A Justiça e a ovelha perdida

5 de janeiro de 2004

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Eis que os fariseus e os escribas murmuravam contra Ele, dizendo: recebe pecadores e come com eles. Então, Ele lhes propôs uma parábola: imaginem que um de vocês tenha 100 ovelhas e perdendo uma delas, uma só, se levanta e sai pelo deserto à sua procura, passa sede e frio, se arranha nos espinhos das covas. Achando-a, a põe sobre os seus ombros. E, chegando a casa, convoca amigos e vizinhos, ordena música e vinho, dizendo: alegrai-vos comigo, porque achei a minha ovelha perdida.

O Natal e o Ano Novo nos estimulam a pensar nos outros e em nós mesmos. Qual o sentido da nossa ação, do nosso ofício, do nosso ministério e assim por diante. Os que distribuímos justiça, ano após ano, nos indagamos sobre o sentido cristão da Justiça.

Sem prejuízo do que têm dito os doutores da Igreja, de Paulo, iluminado na estrada de Damasco, a João XXIII, tenho que esse sentido está contido na parábola da ovelha perdida. ”Cobrai-a, Senhor, e não queirais, pastor divino, perder na vossa ovelha a vossa glória”, escreveu o impenitente Gregório de Matos há 400 anos. É o sentido da responsabilidade pelo mais fraco, pelo que se perdeu no ermo da noite. Nossa civilização deve ao cristianismo a superação do ”olho por olho, dente por dente” das sociedades arcaicas.

Com o Filho do Carpinteiro que nasceu na manjedoura surgiu a compaixão no horizonte do homem. Nihil humanum alienum puto, escreveu o pagão Terêncio, nem uma ovelha fique perdida na noite, diz a parábola. A ovelha perdida é portadora de direitos por igual que as 99 que ficaram protegidas do frio e da fome. Há de ter quem se importe com ela, vá buscá-la no deserto frio. A teoria dos Direitos Humanos está contida, pois, no cristianismo, assim como em outras religiões (na tradição dos orixás, por exemplo, no hinduísmo, no budismo, no islamismo etc.).

Como aceitar, nessas circunstâncias, a redução da idade penal e a pena de morte, propostas emotivas que revivem a cada crime violento em nosso país? Elas fariam regredir a Justiça brasileira, afastando-a do sentido cristão de justiça. (Ernest Renan deixou uma especulação intrigante: não houvesse pena de morte no Império Romano, Cristo não seria crucificado).

O Filho do Carpinteiro nasceu em Belém porque um edito de recenseamento tirou a pequena família de sua cidade. Sua primeira aparição pública foi no templo onde discutiu com doutores a lei judaica. Um juiz lavou as mãos quando seus compatriotas, baseados na mesma lei, quiseram condená-lo à pena capital. E, finalmente, expirou entre dois condenados à morte por assalto. Do nascimento à morte, a vida de Cristo transcorreu entre atos de Justiça. A história da nossa civilização é, num certo sentido, a história da evolução da idéia de Justiça. Talvez por isso, o Natal nos predisponha a pensar na transcendência do ofício de julgar segundo uma lei escrita por homens demasiadamente humanos (Nietzsche). Na Justiça e em sua objetivação social, que é um tribunal. Se Justiça é uma idéia, o tribunal é uma instituição do Estado – sua prática cotidiana é o poder de aplicar a lei. Um poder imenso, que verga e levanta, ao mesmo tempo, os ombros de quem o exerce.

A função sistêmica do Judiciário é a manutenção dos pactos sociais que se sucedem em decorrência da dinâmica social. É um poder moroso? Reconheçamos que nossos tribunais não se ajustaram ainda à nova situação histórica brasileira: a demanda de massa por justiça, um fenômeno que não chega a meio século. Quando a demanda era de elite, no Império e na República Velha, os judiciários não pareciam lentos. A informatização do Judiciário estadual (que completarei em minha gestão) foi, entrementes, uma medida essencial para modernizar a prestação de justiça. Assim também a autonomia financeira que conquistamos em nosso Estado, desde 1999.

Mas atenção: o tempo da Justiça não se mede em bilionésimos de segundo, como nos computadores. É um tempo lento, a salvo da velocidade vertiginosa do mundo atual, que submerge ou pasteuriza os valores, velocidade que só interessa, ultima ratio, aos vendedores transnacionais de mercadorias. A transcendência do ofício de julgar está precisamente em que lhe cabe defender os valores do homem por sob os pactos sociais e as ”revoluções tecnológicas” que fazem e refazem sem cessar as normas e as regras jurídicas. Teriam os tribunais a função exclusiva de julgar? Num sentido estrito, sim. Mas pensemos, por um instante, na massa formidável de questões diariamente levadas a juízo. Cada uma é um texto – petições, testemunhos, perícias, intimações, sentenças, agravos, memoriais… Autos dos processos são livros de centenas de páginas. Imenso ”livro do tudo”, arquivam as paixões humanas, dores e risos de quem não tem tudo e de quem não tem nada, de quem a vida tratou mal e de quem foi feliz, da empresa e do consumidor, do gerente e do comprador, do branco e do negro, do homem de bem e do meliante… É sobre esse imenso arquivo construído pelos tribunais que projetaremos a extensão da cidadania à totalidade da nossa população. O nosso povo é esse que aparece nos autos, em sua miséria e grandeza, de corpo inteiro. É com ele, e não com outro, que concluiremos um dia a nação brasileira.

Tivemos este ano no Tribunal de Justiça derrotas e vitórias. Uma destas, talvez a maior, foi diplomar a primeira turma de agentes comunitários de Justiça, 30 jovens do complexo de favelas da Maré que já estão trabalhando nos juizados especiais. Eis uma boa nova: responsabilidade e compaixão.