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A formação do juiz e as Escolas de Magistratura

31 de outubro de 2011

Presidente do Conselho Editorial/Ministro do Superior Tribunal de Justiça/Corregedor-Geral da Justiça Eleitoral

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1. Introdução

O estágio atual da preparação e formação de juízes no Brasil é tema por demais desafiador. Vem a calhar a obra imortal de Kafka, que superou o seu tempo e apresenta um painel rico em várias questões da vida moderna. Direito, psicanálise, religião, são assuntos tratados com absoluta transparência e objetividade.

O percurso surrealista de Joseph K., no magnífico texto de O processo, homem indefeso e incrédulo dentro de um sistema judicial anacrônico e corrupto, hierarquizado e inacessível, cruel e injusto é o pano de fundo de uma ampla reflexão sobre o Judiciário que se iniciou no segundo pós-guerra e ainda não terminou.

Por isso, a importância da preparação do magistrado, de grande relevância para o processo de “mundialização” pelo qual passa a sociedade atual.

2. Seleção de juízes

Um dos problemas contemporâneos mais complexos, em um mundo sem fronteiras e cada vez mais conectado em razão da revolução ocorrida, sobretudo nos últimos vinte anos, nos meios e modos de comunicação é, sem dúvida, descobrir a forma correta de seleção dos juízes.

Vale dizer, diversos países debatem sobre a maneira de melhor recrutar o corpo de magistrados encarregados de prestação da jurisdição, de maneira a atender às exigências da sociedade moderna.

Há um consenso de que não basta um candidato que domine puramente a ciência jurídica, do ponto de vista exclusivamente técnico. Os desafios do mundo atual exigem um jurista com sensibilidade e inteligência emocional, além de formação humanística que lhe permita conhecer noções gerais acerca de sociologia, filosofia, ética, deontologia, liderança, administração, micro e macroeconomia, relacionamento com os outros Poderes e com a mídia, dentre outros atributos.

Não é tarefa fácil estabelecer uma forma de seleção que possa aferir tantos predicados, de modo a buscar o perfil de juiz desejado pela sociedade, sobretudo os mais vocacionados.

Na maioria dos países, o recrutamento para a magistratura tem como base, em regra, o ingresso pela via do concurso público.

Alemanha, França, Portugal e Espanha possuem “escolas de magistratura” com longa experiência, e nenhum magistrado começa a trabalhar sem que tenha passado, pelo menos, dois anos em treinamento.

Na verdade, o concurso público é realizado para ingresso nas próprias escolas, e o curso ali ministrado tem caráter eliminatório.

Também de modo geral, na Europa continental, sempre que uma lei entra em vigor, os juízes inicialmente a debatem, estudam-na e entendem adequadamente seu alcance, pois se acredita que o magistrado bem capacitado faz a lei ter eficácia plenamente, impedindo aquele velho chavão de que o texto legal é bom, “mas não pegou”.

A necessidade de permanente atualização dos juízes é também aferida no momento da promoção na carreira.

No Brasil, após a reforma constitucional de 2005, a Emenda 45 estabeleceu a criação da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento do Magistrado – Enfam (artigo 105, parágrafo único, da CF/88).

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a Enfam nasceu da Resolução 3, de 30 de novembro de 2006, e está sendo estruturada para cumprir, com as escolas de magistraturas já existentes, a sua elevada função constitucional.

3. Preparação de juízes

Introduzir é conduzir de um lugar para outro, fazer entrar num lugar novo.

Adquirindo por empréstimo a belíssima imagem de Michel Miaille[1], a visita a uma casa com a orientação de um guia é sempre uma experiência diferente. A visão que se tem dos cômodos da casa, as fachadas, seus ambientes e interiores é a de uma terceira pessoa, e não do próprio visitante.

Visitar a construção sozinho, sem o guia, implica outra forma de observação, descobrindo as divisões internas, os quartos fechados, a lógica do edifício.

Há, ainda, a visão daquele que é um habitante da casa, que conhece os relatos familiares, as escadas ocultas, a atmosfera íntima dos ambientes.

Para logo se verifica que um mesmo fenômeno permite uma diversidade de percepções, dependendo do ângulo de que o observador o examine.

Assim também é a preparação que se deve realizar do magistrado recém-ingresso; permanente, continuada, para que a seleção se conecte à preparação, em seguida ao exercício da função e, depois, ao constante aperfeiçoamento do juiz.

