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A inconstitucionalidade da legislação que concede gratuidade no transporte

5 de outubro de 2002

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LEGAL OPINION acerca da constitucionalidade das leis estaduais  n°. 3.339, de 29 de dezembro de 1999 e 3.650, de 21 de setembro de 2001

O cerne do questionamento está na alegada ausência de fonte material para a emissão dos transportes gratuitos para determinadas categorias.

Especificamente as aludidas leis dispõem sobre a gratuidade nos transportes coletivos intermunicipais para pessoas idosas, aos portadores de deficiência e aos alunos de 1º e 2º graus da rede pública, desde que uniformizados e portadores de carteira de identidade estudantil (Lei nº 3.339/99), e aos portadores de deficiência e de doenças crônicas de natureza física, mental ou psiquiátrica (Lei nº 3.650/01), nos transportes administrados e/ou concedidos pela Secretaria de Estado de Transporte do Rio de Janeiro. A primeira das leis referidas já foi objeto de Mandado de Segurança, interposto perante o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que assegurou um Provimento Liminar, e sua inconstitucionalidade.

Do Direito

O exame da matéria deve iniciar pela Constituição do Estado do Rio de Janeiro que, no art. 14, assegura: “É garantida, na forma da lei, a gratuidade dos serviços públicos estaduais de transporte coletivo, mediante passe especial, expedido à vista de comprovante de saúde oficial, à pessoa portadora:    I – de doença crônica, que exija tratamento continuado e cuja interrupção possa acarretar risco e vida; II – de deficiência com reconhecida dificuldade de locomoção.”

A disposição constitucional está inserida em capítulo imediatamente posterior à disposição acerca da gratuidade do exercício do direito de petição junto aos órgãos públicos (art. 12, inciso I) e da obtenção de certidões e registros (artigo 12, inciso II), bem como de registro de nascimento, certidão de óbito e expedição de cédula de identidade (art. 13), todos eles atos de competência e de responsabilidade de órgãos públicos em sentido próprio.

Portanto, a primeira observação já a ser feita é a de que a Constituição pretendeu regrar a gratuidade de atos, discernindo, porém, quanto à sua forma de processamento: para aqueles atos cujo exercício ou prestação é de competência de órgãos públicos, integrantes de pessoas jurídicas de Direito Público, caracterizando serviço público em sentido estrito, a gratuidade é imediata.

Já para aqueles outros, que são prestados efetivamente por pessoas privadas, derivando da iniciativa econômica privada, embora exercida conforme concessão ou permissão do Poder Público, como é o caso dos transportes coletivos, a gratuidade é apenas mediata, porque carecedora da intermediação de a) lei estadual, fixando as suas normas gerais; e, b) de ato administrativo de caráter normativo, fixando as suas especificidades, ou “normas especiais”, atinentes às condições de prestação do serviço gratuito, seja no que diz respeito às relações com os usuários do serviço, seja no que diz com as relações com as empresas, permissionárias ou concessionárias, pois é lógico que quem suporta os ônus decorrentes da gratuidade da prestação para alguns – justamente privilegiados em face do seu status (doentes, anciãos, estudantes) – é a sociedade, e não umas ou algumas pessoas privadas (empresas).

É necessário, para tanto, voltar ao texto constitucional estadual para saber como ali está prescrito o processo legislativo, indispensável para regular o exercício da gratuidade dos serviços de transporte coletivo para certas categorias. Para tanto é preciso, evidentemente, conciliar o comando do art. 14, retrotranscrito, com as regras de competência.

Ora, ao dispor sobre a competência do Poder Legislativo Estadual, no art. 98, inciso IV, está esta cingida, no tocante ao tema, a editar normas gerais sobre a exploração ou concessão de serviços públicos.

Portanto, a questão a ser deslindada é a de saber se as referidas Leis se amoldaram, ou não, ao explícito comando constitucional, tratando-se de determinar o que são “normas gerais” como elemento prévio, e absolutamente necessário, ao exame da inconstitucionalidade por vício de iniciativa.

“Norma geral” é aquela que, de modo mais imediato, acolhe ou traduz um princípio jurídico, traçando os lineamentos fundamentais de determinada regulação jurídica e tornando operativos os mandamentos constitucionais acaso necessitados de regulamentação que os minudencie. São também “normas gerais” as que estipulam conceitos gerais abstratos, permitindo a especificação de situações particulares com base nas diretrizes que traçam.

A distinção entre “norma geral” e “norma especial”, e ainda “norma específica” tem sido tormentosa, seja em matéria de Direito Financeiro, seja no Direito Administrativo. Versou o tema com especial proficiência Geraldo Ataliba (Anotações Propedêuticas de Direito Financeiro, RDP, vol. 68, p.169), procedendo a uma distinção que deve ser reproduzida, porque concernente às funções das normas gerais.

