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A Mulher e a Sociedade

30 de abril de 2006

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Março de 2006. A ministra Ellen Gracie Northfleet é eleita Presidente do Supremo Tribunal Federal, um fato aparentemente dentro da praxe daquela Corte.

Para que possamos dimensioná-lo, porém,  temos que recuar no tempo.

Voltemos aos primórdios da civilização, onde, desde a Idade da Pedra, identificamos claramente a identidade dos sexos pela rígida definição dos papéis masculinos e femininos. Ao homem cabia a subsistência da família e, à mulher, os cuidados com a prole, atividades ligadas basicamente à maternidade, conceitos que ainda subsistem.

Uma das primeiras feministas, Christine de Sison, tenta afirmar, no final da Idade Média, que o sexo é culturalmente formado, não sendo exclusivamente um fator biológico. Podemos imaginar as reações violentas que se apresentaram contra essa tese.

No Século XVIII, surgiram vozes a sustentar que a masculinidade e a feminilidade seriam convenções sociais, que poderiam ser alteradas pela educação.

Durante o Século XIX, foram feitos ataques à autoridade patriarcal, através de médicos, filantropos e humanistas, tentando, com isso, fortalecer a posição da mulher.

No Brasil, ainda no final do século XIX, Myrtes Gomes de Campos, apesar de ter se formado em Direito, não conseguiu ingressar no Instituto dos Advogados Brasileiros, sob a alegação de que não bastava o diploma, pois a mulher casada não poderia advogar sem a licença do marido.

Em novembro de 1899, a Dra. Maria Coelho da Silva impetrou um habeas corpus em favor de uma paciente que sofria constrangimento ilegal. O Subprocurador-geral do Distrito Federal opinou em sentido contrário assim se manifestando:

“Dotando a mulher de qualidades quase divinas, que são para a humanidade como reflexos da bondade infinita, o destino providencial reservou-lhe uma missão augusta, suavizante e civilizadora que não pode ser transferida  do regaço sereno da família para os cimos alcantilados da vida pública, sem se perverter, em sua essência, em seus estímulos e em seus resultados.

Afinal, já são bastante os germes de dissolução introduzidos em nosso organismo social, e fortes demais os pampeiros da anarquia, que invadem todos os redutos da felicidade comum: não deixem os Tribunais que coopere na obra da desorganização geral esse novo elemento de desordem, com que a inexperiência feminina pretende impulsioná-la”.

Nessa época, em 1894, nascia em São Paulo Berta Maria Julia Lutz, figura relevante na luta pelos direitos da mulher. Formada na Sorbonne, em Paris, em Ciências Naturais, foi convidada para trabalhar no Museu Nacional, em 1919, fato de grande repercussão, por ser caminho praticamente vedado ao sexo feminino.

Em 1922, representou o Brasil na Assembléia Geral da Liga das Mulheres Eleitoras, nos Estados Unidos da América, tendo sido eleita Vice-Presidente da Sociedade Pan-Americana. Iniciou, então, o marco da sua trajetória, que foi a luta pelo direito de voto feminino, criando a Federação Brasileira para o Progresso Feminino.

Vitoriosa nessa campanha, com o advento do decreto-lei de Getúlio Vargas, de 1932, que reconheceu esse direito às mulheres, foi eleita para suplente do cargo de deputado federal, tendo assumido a titularidade em 1936. Batalhou, então, arduamente, por direitos trabalhistas em relação ao sexo feminino e ao menor, como a redução de jornada de trabalho ( que era de treze horas ), licença maternidade e igualdade salarial. Sua trajetória política se encerrou com o Estado Novo, que dissolveu os órgãos legislativos brasileiros, em 1937.

Na década dos anos sessenta, o movimento mundial toma maior impulso. Não por mera coincidência foi quando surgiu a pílula anticoncepcional, permitindo à mulher decidir quanto à conveniência ou não da gravidez, podendo gerir o fator que sempre foi o marco essencial do papel principal que a sociedade e a religião lhe reconheciam: a maternidade.

Na sociedade norte americana, talvez pelo puritanismo que até hoje impregna o american way of life, fruto da colonização inglesa iniciada pelos pilgrims, não se podia falar, na prática, em igualdade de direitos entre os sexos.   Foi nesse país que surgiu o movimento mais violento contra a discriminação da mulher, na voz de Betty Fridman, autora de “A Mística Feminina”, escrito em 1963,  uma das marcas do movimento feminista.

Na década de setenta, a defesa dessas idéias e ideais não foi abandonada. No Brasil, porém, a mobilização maior, principalmente da juventude, era em relação à repressão política. Após as perseguições de 1964, com a edição do Ato Institucional n.1, que levou muitas pessoas ao exílio, veio o famoso ano de 1968. Não apenas no Brasil, onde o Congresso tinha sido fechado e medidas duríssimas vieram através do Ato Institucional n.5. Em Paris, assistimos ao famoso movimento dos estudantes nesse mesmo ano, unindo ambos os sexos  na defesa do ideal de Liberdade e Democracia.

Mais de vinte anos depois, Betty Friedman volta às manchetes da imprensa, afirmando que “a mulher conquistou seu lugar na sociedade e deve, agora, unir-se aos homens contra a crise econômica que afeta a ambos”. Conclui, com a experiência que a idade lhe trouxe, que: “Para alcançar  a igualdade social e a segurança financeira para todos temos que nos mover em direção à aliança entre os sexos”, para que as mulheres possam batalhar por posições de igualdade com os homens, no trabalho e na sociedade, em geral.