É como se, prosseguindo naquela mesma imagem do visitante e da casa, além de se procurar um panorama geral da construção, ainda venham a ser examinadas as suas estruturas.

Por outro lado, qualquer estudo do Direito não pode ser minimamente compreendido senão em relação a tudo o que permitiu sua existência, vislumbrando-se, em seguida, um futuro possível.

É dizer, devemos projetar o Direito no mundo real no qual ele encontra o seu lugar e a razão de ser, vinculando-o a outros fenômenos da sociedade, solidário com o tempo passado, presente e futuro.

O conjunto das normas jurídicas é, antes de mais nada, uma visão generosa de um povo buscando reduzir os antagonismos sociais.

O juiz é o grande artífice dessa obra de engenharia social, o guardião das promessas constitucionais, e a democracia exige seu adequado preparo para bem e fielmente cumprir sua missão.

4. Perfil de ingresso na magistratura brasileira

A última pesquisa sobre o tema, extensa e detalhada, foi realizada em 2005 pela professora Maria Tereza Sadeck (USP), uma das maiores especialistas em estudos sobre Poder Judiciário, apontando o perfil dos juízes que ingressam na magistratura brasileira.

Conforme o estudo, 96,5% dos juízes ativos exerciam atividade profissional anterior ao ingresso na magistratura, contra apenas 3,5% dos que não a realizavam, o que descaracteriza a ideia de que o juiz ingressa sem experiência. O tempo médio de formatura até o ingresso na magistratura é 7,2 anos, reforçando essa tese.

Quanto ao exercício de atividades acadêmicas, 4,8% dos magistrados lecionavam em faculdade de direito pública, 20,3% em faculdade de direito privada, 17,1% ministravam aulas em escolas de magistratura e 10,3% atuavam em outras instituições. Nítido, portanto, que a maioria dos juízes tem dedicação exclusiva à missão de julgar.

A tendência, no Brasil e no mundo, é o recrutamento de candidatos mais jovens, ainda não inseridos completamente no mercado de trabalho.

Esse fenômeno de “juvenilização” é comum na Europa, especialmente na França, Itália, Portugal, Espanha e Alemanha. Em todos os casos, é a democracia de acesso que induz a “juvenilização”.

No sistema da commom law, nos Estados Unidos da América e na Inglaterra, o recrutamento é diferente. Em regra, não há concursos públicos, e a seleção é realizada ora por eleição, ora por indicação da Corte ou do Presidente da República, apontando os advogados mais antigos e experientes e, claro, os profissionais com idades mais avançadas.

Os dados de 2005 permitem uma útil comparação com os elementos extraídos da significativa e pioneira pesquisa “O perfil do magistrado brasileiro”, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), em conjunto com a Associação de Magistrados Brasileiro (AMB), realizada em 1996 pelos sociólogos Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manuel Palacios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos.

O exame comparado dos números possibilita um olhar generoso quanto à evolução da magistratura nos últimos anos.

No estudo do IUPERJ, indagou-se a opinião dos magistrados acerca da forma de ingresso na carreira. Dentre os juízes de primeiro grau em atividade, 98,2% acreditavam que o sistema de concurso público assegurava melhor o Estado

Democrático de Direito, contra 1,8% que pensava ser o processo eletivo um meio de aproximar, de maneira mais efetiva, o Poder Judiciário aos valores da comunidade.

A pesquisa apontou também que, para 62,9% dos juízes de primeiro grau e 58% dos magistrados de segundo grau, o concurso público para ingresso na magistratura, da forma pela qual vem sendo realizado, tem facultado o acesso de todos os profissionais do Direito aos seus quadros, possibilitando o recrutamento de pessoas de variadas faixas etárias, de diferentes regiões e com formações culturais diversas.

A assertiva de que as escolas de magistratura devem servir como instrumento que favoreça uma melhor seleção dos futuros juízes, oferecendo ensino especializado àqueles que pretendem concorrer à magistratura e prevendo concessão de bolsas de estudo para os seus melhores alunos, contou com a concordância de 59,1% dos juízes de primeiro grau e 63,3% dos de segundo grau.

Um dado muito relevante, que já despontava em 1996, é que os magistrados de primeiro e segundo graus, na proporção de 45% e 54,2%, respectivamente, afirmavam ser importante a passagem dos futuros juízes pela escola de magistratura.

Naquela época, dentre os magistrados que ingressaram na carreira mediante concurso, 32% dos juízes de primeiro grau e 6,6% dos de segundo grau frequentaram escola de magistratura.

