A Internet e o fim da privacidade

15 de maio de 2013

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1. Considerações iniciais

A proteção dos direitos humanos é uma ideia tão antiga quanto o próprio homem. Ainda que os códigos das primeiras civilizações não ostentassem a preocupação de limitar os poderes estatais ou atribuir direitos ao homem, a necessidade de existirem garantias mínimas ao indivíduo é uma ideia imanente à própria condição humana. A sistematização formal dos direitos humanos inicia-se, contudo, com o constitucionalismo, cuja origem remonta à Magna Carta Inglesa imposta pelos barões de Londres ao Rei João Sem Terra em 15 de junho de 1215.

A primeira geração de direitos humanos marca a consagração do Estado Liberal e a proteção dos direitos e garantias individuais, que foram consagrados em dois documentos de inestimável valor histórico: a Declaração Americana da Virgínia (1776) e a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Cuida-se da garantia do direito à vida, à igualdade, à liberdade de locomoção, à livre manifestação do pensamento, entre outros tantos, dentre os quais devem ser destacados, para fins destas reflexões, o direito à privacidade e à intimidade, assegurados pelo art. 5º, caput, X da Constituição da República.

São direitos inalienáveis e imprescritíveis que irradiam diretamente da personalidade humana e constituem os bens mais preciosos do nosso patrimônio jurídico. Quanto a eles, não se admite negociação, por qualquer que seja o preço e, sobre eles, não incide a perda definitiva, qualquer que tenha sido o crime cometido. Deles não podemos dispor e a eles não podemos renunciar. São eternos, absolutos e ultrapassam até mesmo os limites da nossa existência, pois tais direitos fazem parte de algo que é maior que cada um de nós: a dignidade da pessoa humana.

2. A privacidade e a intimidade

A ideia de proteger a privacidade das pessoas decorre da necessidade de se garantir ao indivíduo um espaço mínimo de intimidade onde se possa estar livre de intromissões indesejadas. O direito é consagrado pelo art. 5º, caput, X da Constituição da República e encontra respaldo legal no art. 21 do Código Civil, onde se assegura a inviolabilidade da vida privada, cabendo ao Poder Judiciário adotar as providências cabíveis para impedir ou fazer cessar qualquer ato contrário a esta norma.

Embora se reconheça a similitude de conceitos, é preciso estabelecer a distinção entre o direito à privacidade e o direito à intimidade. A privacidade engloba toda a esfera de relacionamentos humanos do indivíduo que ele não deseja que se tornem de conhecimento público. A intimidade, por sua vez, compõe um espaço mais pessoal e interiorizado onde geralmente se estabelecem as relações conjugais, familiares e de amizade. Destarte, a privacidade, por assim dizer, constitui uma esfera mais abrangente e exterior, dentro da qual se encontra inserida a intimidade. Como se fossem dois círculos concêntricos. Existem autores, vale salientar, que acrescentam um terceiro círculo ainda mais profundo dentro da esfera da intimidade, que seria a dimensão do segredo, acessível quase que apenas pela própria mente do indivíduo.

O direito à privacidade, de modo geral, assegura ao cidadão a possibilidade de manter sua vida doméstica, suas relações familiares e de amizade, seus hábitos cotidianos e pensamentos mais íntimos, desconhecidos do público em geral. Assim, o indivíduo possui o direito de que ninguém saiba a respeito da localização de seu domicílio, do conteúdo de sua correspondência, de suas relações com familiares e amigos, de sua intimidade sexual e de outros assuntos que só interessem à sua pessoa. Ou, como bem sintetizado na fala do Juiz norte-americano Cooly, em 1873, a privacidade significa o direito de estar só: the right to be alone.

Se esse direito à privacidade for violado, a pessoa pode recorrer ao Juiz para a adoção das medidas necessárias a fim de que seja cessada a lesão, sem prejuízo da respectiva indenização pelos danos morais e materiais eventualmente causados. Assim, verbi gratia, se alguém tiver uma foto íntima obtida por meios ilícitos e divulgada sem o seu consentimento, pode exigir que se interrompa a divulgação e que o autor do fato seja condenado ao pagamento de uma compensação financeira pelos prejuízos causados. Isso sem embargo das conseqüências criminais decorrentes do modo como a informação foi obtida.

