A gratuidade de justiça na litigância de má-fé

16 de setembro de 2015

Compartilhe:

Luciano-RinaldiA Constituição Federal de 1988, ao tratar dos Direitos e Garantias Fundamentais, assegura que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. É a redação literal do inciso LXXIV do artigo 5o, que consagra o princípio do acesso à justiça.

Os critérios para concessão de assistência judiciária gratuita estão definidos na Lei no 1.060/1950, que considera necessitados – logo, destinatários da norma – aqueles que não possam arcar com o pagamento dos custos do processo sem prejuízo do próprio sustento, ou de sua família.

O artigo 4o da referida lei, em sua literalidade, dispõe que, para a concessão do benefício da gratuidade, basta uma simples afirmação de estado de necessidade na petição inicial, ou em documento apartado, como a conhecida “declaração de hipossuficiência”. De acordo com o parágrafo lo do referido dispositivo legal, presume-se pobre, até prova em contrário, quem simplesmente se disser nessa condição, sob pena do pagamento até o décuplo das custas judiciais.

Atualmente, a jurisprudência é mais rigorosa no deferimento de tais pedidos, justamente em razão dos incontáveis casos de uso deturpado e indiscriminado do benefício, manejados por quem pode – mas não quer – arcar com os custos do processo. Verificou-se que uma simples declaração de hipossuficiência, sem maiores exigências ou consequências práticas, acabou levando muitos litigantes a apostarem na judicialização a risco zero, especialmente em ações sobre relações de consumo. E, se não há risco, passou-se a buscar o Judiciário como quem vai a uma casa lotérica, para tentar a sorte. Algo impensável.

Aliás, há muito está pacificado no Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, “havendo dúvida da veracidade das alegações do beneficiário, nada impede que o magistrado ordene a comprovação do estado de miserabilidade, a fim de avaliar as condições para o deferimento ou não da assistência judiciária”. 

É importante enfatizar que os benefícios da Lei no 1.060/1950 são conferidos exclusivamente aos necessitados, pessoas em estado de miserabilidade econômica, desprovidas de bens e receitas. Isso importa dizer que a mera dificuldade financeira é insuficiente para a concessão do benefício, uma vez que, em tais casos, o juiz pode facilitar o pagamento dos custos, inclusive mediante parcelamento ou recolhimento ao final.

Vivemos uma realidade de 100 milhões de processos em curso no Brasil, e parece certo afirmar que os métodos alternativos de solução de controvérsias, embora válidos, não reduzirão a judicialização dos conflitos, ao menos no médio prazo. É urgente a adoção de medidas mais imediatas que desestimulem, na raiz, a distribuição de ações infundadas ou mesmo levianas. A instauração de um litígio pressupõe reflexão prévia, responsável. Não é um ato de impulso. E, ao advogado, cumpre o papel de prevenir seu constituinte dos riscos do litígio, aconselhando-o a não ingressar em aventuras judiciais, como disciplinado no Código de Ética e Disciplina da Advocacia.

A concessão da assistência judiciária merece atenção especial em casos de litigância de má-fé, reconhecida quando incidir alguma das hipóteses elencadas no artigo 17 do Código de Processo Civil: dedução de pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; alteração da verdade dos fatos; uso do processo para obtenção de objetivo ilegal; oposição de resistência injustificada ao andamento do processo; atuar temerário em qualquer incidente ou ato do processo; provocação de incidentes manifestamente infundados; ou, ainda, interposição de recurso com intuito manifestamente protelatório. O artigo 18 do diploma processual civil autoriza que o juiz, de ofício ou a requerimento, condene o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a um por cento do valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais honorários advocatícios e despesas por ela efetuadas.

A reflexão que ora se propõe é a seguinte: afigura-se razoável que o litigante de má-fé, ou seja, aquele que busca o Judiciário de forma mal intencionada, seja contemplado com a gratuidade, que, em última análise, é um benefício concedido pelo Estado? Tenhamos em mente que todo o processo gera um custo que, se não é pago pelas partes, será pago pelo Estado, ou seja, pela própria sociedade. E é desconcertante perceber que, nos moldes atuais, é o contribuinte quem financia o processo do litigante de má-fé. É preciso reavaliar essa realidade.