A experiência profissional anterior na área de Direito era vista como condição indispensável para ingresso na carreira por 74,4% dos juízes de primeiro grau e 71,2% dos de segundo grau.

A maioria dos entrevistados (58,3% dos juízes de primeiro grau e 58,9 dos de segundo grau) avaliou que, nos dias atuais, a capacitação do magistrado para além de seu talento estava associada à qualificação técnica, perícia científica e formação especializada. A maioria concordou que a carreira do juiz, para se fazer independente de avaliações subjetivas, deveria ser institucionalizada pelo Poder Judiciário segundo critérios de titulação, como ocorre em outras profissões, a partir da criação de cursos orientados para a qualificação progressiva dos magistrados.

5. Escolas de magistratura no Brasil

Há grande diversidade em relação às escolas em funcionamento, algumas se voltando para a formação de juízes, outras se dedicando à preparação, seleção e aperfeiçoamento.

De acordo com os dados colhidos da pesquisa realizada pela juíza Maria Inês Correa de Cerqueira César Targa[2], em 2005, dentre as escolas do País, 54,54% eram vinculadas a Tribunais e 27,27%, a associações de magistrados; 18,18% não tinham vínculos.

Analisando ainda esses números, majoritariamente (68,18%), as escolas brasileiras exploravam dúplice atividade: formação do candidato à magistratura e formação inicial e continuada do magistrado já empossado. Dedicavam-se apenas ao aprimoramento do magistrado 22,72% das escolas, e somente à formação do candidato, 9,09%.

A maior parte das escolas (72,72%) tinha cursos regulares para candidatos à carreira e 13,63% ministravam cursos regulares aos magistrados já empossados. Em regra, os juízes que ingressaram na carreira fizeram cursos esporádicos (68,18%).

A pesquisa também revelou que a atividade de formação do candidato à magistratura tinha sido desenvolvida de forma mais organizada do que aquela destinada aos magistrados. A média dos cursos preparatórios era de 703,56 horas/aula, ao passo que à formação inicial e à formação continuada dos magistrados empossados eram destinadas, em média, 133,50h e 22h, respectivamente.

O estudo apontou que o corpo docente das escolas era formado, em grande parte, por juízes (60,75%), advogados (17,89%) e membros do Ministério Público (13,01%). Apenas 8,35% dos docentes não integravam essas carreiras.

O grupo de professores inseridos nas escolas era composto de 10,46% de doutores, 22,14% de mestres e 29,31% de especialistas.

É relevante o fato de que mais da metade das escolas (59,09%) obtinha suas receitas dos cursos preparatórios ministrados.

6. Conclusão

Destarte, é urgente e importante pensar na formação do juiz do futuro, adequando-a às aspirações da sociedade.

O pleno desenvolvimento das escolas oficiais criadas pelos artigos 105, parágrafo único, I, e 101-A, I, da CF/88, junto ao Superior Tribunal de Justiça e Tribunal Superior do Trabalho, contando com a participação das escolas existentes e com as sugestões da base da magistratura, é ponto relevante no atual estágio de evolução quanto à melhor formação dos juízes brasileiros. Ressalte-se que esses são os únicos órgãos vocacionais e com assento constitucional para estabelecer políticas públicas de seleção, formação e aperfeiçoamento de juízes.

Urge, também, que os concursos públicos para seleção de magistrados tenham a participação ou sejam realizados pelas escolas de magistratura, de modo que o recrutamento obedeça à mesma diretriz da preparação.

Parece importante, ademais, a inserção de mecanismos de seleção que contemplem a busca dos mais vocacionados para a carreira, elementos que devem se somar ao conhecimento técnico indispensável ao exercício da profissão.

Além disso, é primordial que haja um peso específico para os aspectos humanísticos da formação dos quadros da magistratura.

Igualmente relevante é conferir autonomia administrativa e financeira às escolas de magistratura, pois somente com a possibilidade de planejar seus objetivos estratégicos, a magistratura ampliará o acesso dos cidadãos a uma justiça ágil, mais bem aparelhada, informatizada e, portanto, transparente e capaz de cumprir plenamente sua função social.


[1] Introdução crítica ao Direito, 2a edição, Editora Estampa.

[2] Diagnóstico das escolas de magistratura existentes no Brasil. Revista ADV Advocacia Dinâmica: seleções jurídicas, no 10, p. 21-22.