O próprio sistema econômico se encarrega de fazê-lo diariamente. É lei de mercado. O bom pagador goza de benefícios, enquanto o mau pagador é punido, sequer consegue crédito.

O mau empresário também deve ser punido, justamente para que se fortaleça a figura do bom empresário, aquele que gera riqueza, propiciando o desenvolvimento econômico e social da Nação.

E o ordenamento jurídico brasileiro está em linha com essa tese, tanto punindo o mau empresário por meio das diversas normas existentes – como por exemplo a Lei 7.492/1986 (conhecida como Lei do colarinho branco); a Lei 12.683/2012 (Lavagem de dinheiro); a Lei 4.729/1965 (Sonegação fiscal) –, como concedendo o justo tratamento ao bom empresário – como o da Lei de Recuperação Judicial, a Lei 9.964/2000 (Programa de Recuperação Fiscal – Refis); a Lei Complementar 123/2006 (instituidora de regime tributário diferenciado, simplificado e favorecido para microempresas e empresas de pequeno porte).

Na verdade, se não houvesse essa distinção entre o bom e o mau empresário, estar-se-ia frente a um ordenamento jurídico injusto, com consectários extremamente negativos para o próprio País. Desestimular-se-ia os valores que a própria Constituição Brasileira pugna como seus princípios e objetivos fundamentais (artigos 1o, IV, 3o, II, 170, 173 e 174).

A atividade empresarial é uma atividade essencialmente de risco. O empresário, quando tem a ousadia de investir seus esforços, capital e patrimônio em uma atividade econômica, não se baseia apenas na sua capacidade intelectiva, pois fatores variáveis e exógenos podem interferir diretamente no resultado que propugna.

É fato que o empresário deve se empenhar em desenvolver um bom plano de negócios, que resulte da análise de diversas variáveis, mas ele não pode afastar as áleas extraordinárias6.

Essas hipóteses, por exemplo, até constituem exclusão de responsabilidade do gestor da empresa, nos termos da Lei Sociedade Anônima (6.404/1974), artigo 159, § 6o, que autoriza o juiz a considerar a sua conduta de boa-fé, visando ao interesse da companhia.

4. O papel do Estado neste contexto

O Estado, a seu turno, tem um papel relevante nessa trajetória, o qual está bem delineado na Constituição, qual seja, o de: “agente normativo e regulador da atividade econômica, exercendo, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado” (art. 174).

Não é à toa que o Brasil adota como um dos seus princípios fundamentais os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1o, IV), tendo por objetivo fundamental a garantia do desenvolvimento nacional (artigo 3o, II).

E mais. Por escolha constitucional, a sociedade brasileira também decidiu que a atividade econômica será exercida preponderantemente pelo particular, ficando patente pelo seu artigo 173, que, “ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”.

Logo, o Estado colocou-se na posição de subsidiariedade no que toca à execução direta da atividade econômica, só atuando com esse viés em situações excepcionais e em caráter subsidiário.

Nesse diapasão, o legislador infraconstitucional, no que tange à atividade econômica, imbui-se do dever de discipliná-la de forma coerente e conforme os princípios eleitos pelo Estado Brasileiro.

É fato que a Constituição de 1988 deu nova roupagem ao papel do Estado, tornando hoje mais claro o seu mister. Entretanto, é forçoso reconhecer que os diplomas fundamentais anteriores já consignavam a importância do empresário e da empresa privada como parte inerente do desenvolvimento econômico e social do País.

Tal assertiva é corroborada pelos comandos normativos emanados das normas infraconstitucionais, reflexos, pois, dos princípios já eleitos à época.

Em outras palavras, o Decreto-Lei no 7.661/1945 é um exemplo típico para a presente análise. Este não só reconhecia a necessidade de intervenção do Estado-juiz para garantir ao empresário o benefício da concordata, como favorecia a extinção das obrigações do falido nas hipóteses em que este ou (i) pagava o débito ou novava os créditos com garantia real; ou (ii) rateava mais de quarenta por cento (40%) do seu crédito, depois de realizado todo o ativo, …., se para tanto não bastou a integral liquidação da massa; e ainda quando (iii) decorria o prazo de cinco anos, contado a partir do encerramento da falência, se o falido, ou o sócio gerente da sociedade falida, não tivesse sido condenado por crime falimentar ou, caso tivesse, após o decurso do prazo de dez anos (artigo 135 e seus incisos).

5. Circunstância autorizativa da extinção das obrigações do falido pela satisfação parcial dos créditos

A Lei de Recuperação Judicial (Lei no11.101/2005) vem dando continuidade ao anteriormente previsto na legislação reitora da matéria, prevendo, outrossim, no artigo 158 que:

Extingue as obrigações do falido:

I – o pagamento de todos os créditos;

II – o pagamento, depois de realizado todo o ativo, de mais de 50% (cinquenta por cento) dos créditos quirografários, sendo facultado ao falido o depósito da quantia necessária para atingir essa porcentagem se para tanto não bastou a integral liquidação do ativo;

III – o decurso do prazo de 5 (cinco) anos, contado do encerramento da falência, se o falido não tiver sido condenado por prática de crime previsto nesta Lei;

IV – o decurso do prazo de 10 (dez) anos, contado do encerramento da falência, se o falido tiver sido condenado por prática de crime previsto nesta Lei.

 Se para a análise da incidência dos incisos III e IV do dispositivo legal invocado importa a sentença de encerramento da falência, para os incisos I e II este não tem a menor relevância. Para eles, requer-se a ocorrência do fato, ou seja, um dado objetivo.

Assim é que a lei reitora da matéria, em consonância com o arcabouço constitucional brasileiro, permite a extinção das obrigações do falido com o pagamento, depois de realizado todo o ativo, de mais de 50% (cinquenta por cento) dos créditos quirografários.

O legislador garantiu o pagamento integral aos créditos que merecem tratamento especial em razão de sua importância, destacando-se nestes os créditos derivados da legislação do trabalho, os com garantia real até o limite do bem gravado, os tributários, os privilégios especial e geral (artigo 83). E quanto aos quirografários, entendeu que, uma vez atendido 50% (cinquenta por cento) deles, mesmo após a integral liquidação do ativo, o restante seria considerado ônus de toda a coletividade, pelo esforço pessoal do empresário falido.

Veja-se, ainda, que há entendimento da Corte Superior, no sentido de que nem mesmo a existência de crédito tributário se apresenta como fato impeditivo à declaração de extinção das obrigações do falido. E isto porque a obrigação tributária não é alcançada pela decisão declaratória extintiva das obrigações, continuando o Fisco com seu direito independente do juízo falimentar. Vale aqui trazer à baila o referido julgado:

O reconhecimento da extinção das obrigações não tributárias do falido nos termos do art. 135 do Decreto-Lei 7.661/1945 (art. 158 da Lei 11.101/2005) não depende de prova da quitação de tributos. Inicialmente, destaca-se que, tanto no regramento anterior (Decreto-Lei 7.661/1945) quanto na atual Lei de Falências (Lei 11.101/2005), a questão é tratada da mesma forma. Nesse passo, se o art. 187 do CTN – mesmo com a redação anterior à LC 118/2005 – é taxativo ao dispor que a cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, e se o mesmo CTN não arrola a falência como uma das causas de suspensão da prescrição do crédito tributário (art. 151), não há mesmo como se deixar de inferir que o crédito fiscal não se sujeita aos efeitos da falência. Tem-se, então, que o pedido de extinção das obrigações do falido poderá ser deferido: a) com maior abrangência, quando satisfeitos os requisitos da Lei Falimentar e também os do art. 191 do CTN, mediante a “prova de quitação de todos os tributos”; ou b) em menor extensão, quando atendidos apenas os requisitos da Lei Falimentar, mas sem a prova de quitação de todos os tributos, caso em que as obrigações tributárias não serão alcançadas pelo deferimento do pedido de extinção. Assim, na segunda hipótese, como o Fisco continua com seu direito independente do juízo falimentar, a solução será a procedência do pedido de declaração de extinção das obrigações do falido consideradas na falência, desde que preenchidos os requisitos da Lei Falimentar, sem alcançar, porém, as obrigações tributárias, permanecendo a Fazenda Pública com a possibilidade de cobrança de eventual crédito fiscal. De fato, a declaração de extinção das obrigações do falido poderá referir-se somente às obrigações que foram habilitadas ou consideradas no processo falimentar, não tendo, por isso, o falido, a necessidade de apresentar a quitação dos créditos fiscais para conseguir o reconhecimento da extinção daquelas suas obrigações, em menor extensão”.

REsp 834.932-MG, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 25/8/2015, DJe 29/10/2015.

Com efeito, não se pode olvidar que a escolha sobre as hipóteses legais de extinção das obrigações do falido coube ao legislador, legitimado pela própria sociedade para tanto.

Portanto, não se pode afastar do empresário falido o direito constitucionalmente assegurado de ser reabilitado para a prática da atividade empresarial. Atar-lhe a possibilidade de retornar à atividade econômica por não atender integralmente aos créditos quirografários é ceifar direito construído com base nos princípios e objetivos fundamentais do Estado brasileiro, ferindo, de morte, a segurança jurídica.

Aquele que apresenta uma demanda a julgamento, nutre a expectativa de que o Estado-juiz vá examinar os argumentos que servem de suporte à sua pretensão. Afinal, de outra forma não haveria qualquer sentido na determinação de se fazer necessariamente incluir na peça inicial, além do fato e do próprio pedido, os seus fundamentos jurídicos, aqui entendidos como argumentos que justifiquem a demanda posta, como impõe o diploma processual civil.

A contrapartida para a forma processual vem justamente na fundamentação deduzida pelo julgador ao decidir o pleito. Nessa esteira, tem-se que ao juiz se impõe o dever de fundamentar suas decisões, a fim de que, não só o autor do pedido de prestação jurisdicional, mas também a outra parte, possam se convencer da acuidade da decisão conferida à hipótese fática apresentada.