Há julgados definindo que a condenação por litigância de má-fé não autoriza a revogação da gratuidade da justiça, ao argumento de falta de previsão expressa no rol de sanções do artigo 18 do Código de Processo Civil. A propósito, no julgamento do Recurso Especial 1011733/MG, decidiu o STJ que “o reconhecimento da litigância de má-fé acarreta ao ‘improbus litigator’ a imposição de multa, de caráter punitivo, bem como a condenação à reparação pelos prejuízos processuais decorrentes de sua conduta processual, esta de caráter indenizatório”. 

A nosso sentir, o referido artigo 18 da lei processual civil, ao impor ao litigante de má-fé as sanções de multa, pagamento de honorários advocatícios, indenização dos prejuízos sofridos pela parte adversa e despesas por esta efetuadas, não impede, absolutamente, a revogação ex officio da gratuidade de justiça nessa circunstância. 

Com efeito, o artigo 14, II, do Código de Processo Civil determina que é um dever da parte proceder com lealdade e boa-fé, devendo o litigante de má-fé responder por perdas e danos, seja como autor, réu ou interveniente, nos termos do artigo 16 da lei processual. Ademais, o artigo 187 do Código Civil considera ilícito o ato cometido pelo titular de um direito que, ao exercê-lo, “excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Logo, é inadmissível que o litigante de má-fé receba qualquer benesse processual, notadamente porque cabe ao juiz coibir os excessos, os abusos e os desvios de caráter ético-jurídico verificados no trâmite processual. 

O princípio da boa-fé, como centro de gravidade que orienta as relações jurídicas, impõe ao intérprete do direito uma visão periférica do sistema, valorando não apenas a aplicação da lei ao caso concreto, mas, igualmente, atentando para valores éticos e morais que se irradiam por todo o ordenamento, tudo para o fim de se emitir um pronunciamento judicial qualificado, coerente e lógico. 

Com a habitual maestria, o Ministro Luiz Fux acentuou que: 

[…] o princípio da confiança decorre da cláusula geral de boa-fé objetiva, dever geral de lealdade e confiança recíproca entre as partes, sendo certo que o ordenamento jurídico prevê, implicitamente, deveres de conduta a serem obrigatoriamente observados por ambas as partes da relação obrigacional, os quais se traduzem na ordem genérica de cooperação, proteção e informação mútuos, tutelando-se a dignidade do devedor e o crédito do titular ativo, sem prejuízo da solidariedade que deve existir entre ambos.

Nessa ordem de ideias, é justo reconhecer que a boa-fé se apresenta em nosso direito, induvidosamente, como requisito essencial para concessão da gratuidade de justiça, e que pode ser revogada de ofício pelo juiz, como autorizam os artigos 7o e 8o da Lei no 1.060/1950, in verbis:

Art. 7o. A parte contrária poderá, em qualquer fase da lide, requerer a revogação dos benefícios de assistência, desde que prove a inexistência ou o desaparecimento dos requisitos essenciais à sua concessão.

Parágrafo único. Tal requerimento não suspenderá o curso da ação e se processará pela forma estabelecida no final do artigo 6o desta Lei. (grifei)

Art. 8o. Ocorrendo as circunstâncias mencionadas no artigo anterior, poderá o juiz, ex officio, decretar a revogação dos benefícios, ouvida a parte interessada dentro de quarenta e oito horas improrrogáveis.

Assim, é possível notar que a revogação ex officio do benefício por litigância de má-fé não representa uma sanção, como aquelas indicadas no referido artigo 18 do Código de Processo Civil, mas, em verdade, uma decorrência lógica pela inobservância dos requisitos estampados na Lei no 1.060/1950.

Insista-se: a comprovação do estado de miserabilidade econômica não prescinde da demonstração da boa-fé, da conduta leal e ética no processo, que jamais poderá servir de meio para objetivos espúrios e abusivos.

