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A lei não pode suprimir o direito de propriedade

5 de novembro de 2004

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“Nossas relações econômicas se regem pelas regras do sistema capitalista da economia de mercado, não sendo lícito ao Estado, em nome de uma obrigação que é sua, confiscar vagas em ônibus ou em qualquer outro meio de transporte, sem a correspondente contrapartida indenizatória”.

Ministro Edson Vidigal ao indeferir pedido de liminar proposto pela Agência Nacional de Transportes Terrestres que buscava cassar decisão que insentava a Associação Brasileira das Empresas de Transportes Terrestre de Passageiros cumprir determinação contida no Estatuto do Idoso, ou seja de reservar pelo menos duas vagas nas linhas interestaduais.

A Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros – ABRATI moveu Ação Cautelar preparatória com vistas à suspensão da obrigatoriedade de suas associadas, empresas permissionárias da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, realizarem o transporte de passageiros idosos, até efetiva regulamentação do Estatuto do Idoso, Lei nº 10.741/03, art. 40, p. único I e II c/c art. 115, p. único.

Foi deferida a liminar pelo Juízo da 14ª Vara Federal de Brasília/DF, para que a ANTT e a União “se abstenham de qualquer ato tendente a punir as associadas da autora no que toca ao cumprimento da reserva de vagas para idosos, prevista na Lei nº. 10.741/04 e Decreto nº. 5.130/04” (fl. 094).

Acionado o Agravo de Instrumento pela ANTT, foi concedido o efeito suspensivo pleiteado no TRF/1ª Região, pelo Desembargador Federal Relator, sobrestando os efeitos da liminar acautelatória que impedia o cumprimento da Lei nº. 10.741/03.

Não previsto no Regimento Interno daquela Corte, art. 293, § 1º, o cabimento de Agravo Interno na hipótese, a ABRATI impetrou Mandado de Segurança, obtendo liminar, também conferida pelo Desembargador Federal Relator, que restabeleceu a decisão de primeiro grau e determinou à ANTT e à União que se abstivessem de qualquer ato tendente a punir as associadas da impetrante no que diz com o cumprimento da obrigação de reserva de vagas para idosos prevista na citada norma legal.

Daí esta Suspensão de Segurança com pedido de liminar apresentada pela Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, fundado na Lei nº. 4.348/64, art. 4º, por alegada lesão à ordem pública administrativa.

Sustenta a necessidade de se preservar valores como o da dignidade e da solidariedade humana, que teriam sido vilipendiados pela decisão vergastada, que atuou em favor de meros interesses de ordem econômica em detrimento dos interesses de cidadãos idosos e pobres que necessitam fazer uso do serviço público, delegado a terceiros, de transporte rodoviário interestadual de passageiros.

Basta que a liminar ou a sentença seja portadora de riscos a um dos valores tutelados na Lei nº 4.348/64, afirma, para retratar a aplicação do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, até porque, eventual lesão patrimonial a direito do impetrante será reparada, configurando-se um caso de responsabilidade civil (Estudos e Pareceres. Mandado de Segurança, “Revogação da Medida Liminar em Mandado de Segurança”, Arruda Alvim, RT, 1995, págs. 377/379).

Alega constituído o periculum in mora pelo risco de os idosos pobres de todos os lugares ficarem tolhidos, indeterminadamente, no seu direito de ir e vir, e o fumus boni iuris, consubstanciado na probabilidade de a decisão liminar a qual se pede a suspensão, ser contrária às normas existentes na ordem jurídica, já que retira a eficácia da Lei vigente – nº. 10.741/03, art. 40, e ofende o princípio da proporcionalidade/razoabilidade, oferecendo proteção a interesses econômicos, em detrimento dos sociais mais relevantes.