A ideia de que o Poder Judiciário – em um Estado Democrático de Direito, como o brasileiro – deve se mover sob o enfoque dos princípios fundamentais estabelecidos pela sua Constituição, vem reforçar a assertiva de que a legitimação da decisão judicial decorre necessariamente da argumentação jurídica desenvolvida especificamente para o caso concreto.

Afirmar princípios e regras diante de interesses emergentes exige do Estado-juiz o necessário enfrentamento das questões postas, dos argumentos deduzidos pelas partes e o adequado delineamento estruturante da decisão tomada. Qualquer decisão (de deferimento ou indeferimento) deve caminhar para a legitimação formal dos direitos constitucionais.

Nesse afã, ganha grande relevo o direito à decisão judicial fundamentada (Constituição da República Federativa do Brasil, art. 93, IX c/c 5o, § 2o), como corolário do direito à tutela jurisdicional, conforme artigo 5o, XXXV.

A concretização do ordenamento jurídico pelo Judiciário demonstra que a distinção apresentada pela doutrina entre regra e princípio não se apresenta previamente ao aplicador. Assim, a ele, aplicador e intérprete, diante do caso concreto a solucionar, caberá desenvolver conexões axiológicas entre eles (caso e dispositivo), chegando à construção do significado da norma. Assim, o teor e densidade da fundamentação a ser produzida dependerão desse passo inicial.

Porém, é certo que a conexão axiológica desenvolvida pelo julgador consubstanciará a fundamentação da decisão, a qual necessariamente deverá ser exteriorizada, compondo, assim, o seu conteúdo. Aduza-se, que a fundamentação converte-se no insumo de eventual recurso a uma instância superior.

Logo, imperioso que atenda ao fim a que se destina, ou seja, que possa efetivamente demonstrar as razões que levaram o julgador a decidir da forma como o fez. Ademais, a fundamentação da decisão judicial é indissociável do seu núcleo, não se podendo admitir uma decisão que não exteriorize claramente no seu bojo as razões consideradas pelo julgador para decidir.

Portanto, a fundamentação da decisão judicial é mais do que um simples dever do Estado-juiz, constituindo-se, com efeito, em um direito fundamental do jurisdicionado (para o contexto, o empresário falido), o qual se impõe por força do princípio constitucional do Estado Democrático de Direito (Vide Nota 7).

6. Conclusão

De todo o exposto, o pagamento pelo empresário falido, depois de realizado todo o ativo, de mais de 50% (cinquenta por cento) dos créditos quirografários (Lei no11.101/2005, art. 158, II) configura dado objetivo à hipótese de incidência da extinção material de suas obrigações – subsunção legal do fato à norma –, não podendo o Estado-juiz esquivar-se de reconhecê-lo a qualquer pretexto, pois obraria contra legem, criando distinções não autorizadas pelo legislador.

 

Referências bibliográficas____________________

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

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NEGRÃO, Ricardo. Aspectos objetivos da lei de recuperação de empresas e de falências. Lei no 11.101/2005. 5 edição. São Paulo: Saraiva, 2014.

REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial Vol. 1 – 26 Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2005.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

VIEIRA DE ANDRA, José Carlos. O dever da fundamentação expressa de actos administrativos. Coimbra: 1992.

 

NOTAS________________________

1 O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma medida resumida do progresso em longo prazo em três dimensões básicas do desenvolvimento humano: renda, educação e saúde. O objetivo da criação do IDH foi o de oferecer um contraponto a outro indicador muito utilizado, o Produto Interno Bruto (PIB) percapita, que considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento. Criado por Mahbub ul Haq com a colaboração do economista indiano Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1998. Disponível em: http://www.pnud.org.br/IDH/DH.aspx. Acessado: 25.10.2015.

2 Vale aqui o dito popular: “Em casa que não há pão, todos brigam sem razão”.

3 “Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.

4 O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) define a Governança Corporativa como um sistema pelo qual as sociedades são dirigidas e monitoradas, envolvendo os acionistas e os cotistas, conselho de administração, diretoria, auditoria independente e conselho fiscal. As boas práticas de governança corporativa têm a finalidade de aumentar o valor da sociedade, facilitar seu acesso ao capital e contribuir para a sua perenidade. Disponível em: http://www.ibgc.org.br/inter.php?id=18161. Acessado em: 25.10.2015.

5 Disponível em: http://arte.folha.uol.com.br/poder/operacao-lava-jato/.Acessado: 25.10.2015.

6 Como por exemplo: crises políticas, fato do príncipe, caso fortuito, força maior, entre outros fatores que interferem na movimentação urbana, como obras do Poder Público, desvio de percurso, que afetam diretamente o seu negócio.

7 O preâmbulo da Constituição Brasileira dá o propósito de sua existência, qual seja, o da constituição de um Estado Democrático. O artigo 1o combinado com o seu parágrafo único, a seu turno, reforça o indicador preambular, gizando que o Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Foi na Constituição de 1988 que a expressão brilhou pela primeira vez na conceituação constitucional brasileira. De tal expressão emerge que o Estado Brasileiro é um Estado submetido ao Direito, isto é, um Estado com uma constituição limitadora de poder através do império do direito.