Segundo essas lições constitui função das normas gerais atuar como mecanismo de harmonia entre as pessoas políticas, sempre que o princípio da harmonia (Constituição Federal, art. 1º) “o exija peremptoriamente” (Geraldo Ataliba, em Normas Gerais de Direito Financeiro, cit., p.48).

A busca de precisão da expressão, que começou no âmbito do Direito Financeiro e Tributário, tem sido muito discutida no campo das licitações e contratos administrativos, desde que o Decreto-Lei nº 2.300/86, hoje revogado, incorporou a expressão.

Sobre o significado que aí adquire, anota Alice Gonzales Borges que, muito embora “gerais” todas as normas o sejam, pois “é da sua essência o serem genéricas, abstratas e dotadas de força coercitiva, se deve conotar à locução “normas gerais”, idéias que “só têm pertinência com a especial sistemática de um Estado Federativo, onde as ordens federadas guardam uma relativa autonomia normativa” (em Normas Gerais nas Licitações e Contratos Administrativos, RDP, vol. 96, p. 81), como é o caso da Federação brasileira, na qual há uma tríplice dimensão do plano vertical (Governo Federal, Estadual e Municipal), e no plano horizontal (Executivo, Legislativo e Judiciário).

Daí surgirem normas gerais quando, “por alguma razão, convém ao interesse público que certas matérias sejam tratadas por igual, entre todas as ordens da Federação, para que sejam devidamente instrumentalizados e viabilizados os princípios constitucionais com que guardam pertinência” (Alice Gonzáles Borges, em Normas Gerais nas Licitações e Contratos Administrativos, RDP, vol. 96, p. 84). Assim, no que concerne à matéria ora tratada, a Constituição do  Rio de Janeiro acertadamente previu a emissão, em lei ordinária estadual, de “normas gerais” porque as “normas especiais” são de competência dos Executivos estadual e municipais, em atenção à cláusula constitucional do peculiar interesse.

Da mesma forma Cláudio Pacheco, citado por Fernanda Dias Menezes de Almeida (em Competências na Constituição de 1988, São Paulo, Atlas, 1991, p. 159. A aludida obra de Pacheco é Tratado das Constituições Brasileiras, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1958, Tomo II, p. 255), já assinalara constituírem as “normas gerais” os “lineamentos fundamentais da matéria”, a conferirem estrutura, plano e orientação a determinado tema retido como fundamental ao interesse público e por isto espraiando-se em âmbito da Federação considerada em sua globalidade, porém não descendo a pormenores, razão pela qual deixam necessariamente, tais normas, espaço à atuação de outras normas, estaduais ou municipais.

Por sua vez,anota Luiz Fernando Coelho (em A Competência Concorrente em Direito Ambiental, Revista de Informação Legislativa nº 114, Brasília, 1992, p.70) poderem ser consideradas “normas específicas”, tanto federais quanto estaduais, ou municipais, “aquelas que regularem âmbitos especiais de relações jurídicas, considerados em relação à matéria, aos sujeitos da relação ou ao território de aplicação da norma(…), normas estas que sejam derivadas, ou fundadas em relativas ao mesmo objeto”.

Bem discernidos os respectivos âmbitos de competência, alerta, com razão, Fernanda Dias Menezes de Almeida que a conseqüência da invasão do espaço legislativo de um centro de poder por outro é a geração da inconstitucionalidade da lei editada pelo invasor (Competências na Constituição de 1988, cit., p. 156).

Como se vê, deve-se assim harmonizar, no plano vertical e no plano horizontal, a tríplice esfera de competência e a tríplice face funcional do Estado, sem indevidas invasões de parte a parte, por isso mesmo alertando Ataliba: “É por falta de atentarem para a organização peculiar do nosso sistema normativo, que os nossos legisladores, órgãos administrativos fiscais e até judiciários deformam, ofendem e subvertem diretamente de forma tão generalizada e primária não só os princípios expressos ou implícitos que informam o regime, como o próprio texto constitucional.” ( idem, ibidem).”

É evidente que toda a norma jurídica é, por definição, “geral!, porque aplicável a um universo indeterminado de sujeitos, embora o Direito Administrativo, em especial em tema de planejamento, conheça, excepcionalmente, as chamadas “leis concretas”. É que a generalidade é um fenômeno que se processa por graus. Assim, diz-se “normas gerais” aquelas cujo grau de generalidade é amplíssimo, para contrapô-las às “normas especiais” que atinem com um universo mais ou menos particularizado de situações jurídicas.