Deve-se entender a ordem pública aqui, aduz, como ordenação da sociedade a fim de trazer segurança, saúde e tranqüilidade para toda a sociedade através do Ente Público constituído mediante o exercício soberano do povo, administrado por seus representantes eleitos para tal atividade. A pretexto de salvaguarda aos interesses econômicos de permissionários de serviço público, a decisão, cujo fundamento é o de afastar o risco de desequilíbrio econômico-financeiro na execução do contrato de permissão, suprimiu o direito de todos os idosos com renda de até dois salários mínimos, constante do Estatuto do Idoso, art. 40. Direito esse, regulamentado pelo Decreto Presidencial nº. 5.130 de julho/04, parcialmente alterado pelo Decreto nº. 5.155/04, que define os mecanismos e os critérios para o seu exercício, e a Resolução nº. 653/04 da ANTT, que dispõe sobre procedimentos a serem observados na aplicação do Estatuto do Idoso, no âmbito dos serviços de transporte rodoviário interestadual regular de passageiros.

A seu ver não é razoável o argumento da execução da gratuidade e do desconto assegurado ao idoso (art. 40) estar condicionada, além da regulamentação por Decreto e Resolução, à edição de lei específica. Isto porque, ainda que exigência houvesse, o Poder Público editou o Decreto n. 5.130/04 e a Resolução nº. 654/04, ensejando a fiel execução da gratuidade e do desconto aos idosos nos termos da Lei nº. 10.741/03, art. 40. Não há imposição de edição de lei específica como condição de eficácia do que preceitua, somente consignando que, no cumprimento da gratuidade e do desconto, deveria ser observada a legislação específica do setor de transporte interestadual de passageiros (normas regulamentadoras), preexistente ao Estatuto do Idoso.

Traz argumentos de natureza constitucional, como o princípio de amparo às pessoas idosas, CF, art. 230 e art. 5º, XV; 37, XXI. E de natureza legal, LICC/Lei de Introdução ao Código Civil, art. 5º, com precedentes desta Corte em questões análogas, determinantes de que no sopesamento de valores o princípio do amparo aos deficientes físicos deve prevalecer sobre o princípio do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo, consoante os ditames da proporcionalidade, ROMS/Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº. 13.084-CE, Rel. Ministro José Delgado.

Alega o caráter satisfativo da liminar, que contraria a Lei nº. 8.437/92, art. 1º, § 3º, arrematando com o perigo na demora inverso, pois, se alguma parte deve arcar com a demora no processo, devem ser as permissionárias de transporte, porquanto constituem longa manus do poder estatal, com personalidade jurídica híbrida, devendo atuar com responsabilidade social e com vista ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, além de serem mais fortes na relação em tela. E, eventuais prejuízos – acrescenta ainda – poderão ser sanados pelo Erário.

Manifestação do Ministério Público Federal pelo deferimento do pedido de suspensão, fls. 169/191.

Decido

Dinheiro não dá em árvores. Por mais verdes que sejam, as folhas não se transmudam em Dólares. Nem nos Reais da nossa atual unidade monetária, que exibe uma mulher cega, ar desolado de quem ganhou e logo perdeu a última olimpíada.

Não é difícil fazer lei sob as melhores intenções. Nem vale lembrar o Getúlio, soberbo – “a lei, ora a lei…” Oportuno, porém, lembrar o Bismarck, pasmo – “Não me perguntem sobre como se fazem as leis, nem as salsichas”.

Ora, as leis terão que obedecer sempre à ordem constitucional, à lógica do Estado de Direito Democrático, o qual se funda em valores e em princípios, segundo a idéia de que a democracia há de buscar sempre o melhor para todos.

Assim, não pode haver, por exemplo, uma lei suprimindo o direito de propriedade. Nem uma lei em confronto, por exemplo, com o ato jurídico perfeito. Ou seja, com o que foi legalmente contratado.

Os transportes coletivos, rodoviários, ferroviários, aquaviários, marítimos, aéreos, se realizam por ações de empresas mediante contrato de concessão ou permissão do poder público. Essas concessões ou permissões têm prazo de validade, podendo ser canceladas, suspensas, renovadas ou não, tudo conforme os parâmetros de exigências reciprocamente pactuadas.

Constituição da República

Art. 21. Compete à União:

(…)

XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:

(…)

c) – a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária;

d) – os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território;

e) – os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros;

f) – os portos marítimos, fluviais e lacustres.

(…)

Por outro lado, é certo que a Constituição da República prevê a possibilidade de transporte gratuito nos coletivos urbanos dos maiores de sessenta e cinco anos. É bom anotar – coletivos urbanos. E é bom atentar que essa disposição, § 2º de um artigo, está vinculada a um comando, o do Art. 230, que diz:

Art. 230 – “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem estar e garantindo-lhes o direito à vida”.

Claro que amparar o idoso, inclusive garantindo-lhe gratuidade nos transportes coletivos urbanos, é dever do Estado. Mas também da família e da sociedade. Do Estado, pessoa jurídica, que autoriza, concede ou permite, mediante um contrato, a linha de transporte.

Assim, o contrato de autorização, concessão ou permissão de uma linha de ônibus, por exemplo, há que prever – e isso está previsto desde a promulgação da Carta de 1988 – as formas de ressarcimento pelo Estado das despesas da empresa para o cumprimento dessa ordem constitucional.

Nossas relações econômicas se regem pelas regras do sistema capitalista, da economia de mercado, não sendo lícito ao Estado, em nome de uma obrigação que é sua, confiscar vagas em ônibus ou qualquer outro meio de transporte, sem a correspondente contrapartida indenizatória.

Se isso não tem previsão contratual, não está em vigor, não foi pactuado entre a empresa e o Estado; ainda que essa ordem decorra de uma Lei, não está a empresa autorizada, concessionária ou permissionária, obrigada a transportar de graça o matusalém, por mais carcomido que pareça.

Um País com tantos problemas como os da sonegação fiscal, da corrupção com o dinheiro público, das evasões inconfessáveis de bilhões de dólares para os escaninhos ilícitos dos paraísos fiscais; um país precisado de tantos investimentos externos indispensáveis ao enfrentamento do desemprego e precisado de desenvolvimento econômico, não pode cochilar especialmente nesse tema de respeito aos contratos.

O que se trata aqui com essa lei generosa, misericordiosa, bem intencionada, em favor dos velhinhos humilhados porque não podem andar de ônibus, tem a ver com o respeito ou desrespeito aos contratos.

Diz a Carta Magna:

Art. 5º, XXXVI – “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

Ato jurídico perfeito aí é o contrato celebrado e em vigor entre as empresas de transportes e o poder público. Significa dizer que nem a lei pode alterar o que foi, antes, previamente contratado. O que se há de fazer, sim, será um aditivo ao contrato, uma maneira legal de se estabelecer, mediante nova negociação, a forma de ressarcimento às empresas, das despesas decorrentes do transporte gratuito assegurado pela lei.

Imaginar o contrário, afirmar a possibilidade de que toda lei pode vir em cima da iniciativa privada impondo uma ordem desse tipo, sem a correspondente contraprestação pecuniária, é desafiar o contrato, é ofender diretamente o mandamento maior da Constituição.

O Estado, afinal, se mantém em seus deveres para com a sociedade em função do que arrecada de impostos, taxas e contribuições e, especialmente, do equilíbrio com as suas despesas. Daí que todo gasto há que resultar de previsão orçamentária. Qualquer conta, alguém tem que pagar. E não dá para se remeter tudo e sempre para o contribuinte em geral.

Dito isto, em que pese aos argumentos trazidos sobre a questão central das ações em curso (Mandado de Segurança e Ação Cautelar), como a suspensão de liminar ou de segurança não possui natureza jurídica de recurso, não propiciando a devolução do conhecimento da matéria para eventual reforma, sua análise deve restringir-se à verificação de seus pressupostos, sem adentrar no efetivo exame do mérito da causa principal, cuja competência cabe tão-somente às instâncias ordinárias.

Daí não ser admitida a sua utilização como simples via de atalho para modificar decisão desfavorável ao ente público, como anotado no AGSS 1282/RJ, Rel. Ministro Nilson Naves, DJ 04/02/2004; AGP 1354/AL, Rel. Ministro Costa Leite, DJ 14/04/2003 e AGSS 1061/GO, Rel. Mininistro Nilson Naves, DJ 14/04/2003. E o sistema processual contempla e possibilita meios para combater o error in procedendo e o error in judicando – SS nº. 605/BA, nº. 626/PB, nº. 924/RJ, nº. 945/MG, nº. 1.132/DF, nº. 1.134/MS e a Pet. nº. 1.622/PR.