É claro, e oportuno registrar, que a interpretação da violação à privacidade dependerá do exame das circunstâncias do caso concreto e das condições pessoais dos envolvidos, de modo que se admite uma maior tolerância em relação à divulgação de fatos referentes a pessoas públicas, que, pelo cargo assumido ou profissão escolhida, ficam sujeitos à maior exposição dos meios de comunicação. Todavia, ainda assim, existem limites éticos e jurídicos a serem respeitados.

3. A violação da privacidade na Internet

A Era Digital inaugurou uma nova fase evolutiva do relacionamento humano. As inovações tecnológicas, cada vez mais presentes em nosso cotidiano, alteraram nossos hábitos e costumes e abriram um leque infinito de novas possibilidades de interações interpessoais. Hoje, estamos todos conectados com o mundo, naquilo que se convencionou chamar de uma enorme aldeia global. Mudamos nossa forma de nos corresponder, de efetuar pesquisas, de fazer compras, de ouvir música, de ler livros, de ver fotografias e, sobretudo, de nos comunicar. As redes sociais eliminaram as barreiras da distância, aproximaram as pessoas e colocaram todos numa grande sala de bate-papo virtual.

Não se discute que a tecnologia nos tem trazido benefícios e facilidades extraordinários, nem se olvida que este é um caminho inevitável e sem retorno. Contudo, é preciso que o encantamento com as inovações cibernéticas não nos retire a capacidade reflexiva quanto ao modo como as transformações sociais se conduzem. O crescimento do convívio no ambiente virtual traz como consectário lógico a mitigação do contato real e verdadeiro entre as pessoas. Enfraquecemos nosso lado humano, banalizamos nossas relações pessoais e renunciamos quase que inteiramente à nossa privacidade.

Inocentemente, permitimos, dia após dia, que nossa intimidade seja violada e armazenada em bancos de dados alheios sem que, muitas vezes, sequer nos demos conta do que se sucede. É preciso que nos conscientizemos de que nada é gratuito na rede mundial de computadores. As empresas hospedeiras de e-mails, mantenedoras de redes sociais e ferramentas de busca não foram criadas para favorecer a comunicação e o entendimento entre os povos. Elas foram criadas para gerar lucro. E quanto mais, melhor. Quando cadastramos um e-mail, participamos de uma rede social ou utilizamos mecanismos de busca, nós pagamos pelo serviço com algo que nos é muito caro e valioso: nossas informações e dados pessoais. Tais elementos são convertidos em moeda de troca para a veiculação de toda sorte de publicidade em nossas páginas de navegação. Por meio de nossos acessos, as empresas prestadoras de serviços na internet conseguem mapear nossas áreas de interesse e fazer algo tão poderoso que nenhum outro meio de comunicação jamais conseguiu: uma publicidade inteiramente personalizada.

Explica-se. Quando se anuncia um novo modelo automotivo na televisão, por mais caro que seja o horário da veiculação, muitos dos telespectadores atingidos pelo anúncio não estão entre o público alvo desejado. Por outro lado, a internet possibilita, a baixo custo, que nossos dados pessoais sejam cedidos para que se faça uma publicidade perfeitamente individualizada e, por isso, com grandes possibilidades de êxito comercial. Quem nunca se deparou, em suas páginas de navegação, com um anúncio publicitário que coincidisse exatamente com os termos de uma busca anteriormente realizada? Alguém certamente está lucrando com isso…

O mais intrigante é que a maioria dos usuários contribui espontaneamente para alimentar estes bancos de dados, que são cedidos para toda sorte de publicidade abusiva, intrusiva e invasiva. E aqui cabe fazer uma distinção entre invasão de privacidade e evasão de privacidade. A primeira ocorre quando um terceiro invade o ambiente virtual do usuário sem o seu consentimento e se apropria de dados que podem ser utilizados ilicitamente. É o que acontece, por exemplo, quando um hacker obtém uma foto íntima de alguém e a divulga em um site com conteúdo erótico. Nesse caso, o ofendido possui o direito de fazer cessar a lesão (com a retirada do material do ar) e pleitear uma indenização por danos morais e materiais. Diferente é a hipótese da evasão de privacidade, que ocorre quando o próprio usuário disponibiliza espontaneamente suas informações pessoais na internet. É o que acontece quando alguém posta uma fotografia em redes sociais ou fornece dados quanto à sua pessoa, sua localização geográfica, seus bens e seus relacionamentos sociais.