É o que ocorre, precisamente, no que se refere aos transportes coletivos: serviço público essencial, por garantir, na sociedade de massas, um bem essencial à própria sobrevivência, é previsto, em termos amplíssimos, na própria Constituição Federal, que edita normas de competência legislativa (art. 21, inciso XX); é também previsto em leis ordinárias nacionais, tais como o Código de Defesa do Consumidor, que contém normas referentes às condições genéricas da prestação, em todo o território nacional (CDC, art. 22) e a Lei nº 8.987 de 1995, referente ao regime da prestação por intermédio da iniciativa privada, por concessão ou permissão.

É ainda o transporte coletivo previsto nas Constituições Estaduais, que editam também normas gerais, porém já dirigidas a um âmbito de competência territorial mais restrito (na Constituição do Rio de Janeiro, art. 98, inciso IV, relativo à competência legislativa; e art. 112, § 2º, referente aos requisitos da elaboração legislativa), sendo regulado em leis estaduais, com amplo grau de generalidade, prescrevendo as condições gerais da prestação em certo território; e, por fim, em atos administrativos, que, estes sim, detalharão as especificidades do serviço, v.g, o trajeto a ser percorrido pelas linhas municipais e intermunicipais, o preço dos serviços, as condições específicas da prestação etc.

No que concerne às “normas especiais”, referentes às concretas condições da prestação de serviço, convém não perder de vista a distinção, proficientemente operada por Eros Roberto Grau (Constituição e serviço Público, in Direito Constitucional – estudos em homenagem a Paulo Bonavides, São Paulo, Malheiros, 2001, p.249) entre serviço público e atividade econômica. Diz esse autor que “atividade econômica”, em sentido amplo, indica gênero que comporta duas espécies, o serviço público e a atividade em sentido restrito ou próprio. A Constituição Federal indica os critérios para a delimitação das espécies in concreto, (por exemplo, no art. 173 a atividade econômica em sentido restrito, no art. 174, em sentindo amplo). O que importa reter, contudo, é que a distinção é útil para obter o discernimento entre as atividades econômicas que são, necessariamente, serviços públicos (serviços públicos privativos), atividades econômicas que podem ser serviços públicos (serviços públicos não-privativos) e atividades econômicas que não podem ser serviços públicos (atividade econômica em sentido estrito (ob.cit., p. 253)).

Ora, como é por todos sabido, os serviços de transporte se incluem na segunda categoria (serviços públicos não-privativos) que podem ser prestados diretamente pelo Estado ou mediante permissão ou concessão a empresas particulares. E, sendo não -privativos, sua prestação ocorrendo por intermédio de empresas privadas, é óbvio que não lhe é indiferente a equação econômico-financeira da prestação, pois, se assim não fosse, se infringiria o princípio, basilar ao Direito Administrativo, da igual repartição das cargas públicas: não se pode admitir que sobre um ou alguns dos administrados recaia Ônus que deve ser repartido entre todos. Por isto é que, concessão e permissão constituem contratos, CF art. 37, inciso XXI, art. 175 e Lei 8.666/93, art. 1º, § único), isto é, negócios jurídicos bilaterais, cujas cláusulas e condições, uma vez estabelecidas e firmadas pelas partes, só podem ser alteradas nas estritas hipóteses previstas em lei, tal qual, na Lei nº 8.666, o art. 65, sempre se respeitando, como afirma o art. 65, inc. II, “d”, o princípio do equilíbrio econômico-financeiro.

Portanto, tendo em conta os princípios gerais reitores do Direito Administrativo, antes lembrados, as regras especiais são especificadas em atos administrativos e na normativa decorrente do edital licitatório, assim se assegurando concreta operabilidade da equação econômico-financeira, isto é, da relação entre, de um lado, os encargos da empresa contratada, de outro a remuneração que auferirá pelos serviços. Este princípio é concretizado, fundamentalmente, na cláusula do preço contratual.

Até aqui arrolamos e exemplificamos princípios e regras que dizem respeito aos variados aspectos da prestação do serviço público de transporte coletivo. Cumpre agora articulá-los em sua efetiva complexidade, pois estão arrumados numa estrutura, ou rede de relações recíprocas, normas gerais e específicas, normas atinentes à prestação do serviço e normas respeitantes à competência legislativa e mesmo ao processo de elaboração legislativa.