A Constituição Federal de 1988, chamada por Ulisses Guimarães de Constituição Cidadã, por ter sido a primeira após o fim da ditadura que aqui se implantou por cerca de quinze anos, e sucessora da anterior, que foi uma Emenda Constitucional outorgada em 1969 pelos chefes militares, tentou preservar ao máximo os princípios democráticos, inserindo-os no texto constitucional, especialmente no tópico das garantias individuais.

Assim, dispôs no seu artigo 5, inciso I:

“Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.

Imaginou o constituinte que essa seria a solução para resolver, em definitivo, a isonomia de gênero, pois, tratando-se de institucionalização de direitos humanos, portanto fundamentais, é vedada a sua alteração pelo processo legislativo ordinário ( art.60 parágrafo 4o da Constituição federal).

A questão em tela pode ser eliminada simplesmente por um artigo inserido na Constituição?

É óbvio que não. A imposição normativa, porém, tende a alterar a cultura e os costumes no decorrer do tempo.

A maior disparidade ainda se encontra na área da remuneração. No serviço público, onde o ingresso se dá por concurso, a discriminação somente surge muito eventualmente em relação a chefias. No setor privado, porém, a mulher tem que se destacar sobremaneira, para que possa galgar o ápice da carreira. Pesquisa realizada pelo Grupo Catho, no período de 2004 a 2005, concluiu que, no Brasil, quinze por cento das mulheres ocupam a Vice-Presidência e dezesseis por cento a Presidência das empresas.

A mulher hoje tem plena consciência da importância do seu papel no desenvolvimento econômico do país. A desigualdade e a exclusão social, produzindo uma polarização crescente da riqueza entre as nações, acarretou um fenômeno de pauperização da classe média, que é exatamente onde a consciência do papel da mulher prepondera.

Não se fala mais em guerra entre os sexos, como no século passado. As mulheres avançam em áreas antes dominadas exclusivamente pelos homens.

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento ( PNUD ) criou dois índices para medir diferenças de gênero: o Índice de Desenvolvimento por Gênero ( escolarização e renda ) e o Índice de Poder por Gênero ( participação da mulher no mercado de trabalho e na política). Na primeira análise realizada, em 1997, a conclusão foi que a disparidade existia em todas as sociedades.

Na área jurídica esse movimento se torna evidente, diante do número elevado de mulheres aprovadas nos concursos públicos.

Na Justiça Federal, a primeira juíza federal foi a Dra Maria Rita Soares de Andrade, nomeada em 1967, quando essa justiça foi recriada, após a sua extinção no Estado Novo. A participação feminina foi se ampliando lentamente nos anos seguintes. Atualmente o percentual de juízas no segundo grau de jurisdição é de cerca de 24% e no primeiro grau de 33%.

Recentes pesquisas realizadas por diversas entidades, entre elas a Associação dos Magistrados Brasileiros, em 2005, visando traçar o perfil de seus componentes, com base em aspectos demográficos e sociológicos ( como gênero, região geográfica de origem, nível de escolaridade dos pais, posicionamento em relação aos problemas sociais e políticos ) têm trazido resultados surpreendentes, sinalizando os novos rumos que norteiam os juízes, especialmente os mais jovens. Uma das características que foi ressaltada é o aumento significativo do número de juízas federais e estaduais, que alcança, em média, o patamar de quase 40% do total dos magistrados brasileiros. Saliente-se que esses números se alteram freqüentemente, com a realização de concursos e a mudança na composição dos Tribunais,

No topo da pirâmide da carreira, entretanto, ainda é marcante a  maciça presença masculina. No Superior Tribunal de Justiça, somente em junho de 1999 ingressou a primeira ministra, Eliana Calmon, oriunda do Tribunal Regional Federal da 1a Região. No Supremo Tribunal Federal, a primeira ministra, Ellen Gracie Northfleet, tomou posse em 14 de dezembro de 2000. Ambas foram nomeadas pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso. Pioneiras, elas abriram caminho para que, posteriormente, outras viessem a integrar os Tribunais Superiores.

O Tribunal Penal Internacional, instalado há três anos, criado pelo Estatuto de Roma,( Rome Statute of International Criminal Court), aprovado em 17/07/1998, com natureza de tratado internacional, prevê, no artigo 8 letra “a” inciso III, “a representação justa de juízes do sexo feminino e do sexo masculino”, evidenciando que essa preocupação já atinge nível mundial.

Os avanços e as conquistas são enormes, mas ainda se enfrenta o preconceito, onde os homens  retomam a idéia de luta entre os sexos, quando querem desqualificar posições. Por vezes, ao contrário, utilizam argumentos que pretendem ser elogiosos, na tentativa de enaltecer a mulher profissional competente, sem perceber que, na verdade, o que as palavras evocam é exatamente aquele preconceito.

As mulheres devem refletir para não destruir árduas conquistas de nossas antepassadas. A luta pelas liberdades individuais não pode se pautar por versões estereotipadas, valorizando-se a liberdade de cada uma escolher o seu futuro, como profissional, mãe ou, até mesmo, dona de casa, bem como os caminhos que irá trilhar, sem culpas nem arrependimentos.

O preconceito ainda existe, mesmo que inconscientemente, mas bem menor do que antes, graças às lutas das diversas gerações.

Neste início do Século XXI a eleição de uma mulher, para ocupar a cúpula do Poder Judiciário, não deveria ser vista como uma excepcionalidade.