Nessa linha, as alegações de ordem jurídica apresentadas pela requerente só podem ser aqui tomadas como indicação da plausibilidade do direito sustentado, insuficiente, por si só, para viabilizar a concessão da contracautela, que também exige a inequívoca demonstração do risco de grave lesão a um dos bens públicos abrigados pela norma de regência – Lei nº. 4.348/64, art. 4º: ordem, saúde, segurança e economia públicas.

Neste caso, não verifico risco de lesão a qualquer dos valores tutelados na Lei nº 4.348/64, art. 4º, a autorizar a medida extrema. Debate-se em torno da aplicabilidade da Lei nº 10.741/03 (Estatuto do Idoso), art. 40, questionando-se a legalidade da instituição de vagas destinadas a idosos no transporte interestadual, sem indicação da fonte de custeio e de seus critérios, e omissão, nos Decretos nºs. 5.130/04 e 5.155/04, quanto à fonte de custeio e ao cadastro dos destinatários do benefício.

A meu sentir, considerando os elementos constantes dos autos, há o risco invertido de dano à ordem e economia públicas, com a possibilidade, aqui refletida, de quebra do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com o Poder Público, na medida em que estabelece o início de um serviço público de transporte, de natureza assistencial, sem instituir a fonte de custeio e sua forma de execução, para que possa produzir efeitos válidos, eis que não editada lei específica que regulamente o benefício e seu exercício na integralidade.

No particular, a decisão impugnada registrou, entre outros fundamentos, a complexidade da questão, fazendo imprescindível a expedição de lei específica sobre o tema, não mero Decreto do Poder Executivo, e inexistir previsão de fonte de custeio para cobrir o benefício concedido ao idoso, tornando, em tese, impossível à União ressarcir as empresas de transporte tais valores:

“… a Lei nº. 9.074/95, no seu art. 35, prevê que a lei própria de cada estipulação de benefício tarifário, caso sub judice, por exemplo, deve ter previsão no seu próprio texto para fixar ou a revisão tarifária ou a origem dos recursos que obviamente seriam repassados à concessionária. Não há, em princípio, admitir a alegação da ANTT de que tais regras seriam posteriormente fixadas, pois não há como admitir que a União venha a ressarcir o período que vai desde 1º de agosto de 2004 até a data da vigência da suposta lei, ou seja, retroativamente, repor às concessionárias a diferença” (fls. 031/032).

Impende notar que não se está discutindo a conquista pelos idosos dos benefícios conferidos pela Lei nº. 10.741/03, não demandando a aplicação do princípio da proporcionalidade, a falta de interesses em conflito.

Todavia, não existe a reclamada lei específica a que alude a Lei nº. 10.741/03, estabelecendo a fonte de custeio para os serviços de transportes convencionais, razão pela qual a decisão acatada detectou a dificuldade de reposição do equilíbrio financeiro dos contratos, não apresentados no Regulamento via Decretos e nas Resoluções, não se estabelecendo nessas regras administrativas, “cuja legalidade é duvidosa no dizer da própria Consultoria Jurídica do Ministério dos Transportes” (fl. 031), qual a forma segura de comprovação da renda máxima auferida pelo passageiro que pretenda usufruir a gratuidade, já que, ao aceitar a comprovação por meio do carnê de contribuição ao INSS, permite que qualquer autônomo que recolha sobre um ou dois salários mínimos, possa se beneficiar da gratuidade, independentemente de sua situação financeira, considerando que não existe obrigatoriedade de recolhimento de contribuição previdenciária acima do teto mínimo.

Assim, por entender não ter demonstrado potencial lesivo na  decisão judicial a um dos bens públicos tutelados na Lei nº. 4.348/64, art. 4º, indefiro o pedido de suspensão.