Ora, ao determinar, de um lado, a gratuidade do transporte coletivo para certas categorias, de outro a competência do legislador estadual para editar normas gerais relativas aos transportes coletivos, e, por outro, enfim, as condições ou requisitos da elaboração legislativa, que deve conter, obrigatoriamente, a previsão da fonte de custeio, a Constituição do Rio de Janeiro desenhou modelo jurídico (como tem alertado Miguel Reale  em Fontes e Modelos no Direito – para um novo paradigma hermenêutico, São Paulo, Saraiva, 1994) que só pode ser compreendido adequadamente em sua complexidade estrutural.

Não se pode imaginar que a norma do art. 14 da Constituição Estadual do Rio de Janeiro vigore sozinha, isolada, obrigando, de per si, as empresas que se dispuserem a prestar, por concessão ou permissão, aquele serviço, a suportar os ônus da gratuidade. Se assim ocorresse, a Assembléia Legislativa, a par de editar norma com vício de iniciativa, estaria, literalmente, a “fazer caridade com o chapéu alheio”.

Assim não devendo ocorrer, é manifesto que se ponha em realce o vício de iniciativa, pois, como já aludimos, ao desbordar da competência para emitir normas gerais, a Assembléia do Rio de Janeiro feriu a iniciativa que é do Governador para especificar, por ato normativo do Executivo, os amplos comandos das normas gerais. Como referiu excelentemente o Desembargador João N. Spyrides, Relator da Apelação Cível nº 050302001, que reconheceu a inconstitucionalidade da Lei nº 3.339/99, em seus efeitos concretos, “Por maior que seja a tolerância com a instituição de medidas de natureza assistencial, não se pode deixar de reconhecer que a isenção da tarifa para determinados grupos sociais é manifestação que não poder ser catalogada no seio das normas gerais, constituindo, isto sim, disposição sobre condição específica da exploração do serviço público de que se cuida, referente ao seu preço ou remuneração.”

Mais não se precisaria aduzir, tal a clareza da dicção jurisprudencial, que, com acuidade, tocou no ponto nevrálgico da questão. Porém, para que não se descuide de toda a problemática envolvida, abordaremos, ainda, outro vício das malsinadas Leis, que é o de não indicarem, ou indicarem deficientemente – o que vem a dar no mesmo – a fonte do custeio dos serviços.

A Constituição Federal contém norma específica (art. 167) vedando, expressamente,  ” inciso V – a abertura de crédito suplementar ou especial sem prévia autorização legislativa e sem indicação dos recursos correspondentes”.

Por sua vez, o art. 195, inciso III, § 5º, da mesma Constituição Federal determina: “Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou entendido sem a correspondente fonte de custeio total.”

Ora, para que não se tenha dúvida da incidência desta regra ao caso examinado, basta recorrer ao art. 194 que define o que vem a ser seguridade social, compreendendo esta, “o conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos, e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência, e à assistência social”.

Veja-se bem – “conjunto de ações”, portanto, também as previstas nas indigitadas Leis, ao estenderem, a quem merece tutela especial em razão de deficiência na saúde, fragilidade em razão da idade ou do especial status de estudante, um privilégio especial, consistente na gratuidade do uso de transporte coletivo. Ação, portanto, de indisfarçável cunho assistencialista, amoldado perfeitamente aos objetivos precípuos da “assistência social” tal como posta no art. 203 da Constituição, in verbis:  “A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente da contribuição à seguridade social, tendo por objetivos, entre outros, previsto no inciso 4 do mesmo artigo, a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária.”

Isto está a significar que, por mais meritória que sejam as Leis em seus objetivos, foi, in casu, frontalmente afrontada a Constituição Federal e mesmo a Constituição Estadual do Rio de Janeiro por uma multiplicidade de atos, a saber: a) ampliação dos casos de gratuidade do transporte coletivo, extrapolando do texto constitucional mediante “normas gerais”, que inovam na matéria; b) carência, ao fazê-lo, de indicação da indispensável fonte de custeio pelo duplo motivo cominado nos artigos 167 e 195, III, 5º, da Constituição Federal; c) atribuição, às empresas prestadoras do serviços público, do dever de custearem a gratuidade, pois, dada a falta de indicação da fonte de custeio, aquela é unilateralmente imputada às empresas privadas, não sendo aplicadas as normas constitucionais invocadas,  mas sim acrescentadas indevidamente obrigações não estipuladas na Constituição Estadual; d) quebra do princípio que determina o respeito ao ato jurídico perfeito, por levar à violação do pacta sunt servanda, atribuindo às empresas encargos não previstos no contrato de permissão ou concessão, e assim alterando, indevidamente, o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.

Nossa opinião é, assim, no sentido da inconstitucionalidade manifesta das Leis Estaduais nºs 3.339/99 e 3.650/01, pelos motivos acima expostos.