O fenômeno da evasão de privacidade tem se tornado cada vez mais corriqueiro e banalizado. Diariamente, e muitas das vezes sem nos darmos conta, nós alimentamos um gigantesco banco de dados que registra não apenas nossos interesses de consumo, mas também nossas preferências políticas, religiosas, filosóficas, esportivas e até sexuais. É o sonho de consumo de qualquer CIA, Gestapo, KGB ou DOI-CODI (que era o serviço secreto de inteligência brasileiro a serviço da Ditadura Militar). Enquanto tais dados estiverem sendo utilizados apenas para traçar perfis de consumo e fomentar anúncios publicitários, menos mal. Mas e se forem usados para outros fins? Existe uma infinidade de possibilidades criminosas e antidemocráticas para quem estiver de posse de tais informações…

4. O direito ao esquecimento

Entre muitas outras novidades, a Era Digital trouxe consigo a reivindicação de direitos sobre os quais, antes, pouco ou nada se havia discutido. Um dos maiores exemplos é o direito ao esquecimento, que significa, em linhas gerais, o direito de uma pessoa apagar da rede mundial de computadores informações sobre si, de modo a preservar a sua privacidade.

O direito ao esquecimento esbarra, muitas vezes, na falta da regulamentação do tema e nas escusas de inviabilidade técnica usualmente utilizadas pelas empresas que operam na internet para justificar o descumprimento de solicitações de usuários ou mesmo de decisões judiciais. Uma iniciativa de destaque para se assegurar a efetividade desse direito foi adotada na Espanha com a criação da Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD), segundo a qual “nenhum cidadão que não goze da condição de personalidade pública nem seja objeto de um fato de relevância pública tem de se conformar que seus dados pessoais circulem na rede”.

Com efeito, é razoável que uma pessoa possa solicitar que uma determinada informação ofensiva a seu respeito e sem relevância pública seja apagada dos registros da internet, ainda que verídica. Entendimento contrário seria equivalente à imposição de uma pena perpétua para alguém que, muitas vezes, em nada contribuiu para aquela divulgação. O próprio ordenamento jurídico assinala que o nome da pessoa não pode ser empregado em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, consoante o disposto no art. 17 do Código Civil. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, prevê que o nome do devedor inadimplente só pode ser mantido em cadastros restritivos ao crédito por, no máximo, cinco anos. Isso sem falar na reabilitação penal, que pode ser requerida após dois anos da extinção da pena, nos termos do art. 94 do Código Penal.

Assim, não se pode pretender armazenar informações desabonadoras sobre quem quer que seja por tempo indefinido. O tema, contudo, abre precedente para as mais variadas polêmicas. E se a hipótese for de relevância social? Ou se o caso se passar com uma personalidade pública? É justo ocultar esse tipo de informação do público em geral? É possível se reescrever a história? São indagações sobre as quais ainda não existe resposta definitiva.

5. Considerações finais

O mundo mudou. A vida está em constante evolução. A Era Digital é uma realidade cada vez mais presente em nosso cotidiano. Não há caminho de volta e nem se pretende iniciar uma cruzada contra a informática e as inovações tecnológicas dela decorrentes. Mas, como se asseverou alhures, é preciso que o encantamento com a internet não nos retire a capacidade reflexiva quanto ao modo como as transformações sociais se conduzem. A permanência excessiva no ambiente virtual enfraquece nosso lado humano e banaliza nossas relações pessoais. Como bem pontuado por Michel Foucault, “a visibilidade é uma armadilha”. E toda essa superexposição a que nos leva a internet deve encontrar seus limites o mais depressa possível, antes que desapareça por completo o pouco de privacidade que ainda nos resta.