O benefício da assistência judiciária gratuita aos necessitados encampa o princípio do acesso à justiça e, nesse cenário, segundo magistério de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, tem lugar o princípio da operosidade, segundo o qual:

[…] as pessoas, quaisquer que sejam elas, que participam direta ou indiretamente da atividade judicial ou extrajudicial, devem atuar da forma mais produtiva e laboriosa possível para assegurar o efetivo acesso à justiça. Assim, para atender aos fins […] que garantem, na prática, tal acesso, é indispensável: (a) atuação ética de todos quantos participem da atividade judicial ou extrajudicial; e (b) utilização dos instrumentos e dos institutos processuais de forma a obter a melhor produtividade possível, ou seja, utilização da técnica a serviço dos fins idealizados. 

E, ao abordar a importância da atuação ética em todas as etapas do processo, assinala o renomado autor que:

[…] todos devem cooperar com as atividades destinadas à democratização do processo, tendo como meta ideal a participação de quem quer que seja, em igualdade de condições, de sorte a possibilitar a justa composição dos conflitos individuais ou coletivos que surjam em determinada sociedade. Seria um absoluto contrassenso imaginar que os fins sociais e políticos que informam o processo como instrumento de realização de uma das funções essenciais do Estado pudessem ser alcançados sem que os operadores e cooperadores da justiça participem de forma correta, ética; daí por que, no momento em que qualquer um dos participantes dessa atividade atue de forma a prejudicar ou impossibilitar o alcance dos fins idealizados, ele estará tendo um comportamento inadequado, contrariando as normas éticas que informam aquele sistema jurídico.

Por seu turno, Humberto Theodoro Junior adverte que: 

[…] a realização da justiça é um dos objetivos primaciais do Estado Moderno. O poder de promovê-la inscreve-se entre os atributos da soberania e para todo o cidadão surge, como um princípio de direito público, o dever de colaboração com o Poder Judiciário, na busca da verdade. Trata-se de uma sujeição que atinge não apenas as partes, mas a todos que tenham entrado em contato com os fatos relevantes para a solução do litígio.

Enfim, é inconcebível que as isenções do artigo 3o da Lei no 1.060/1950 sejam destinadas para aqueles que atuam no processo de modo temerário, inidôneo e desleal. Tem-se mostrado sobremodo elevado o quantitativo de ações que ingressam todos os dias nos tribunais brasileiros contendo pedido de gratuidade, sendo razoável admitir que muitas não avançariam se a gratuidade fosse concedida com mais prudência e rigor, beneficiando apenas os realmente necessitados.

No âmbito da jurisprudência do STJ, impende destacar o seguinte trecho do judicioso pronunciamento do eminente Ministro Mauro Campbell Marques:

A intenção do legislador ao conceder a assistência judiciária foi proporcionar o acesso ao Judiciário a todos, até mesmo aos que se encontram em condição de miserabilidade, e não criar mecanismos para permitir às partes procrastinar nos feitos sem sujeitar-se à aplicação das sanções processuais.

Por sua vez, o douto Ministro Luis Felipe Salomão foi preciso ao assinalar que:

A concessão da gratuidade da Justiça, não tem o condão de eximir o beneficiário da concessão do recolhimento da punição por conduta que ofende a dignidade do tribunal e a função pública do processo, que sobreleva aos interesses da parte. 

Em conclusão, defendemos que o juiz deve revogar de ofício a gratuidade de justiça sempre que estiver diante da litigância de má-fé, não como espécie de sanção, mas em razão da inobservância do requisito essencial da boa-fé, que é a pedra fundamental das relações jurídicas.

Notas _______________________________

1 Art. 4o. A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família.

2 STJ. AgRg nos EDcl no Ag 664.435/SP, Relator Ministro Teori Albino Zavascki.

3 Art. 18. O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou.

4 STJ. REsp 1143216/RS, Rel. Ministro Luiz Fux.

5 Acesso à Justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública, uma nova sistematização da teoria geral do processo. 2.ed. São Paulo: Forense, 2000. p. 63-64.

6 Curso de direito processual civil. 24. ed. São Paulo: Forense, 1998. v. I, p. 428.

7 STJ. REsp 1259449/RJ, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques.

8 STJ. AgRg nos EDcl no AgRg no AgRg no Ag 1250721/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão.