A nova lei dos motoristas profissionais

8 de agosto de 2012

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Entrou em vigor em junho último a Lei no 12.619, de 30 de abril de 2012,  que dispõe sobre o exercício da profissão de motorista e dá providências correlatas, especialmente no que concerne à jornada de trabalho e ao tempo de direção do motorista profissional.

Como toda lei nova, esta não escapará às interpretações divergentes, por vezes apressadas, até que, pouco a pouco, as normas nela contidas ganhem o significado definitivo que lhes der o tempo transcorrido para a doutrina e a jurisprudência pacificarem eventuais conflitos.

O presente estudo não tem, por isso, intenção de solver todas as dúvidas que a lei, certamente, provoca e, por algum tempo, ainda provocará. Pelo contrário, o objetivo é alçar ao debate e à reflexão dos leitores algumas questões que penso dificultarão a aplicação do novo regramento profissional, pelo menos no seu início.

A primeira delas diz respeito aos destinatários da profissionalização. A lei optou por defini-los valendo-se de dois critérios objetivos: a condição de empregado e a natureza da atividade econômica do empregador.

Segundo o parágrafo único do art. 1o da lei em comento, “integram a categoria profissional de que trata esta Lei os motoristas profissionais de veículos automotores cuja condução exija formação profissional e que exerçam a atividade mediante vínculo empregatício, nas seguintes atividades ou categorias econômicas: I – transporte rodoviário de passageiros; II – transporte rodoviário de cargas;”, tendo sido vetados os incisos III e IV que agregavam outras espécies de motoristas.

Como se observa, muito embora seu escopo seja a disciplina da profissão de motorista condutor de veículo destinado ao transporte rodoviário de passageiros e de cargas, a lei optou por identificar o motorista destinatário das normas tutelares e profissionalizantes não pelas características que revestem o trabalho, segundo o grau de capacidade exigido, o teor de penosidade, o nível de responsabilidade e outras marcas da função, mas pela subordinação do trabalho a uma empresa de transporte rodoviário de carga ou de transporte rodoviário de passageiros, remetendo o intérprete, forçosamente, ao objeto social do empregador para aplicação da nova lei do motorista profissional.

Com isso, ficaram ao desabrigo da lei e excluídos da categoria profissional dos motoristas profissionais de passageiros e de cargas, pelo veto presidencial, todos os demais motoristas que, conquanto desempenhem suas funções em igualdade ou similitude, como autônomos ou como empregados de empresas que não explorem aquelas atividades econômicas.

Tome-se, por exemplo, o motorista de empresa comercial ou industrial que transporta sua própria carga ou o motorista de empresa de turismo que faz com veículo próprio o transporte dos clientes. Onde estaria a distinção que justificaria a exclusão desses motoristas da categoria profissional abrangida pela nova lei?  Como sustentar juridicamente a discriminação tuitiva?

Eis, em minha opinião, o primeiro problema a ser enfrentado pela doutrina e jurisprudência.

Entre os direitos que a lei assegura aos motoristas profissionais, não se constitui em inovação, a irresponsabilidade por prejuízo patrimonial causado ao empregador, a quem cabe assumir os riscos do negócios, salvo quando decorrente de conduta desidiosa do motorista, desde que devidamente comprovada, no cumprimento de suas funções (art. 2o, III).

No inciso IV do art. 2o, a lei assegura ao motorista profissional receber proteção do Estado contra ações criminosas que lhes sejam dirigidas no efetivo exercício da profissão.

Expressaria o óbvio a referida norma não fossem algumas decisões da Justiça do Trabalho que, embora minoritárias, condenam os empregadores à indenização por dano pessoal causado ao motorista, por exemplo, em caso de assalto praticado no curso da condução do veículo, sob o equivocado argumento de se tratar de responsabilidade decorrente do risco da atividade, quando é sabido que a segurança pública é exclusiva atribuição do Estado (CF, art. 144).

Ainda na parte geral da lei (art. 2o, V), fica estabelecida a obrigatoriedade de controle pelo empregador, por qualquer dos meios legalmente permitidos ou outros idôneos, inclusive, eletrônicos instalados nos veículos, da jornada de trabalho e tempo de direção do motorista profissional.

Distingue-se, propositadamente, a jornada de trabalho do tempo de direção, embora este esteja inserido naquela, uma vez que a tutela em relação à duração do trabalho acentua-se quando o motorista está na efetiva direção do veículo. Aliás, essa lei introduziu, para tratamento específico, o tempo de direção, de espera (art. 235-C, § 8o)
e o de reserva (art. 235-D, § 6o).

Encerrando a parte geral, outra inovação: o benefício assegurado aos profissionais motoristas destinatários da lei de seguro obrigatório custeado pelo empregador, destinado à cobertura dos riscos pessoais inerentes às suas atividades, no valor mínimo correspondente a 10 (dez) vezes o piso salarial de sua categoria ou em valor superior fixado em convenção ou acordo coletivo de trabalho (parágrafo único, art. 2o).

Sobre o que sejam os riscos pessoais inerentes à atividade é que deverão surgir interpretações divergentes a respeito de seu alcance.

Certamente, não penso tenha referido seguro a mesma abrangência, em relação aos riscos cobertos, do correspondente ao acidente de trabalho, de maior extensão.

Sugere-se, assim, para evitar a incerteza a respeito dos riscos a serem cobertos por esse novo e específico seguro, que haja suficiente identificação dos limites da cobertura nas convenções e acordos coletivos de trabalho.

Outro aspecto a merecer expectativa de debate, ainda em decorrência do surgimento desse novo seguro obrigatório, é o de se considerar satisfeito, por sua estipulação e finalidade, o dever de indenizar do empregador pela bastante exploração de atividade que possa causar dano a outrem (Código Civil, art. 927, parágrafo único), na chamada responsabilidade objetiva ou independente de culpa.

A jurisprudência construída no sentido da referida responsabilidade objetiva, a meu juízo, afronta, inequi­vocamente, a Constituição da República, que, no inciso XXVIII, de seu art. 7o, atribui ao empregador, a par do custeio do seguro de acidente de trabalho, o dever de indenizar apenas quando este incorrer em dolo ou culpa para o evento danoso, impedindo, assim, pela clareza e fechamento da norma, a aplicação do Código Civil, especialmente quando este se refere a dano causado a outrem, que, seguramente, não é expressão compatível com a condição de empregado, parte da relação jurídica de emprego e cuja força de trabalho é elemento da empresa.

Apesar do equívoco, é de se crer que o seguro instituído pela nova lei irá, em última análise, ter o efeito de tarifar a indenização que seria devida pelo empregador, ainda que válida fosse a tese, não havendo mais lugar para outra indenização por responsabilidade por risco da atividade, que se constituiria em verdadeiro e inaceitável bis in idem. 
Matéria das mais controvertidas no cenário do Direito do Trabalho, em âmbito universal, amplamente discutida na Organização Internacional do Trabalho, é a que enfrenta a questão do uso de drogas e bebidas alcoólicas pelo empregado, dentro e fora do ambiente de trabalho.Já inserida entre os artigos que irão compor os preceitos especiais na nova Seção IV-A da Consolidação das Leis do Trabalho, apresenta-se o inciso VII do art. 235-B e seu parágrafo único, que trata do controle pelo empregador do uso de droga e de bebida alcoólica pelo motorista profissional.

Houve nítida evolução no tratamento jurídico dispensado ao tema, sendo que no nosso Direito do Trabalho, a possibilidade de o empregador dispensar o empregado por justa causa, por embriaguez habitual (CLT, art. 482, “f”), cedeu lugar ao reconhecimento de que, nesse caso, não é a punição, mas, o tratamento, com afastamento previdenciário, a conduta socialmente exigível para o alcoolismo.

No caso de uso de drogas, a evolução encontra abrigo no próprio Direito Penal, havendo tendência, segundo o que sugere a Comissão criada para elaborar o anteprojeto do novo Código Penal, a descriminalizar-se o porte de droga para consumo próprio.

No Direito do Trabalho, a discussão é travada sob as mesmas luzes que envolvem a do alcoolismo: punição ou tratamento?  Sua repercussão ganha força quando se trata de trabalho que exija pleno domínio de percepção e de reação psíquica do empregado aos atos e fatos que envolvem, rotineiramente, a função. Em outras palavras: saúde física e mental num grau maior de higidez.

O motorista profissional, no exercício de sua função, carrega a responsabilidade da segurança própria e de terceiros, seja passageiro, seja na rotina do trânsito urbano e nas estradas. Por essa razão, na ponderação dos interesses em jogo, prepondera a necessidade de se controlar o uso de bebidas alcoólicas e de drogas, como reconheceu a lei em comento.

Registre-se, porém, que a tendência ao tratamento e não à punição não foi afastada, já que o que se obriga é a submissão ao controle feito pelo empregador, ainda assim condicionado à plena e prévia ciência do empregado do programa respectivo, punindo-se a recusa, por indisciplina.

Em seguida, a nova lei passa a dispor, exaustivamente, sobre a duração do trabalho dos profissionais motoristas.

Por se tratar de profissional sujeito a situações de trabalho que guardam especificidades segundo a finalidade do transporte de pessoas e de coisas, a lei, no particular, procurou abrigar toda essa diversidade, especialmente, no tocante a pausas e intervalos para descanso e a possibilidade de seu fracionamento, tempo de direção, de espera e de reserva, regime de prorrogação e de compensação de jornada de trabalho e transporte de longa distância.

Ainda em busca da indispensável flexibilidade das normas tutelares em face das peculiaridades do trabalho desenvolvido, a lei traz importante contribuição para a evolução do Direito do Trabalho, ao prestigiar, à larga, os contratos voluntários normativos (convenções e acordos coletivos de trabalho), como fonte de direitos e obrigações provenientes da autonomia da vontade privada coletiva dos próprios atores sociais (empregados e empregadores), para estabelecerem as condições de trabalho que mais se ajustem às necessidades dos segmentos econômicos e dos trabalhadores envolvidos: transporte rodoviário de passageiros e transporte rodoviário de cargas.

Espera-se que essa flexibilização pela via dos contratos coletivos não encontre a resistência que, não raro, se apresenta nas iniciativas do Ministério Público do Trabalho e nas decisões da Justiça do Trabalho. A Constituição da República indicou o caminho com a livre organização sindical (art. 8o) e o direito de greve (art. 9o), como instrumentos indispensáveis ao reconhecimento da força obrigatória das convenções e acordos coletivos (art. 7o, XXVI), além de prever a possibilidade da aludida flexibilização pela negociação coletiva de alguma de suas normas que asseguram os direitos sociais dos trabalhadores, inclusive, as relacionadas com a comutatividade básica do contrato de trabalho, na equação trabalho e salário.

Nesse sentido, relevante a entrevista recentemente concedida pelo Ministro Presidente do Egrégio Tribunal Superior do Trabalho, João Oreste Dalazen,  à imprensa escrita, em favor de uma reforma trabalhista, com especial ênfase no estímulo aos contratos normativos.

A lei introduz, também, alteração ao Código de Trânsito Brasileiro. Nesse ponto, sua abrangência deixa os limites antes referidos para alcançar todos os condutores motoristas profissionais, em razão de ser diversa a finalidade social de suas normas, especialmente, no que concerne à segurança do trânsito.

Com efeito, as normas de trânsito, distintamente das normas trabalhistas, dirigem seus comandos, fundamentalmente, aos condutores dos veículos e não aos seus proprietários, estabelecendo para aqueles os deveres de sua observância e cumprimento, alcançando, assim, não só os motoristas profissionais de transporte rodoviário de passageiros e de cargas, mas todos os motoristas autônomos ou empregados de quaisquer tipos de transporte.

Essa é a síntese do que penso, num primeiro exame da nova lei, sejam seus principais objetivos.