A Justiça, o direito e a lei

12 de novembro de 2004

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(Editorial originalmente publicado na edição 52, 11/2004)

É notadamente incompreensível para o leigo, certas decisões prolatadas pelos Tribunais, principalmente, quando o sentido humanista e incidente da justiça é sufocado pela aplicação da letra fria da lei, que mais traduz o direito instituído que o direito esperado.

Encontra-se no Supremo Tribunal Federal, em julgamento, com vistas ao eminente Ministro Carlos Ayres  Britto, o processo que trata do aborto de feto anencéfalo. Poucos processos, como este, chegados a nossa mais alta Corte, despertaram tanta celeuma, opiniões, sustentação jurídica e acalorados debates entre os Ministros, além dos persistentes lobbies por parte de entidades e organizações com vínculos religiosos.

A sustação da Medida Liminar, concedida anteriormente pelo Ministro Marco Aurélio, pela votação da maioria da Corte, vencidos os Ministros Ayres Britto, Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio e Celso Mello, deixa antever a pendência do julgamento contra o aborto anencéfalo, desprezando-se as manifestações das categorias médicas e de saúde, da opinião pública, da maioria da sociedade, além dos posicionamentos de órgãos representativos como a OAB e associações da sociedade civil.

A nossa opinião não se insurge contra a derradeira decisão do julgamento da matéria pelo Supremo Tribunal Federal, mas, desejamos chamar atenção para a problemática criada entre o sentido humanista da justiça e das expectativas da sociedade civil organizada e a compreensão  restritiva do direito ante a força compressiva de interesses.

Independentemente das arraigadas convicções religiosas e a positiva prevalência na fé em Deus, porém, é de transcendental importância acentuar a independência laica do Estado, que impede a subordinação a dogmas religiosos ou ideológicos, alguns já ultrapassados pela realidade dos avanços da humanidade, que não podem ficar impedidos ou se curvarem ao passado.

Neste momento torna-se oportuno, face o portentoso julgamento, que envolve além da relevante matéria jurídica, aspectos de alta importância humanista, e também democrática, vivenciar o pensamento do eminente Ministro Celso Mello, expendido sobre julgamentos no presente, em especial a conscientização do significado e conseqüências do “voto vencido”, considerando-se as experiências em pleitos no passado, e as alterações fundamentais de sentido prático na aplicação da lei, que se delineiam para o futuro, em razão das modificações estruturais que ocorrem em todos os setores da sociedade.

Disse o Ministro Celso Mello: “o voto vencido possui o sentido mais elevado do direito e da justiça, exprimindo na solidão de seu pronunciamento, uma percepção mais aguda de realidade social que pulsa na coletividade, antecipando-se, aos seus contemporâneos, na revelação de sonhos que animarão as gerações futuras na busca da felicidade mais justa e solidária e na edificação de um Estado fundado em bases genuinamente democráticas.”

Entre outras consistentes considerações, o eminente mestre Ministro Celso Mello, aduziu e alicerçou seu pronunciamento com a opinião do reconhecido Raymundo Faoro, ao enfatizar que o voto vencido, muitas vezes “representa a honra de um corpo político, alicerce da opinião vencedora num passo subseqüente. É o voto da coragem, de quem não teme ficar só…”

Finalmente,  os Tribunais não podem desprezar a visão simbólica e espiritual da realidade presente como prenúncio  do futuro próximo, como base dos entendimentos que devem se alicerçar na justa opinião, nem sempre expressiva da lei, mas das esperanças, que muitas vezes são o pressuposto das decisões que devem prevalecer no Estado Democrático  de Direito.

Que o espírito de Themis baixe sobre o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL!