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A Lei do Gás é muito mais do que a questão do autoprodutor e autoimportador

23 de outubro de 2012

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O Brasil vive, sem sombra de dúvidas, novos tempos. Sua economia e importância são cada vez maiores no contexto mundial. As duas últimas décadas produziram grandes avanços no país, que conseguiu reduzir distâncias para os países mais desenvolvidos.

No setor do gás natural, isso não foi muito diferente. Nesse mesmo período, ocorreram no país grandes transformações, o que fez o setor avançar de forma significativa. A participação do gás natural na matriz energética nacional passou de cerca de menos de 3% a mais de 10%, contribuindo para aproximar o Brasil da média dos países mais desenvolvidos, que se situa acima dos 20%.

A inserção definitiva e de forma mais intensiva do gás natural no país possibilitou à indústria local dar um salto de eficiência e modernidade, e também propiciou significativos ganhos ambientais, tendo em vista o deslocamento do óleo combustível no uso industrial pelo gás natural.

Isso foi possível graças a um volume expressivo de investimentos e de algumas mudanças estruturais ocorridas no setor em toda a cadeia do gás natural, da produção ao consumo final.

Apesar de todos esses avanços, o setor do gás natural ainda está atrasado, se comparado com outros países e, mesmo, com outros setores no Brasil, como energia elétrica e telefonia, que hoje alcançam um amplo universo da população e da economia. No caso do mercado doméstico − em que pese o crescimento verificado nos últimos anos − somente cerca de 3% das residências do país são abastecidas com gás natural, num setor ainda dominado pelo GLP, que é precificado abaixo das cotações internacionais desse produto, ao contrário do que ocorre com o gás natural. O Rio de Janeiro é o Estado com o maior nível de penetração no mercado residencial com cerca de 25%, seguido de São Paulo, com 8%, e os demais Estados, com menos de 2%.

Enfim, tivemos um grande avanço nas últimas duas décadas, mas ainda há muito por fazer para nos aproximarmos dos países mais desenvolvidos. Entre as questões mais importantes, estão a regulamentação e a concorrência.

A necessidade de se buscar uma legislação específica para o gás natural, que esteve todos esses anos vinculado ao marco legal do petróleo, levou o Governo a introduzir uma nova lei para o setor, denominada Lei do Gás.

A Lei do Gás, sem dúvida, trouxe alguns aspectos novos e interessantes, como o fim do regime de autorizações na construção de gasodutos que terão que ser licitados, um planejamento integrado da expansão do sistema e muitos outros aspectos que, no longo prazo, permitirão um regime de maior transparência e concorrência.

Por outro lado, essa mesma lei está gerando algumas dúvidas no que concerne ao artigo 63 do capítulo VI de sua regulamentação, que foi realizada por meio do Decreto 7.382 de 02/12/2010. O artigo 63 estabelece que o consumidor livre, o autoprodutor ou o autoimportador, cujas necessidades de gás não possam ser atendidas pela distribuidora estadual, poderão construir diretamente instalações e dutos para seu uso específico, mediante celebração de contratos, que atribua à distribuidora local a sua operação e manutenção, por meio de tarifa de operação e manutenção – O&M.

A regulamentação estabelece ainda que, nos casos em que as instalações forem construídas pelas Distribuidoras estaduais, as tarifas serão definidas pelas Agências de Regulação estaduais, considerando a especificidade de cada instalação, o que poderia se interpretar como uma tarifa ao custo marginal da instalação.

Embora a Lei do Gás deixe explícito que cabe ao regulador local tratar do assunto, a mesma avançou um pouco na sua definição, abrindo um vasto campo de discussão e debate jurídico da questão.

Algumas questões precisam ser respondidas, tais como: Tem a Lei do Gás, do ponto de vista jurídico, poder para estabelecer tarifas e condições finais quanto à distribuição de gás canalizado no âmbito dos Estados?

No caso de uma Distribuidora local não construir um duto de distribuição solicitado por um autoprodutor ou autoimportador, poderão os mesmos construir o duto e celebrarem diretamente com a Distribuidora um contrato de O&M? Ou o Estado em questão deverá realizar uma subconcessão ou uma nova outorga?

Sob o prisma jurídico, o serviço de distribuição de gás canalizado prestado aos autoprodutores e autoimportadores equipara-se ao que é prestado pela mesma concessionária a um consumidor livre?

Essas e outras questões estão gerando muitas discussões e incertezas quanto à aplicabilidade da Lei do Gás no âmbito da distribuição de gás canalizado, que é de competência dos Estados, conforme o disposto no parágrafo 2o do artigo 25 da Constituição Federal, que define que cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da Lei.

O Modelo Federativo partilha a competência sobre a cadeia produtiva do gás natural entre União e os demais entes federados, e estabelece a competência exclusiva do Estado para normatizar os serviços locais de gás canalizado. Na opinião de juristas, não se trata de competências concorrentes, mas exclusivas, portanto a competência da União em matéria de gás canalizado termina onde se inicia a competência dos Estados.

Caberá às Agências Reguladoras locais observar as inovações introduzidas pela Lei do Gás, mas sempre respeitando o marco regulatório local e os contratos de concessão, evitando interpretações que possam configurar alterações unilaterais dos mesmos, em especial daquelas que possam comprometer o equilíbrio econômico-financeiro da concessão. Interpretações inadequadas da nova Lei do Gás pelos reguladores locais poderão ainda ameaçar a competitividade do mercado de gás colocando em risco a universalização do uso do gás canalizado no país. Seria interessante também, consideradas as características e o estágio de desenvolvimento de cada área de Concessão, se buscar alguma simetria regulatória no conjunto dos Estados.

A Distribuição de gás canalizado, assim como a atividade de transporte, é um monopólio natural e exige grandes e permanentes investimentos e, no caso de mercados pouco maduros como é o nosso, os custos médios tendem a serem maiores que os custos marginais. Portanto, utilizar o custo marginal para alguns poucos clientes poderia prejudicar a grande maioria e criar um tratamento não isonômico entre os usuários. Tal situação preocupa ainda mais, tendo em vista que sua interpretação ficará a critério de cada regulador local, que poderá vir a editar normas distintas em cada Estado, ampliando a assimetria da regulação da distribuição de gás em todo o país.

Existem, em todo o país, 27 distribuidoras locais de gás canalizado constituídas em distintos graus de desenvolvimento. Existem aquelas cujo mercado é todo greenfield ou ainda sem gás, outras com mercado incipiente, ainda necessitando de grandes investimentos e, por fim, aquelas mais desenvolvidas, como no RJ e SP, porém, com amplas áreas não atendidas por distintas razões. Não existe no país, apesar do grande avanço recente, nenhum caso que se assemelhe aos países mais desenvolvidos, que alcançam entre 50% a 90% de penetração do gás no conjunto dos potenciais consumidores. Como comentado anteriormente, no RJ esse percentual é de 25% e em SP, 8%.

Na maior parte dos países onde a indústria do gás é madura, existem os clientes cativos ou regulados e clientes livres, ainda que com grau de abertura diferente. Essa diferenciação é feita considerando, exclusivamente, o fato de o cliente regulado estar obrigado a comprar a molécula do gás natural da distribuidora local, enquanto o cliente livre pode comprar diretamente no mercado, sem intermediação da distribuidora. Porém, nesses países onde a indústria é madura, também existem outros fatores indispensáveis para o bom funcionamento desse mercado livre (grande número de fornecedores, limites para a concentração de atividades, liberdade de acesso às redes de transporte e aos terminais de regasificação, maior número de concorrentes no mercado de produtos substitutivos do gás, etc.).

As economias modernas buscam estabelecer condições de livre concorrência de mercado, onde quem ganha é o consumidor final, em preço e qualidade de serviço, mas algumas considerações precisam ser feitas para uma melhor compreensão da questão: Em primeiro lugar, cabe esclarecer que em toda a cadeia do gás existem algumas atividades com características de monopólio natural como o transporte, a distribuição e outras, que, ao contrário, possuem características de livre concorrência, como o caso da produção e comercialização.

Portanto, para se ter um ambiente de livre concorrência, é preciso, em primeiro lugar, haver um equilíbrio entre a oferta e a demanda e, se possível, uma maior oferta que a demanda.

Em segundo lugar, uma infraestrutura de transporte madura e com capacidade disponível, que permita o acesso à oferta.

E, em terceiro lugar, reguladores fortes, fiscalizando para coibir eventuais abusos e concentração econômica.

Algumas das questões acima explicam por que, apesar da regulamentação da Lei do Gás já estar valendo há mais de um ano e meio ainda não ter produzido nenhum consumidor livre. Nos casos do RJ, SP e ES, o consumidor livre está regulamentado muito antes da Lei do Gás e, até o momento, apesar dessa possibilidade, não existe um só cliente efetivamente livre no Brasil.

A Lei do Gás foi um grande passo e estabeleceu as bases para um novo salto da indústria do gás. No longo prazo, veremos seus efeitos no desenvolvimento e na abertura progressiva da indústria do gás no país mas, para isso, se fará necessário uma avaliação permanente dos seus efeitos, não somente nos grandes clientes e no setor termelétrico, mas no conjunto de todos os potenciais consumidores, residencial, comercial, cogeração, veicular, etc., de forma a avaliar a eventual necessidade de se introduzirem medidas adicionais futuras, como forma de garantir o alcance dos objetivos.

É necessário, sim, discutir a questão do autoprodutor e autoimportador, mas a indústria do gás natural é muito mais do que isso, e se perdermos muito tempo discutindo essa questão que, ao final, tem um efeito muito limitado e para poucos, podemos correr o risco de atrasar a universalização do uso do gás natural no país e a inclusão do Brasil no seleto grupo de países intensivos no uso do gás natural.

A Lei do Gás é muito mais do que a questão do autoprodutor e autoimportador.