A penhora de precatórios e a relativização do Art. 11 da lei de execuções fiscais

30 de setembro de 2010

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Durante anos o Superior Tribunal de Justiça orientou sobre o reconhecimento do precatório como bem penhorável, situado no inciso I do Art. 11 da Lei 6.830/80 (LEF), com  tese que foi iniciada pelo Em. Ex-Ministro do STJ José Delgado[1], que equiparava o precatório a dinheiro quando posto em penhora de executivo fiscal no qual figura como exequente a própria Fazenda Pública, orientação que foi seguida pela 1a Seção daquela Corte Superior[2].

O cerne desse posicionamento se deu arrimado no fato de que a gradação legal, estabelecida no art. 11, da Lei de Execuções Fiscais e art. 655 do Código de Processo Civil, tem caráter relativo, por força das circunstâncias e do interesse das partes em cada caso concreto.

O crédito de precatório quando posto em penhora de execução onde o exequente é o responsável pelo pagamento do precatório, deve equiparar-se ao dinheiro, que se encontra no inciso I do art. 11 da LEF, pois sua natureza é de ordem de pagamento em dinheiro.

Recentemente, todavia, o Superior Tribunal de Justiça vem disparando decisões em sentido contrário, julgando impertinente que seja apresentado como garantia em sede de executivo fiscal precatório devido pela própria Fazenda que está a exigir tributo[3].

Referidos julgados – não obstante atestarem ser o precatório bem penhorável- vêm se baseando pela licitude da recusa do credor, com amparo no art. 656 do Código de Processo Civil, que enfatiza que a parte pode requerer a substituição do bem nomeado se este não obedecer à ordem legal.

Faz-se mister consignar que em alguns desses recentes julgados, consta como fundamento o RESP 1.090.898-SP, que foi julgado como recurso repetitivo, nos moldes do art. 543-C do Estatuto Processual Civil.

Ocorre que tal julgado tratou especificamente de substituição de bem já penhorado em execução fiscal por crédito de precatório. No caso, foram penhoradas máquinas da empresa executada, que ofereceu em substituição de penhora precatório emitido contra o Estado de São Paulo.

Não é por menos que tal  julgado originou a Súmula 406 do Superior Tribunal de Justiça:  “A Fazenda Pública pode recusar a substituição do bem penhorado por precatório”.

Como visto, a Súmula acima transcrita não se aplica às nomeações à penhora efetivadas no lapso temporal permissivo do art. 8o da Lei de Execuções Fiscais, que assegura ao executado o direito de garantir à execução, mas aplica-se tão-somente aos casos de oferecimento de precatórios em substituição de bens já penhorados no bojo da execução.

Mas como alhures destacado, mesmo quando o executado oferece à penhora créditos consubstanciados em precatórios tirados contra a própria Fazenda exequente (dentro do prazo indicado pelo art. 8o da Lei de Execuções Fiscais), o Superior Tribunal vem acatando a recusa da Fazenda Pública pelo desrespeito à gradação posta no art. 11 da Lei de Execuções Fiscais, sob o fundamento de que os precatórios estariam posicionados no inciso VIII da predita ordem legal, enquadrados como “direitos e ações”.

Estando enquadrados como direitos e ações, podem ser recusados pela Fazenda Pública, com base no art. 656 do Código de Processo Civil. Esse é o atual posicionamento do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria.

Não obstante a posição adotada pelo Superior Tribunal, demonstrar-se-á que essa nova orientação merece reflexão.

O precatório é ato pelo qual o juiz requisita ao presidente do Tribunal competente  ordem de pagamento à Fazenda Pública, para efetuá-lo no processo executivo em que lhe seja movido.

Isto depois do processo de conhecimento e não raras vezes o de execução já ter passado pelo crivo de todas as instâncias do Poder Judiciário, sendo, portanto, atestada a certeza e a liquidez do precatório, que é procedimento administrativo, ordem de pagamento em dinheiro.

Vale consignar que esses precatórios postos como penhora são devidamente orçados e não pagos pelo ente devedor. Ou seja, o ente devedor do precatório, situado no polo ativo do executivo fiscal, está em mora com o próprio executado que figura no polo passivo da execução.

A gradação legal prevista no artigo 11 da Lei de Execuções Fiscais não pode ser vista como regra fechada. Cabe ao julgador equilibrar e adaptar as circunstâncias, a subsunção do fato concreto à norma, observando sempre a regra contida no artigo 620 do CPC, segundo o qual a execução deve prosseguir da forma menos onerosa possível ao devedor.  Não há porque se criar ainda mais um ônus ao devedor, ou seja, possuindo este crédito líquido e certo contra o Estado, não poder nomear a penhora um tal bem, ainda mais quando o bem de que se fala, deriva da insistência do próprio Estado em não cumprir os seus compromissos[4].

Por certo não há situação que mais justifique a relativização da ordem posta no art. 11 da LEF do que a nomeação à penhora de um crédito cujo responsável pelo pagamento é o próprio exequente.

A recente edição da Súmula 417 do STJ corrobora a tese da relativização da ordem do art. 11 da LEF:

Na execução civil, a penhora de dinheiro na ordem de nomeação de bens não tem caráter absoluto.

(Súmula 417, CORTE ESPECIAL, julgado em 3/3/2010, DJe 11/3/2010)

Não obstante tal súmula fazer menção à execução civil, ela se aplica às execuções fiscais, tendo em vista que dos recursos especiais que originaram a verbete, grande parte trata justamente da penhora de precatório em sede de execução fiscal. Atenta-se aos Recursos Especiais de nos: 911.303, 325.868, 746.184, 399.557 e 447.126.

Se o Superior Tribunal de Justiça reconhece que com relação ao dinheiro, que encabeça o rol dos bens penhoráveis (art. 11 da LEF) a ordem de nomeação não é absoluta, não deve ser diferente na situação em que o crédito posto em penhora tem como devedor o próprio exequente.

O que deve ser examinado, com visão panorâmica, são as peculiaridades de cada caso concreto, avaliando-se a possibilidade da relativização. Com efeito, o comando, o poder normativo, não pode  ater-se à sua literalidade expressa.

Nessa linha de raciocínio, se a ordem não é absoluta na circunstância em que o crédito posto à penhora é devido pelo próprio exequente, não há desrespeito para com à ordem legal do art. 11 da LEF, e em consequência, não se pode aceitar a recusa da Fazenda Pública com base no art. 656 do Código de Processo Civil.

De fato, o precatório vem sendo posicionado pelo Superior Tribunal de Justiça, no inciso VIII, do art. 11 da Lei de Execuções Fiscais, como “direitos e ações”.

Com a devida vênia dos que pensam em sentido diverso, não se pode situar — nessas circunstâncias – uma ordem de pagamento em dinheiro, oriunda de uma condenação transitada em julgado, como direitos e ações. Somente se aceitaria tal denominação se o precatório fosse nomeado à penhora em execução civil, com particulares em ambos os polos da ação,  mas não em execução fiscal na qual o exequente se confunde com o devedor do próprio precatório posto à penhora.

A certeza e a liquidez dos precatórios foram convalidadas com a  novel Emenda Constitucional no 62, a qual em seu art. 2o acrescentou ao ADCT o art. 97,  que instituiu o regime especial de pagamentos, com depósitos de percentuais da receita corrente líquida (RCL) dos entes públicos devedores, e em caso de inadimplemento, a União Federal reterá os repasses relativos ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal e ao Fundo de Participação dos Municípios.

Mas mesmo que prevalecesse o entendimento de que o precatório se enquadra como “direitos e ações” quando  posto em penhora de executivos fiscais, que o Poder Judiciário faça valer esse direito. Nesse momento  percebe-se que, de fato, o que se tem é uma decisão judicial que foi desdenhada pelo Poder Executivo, e a posteriori  retornou ao Poder Judiciário, clamando por efetividade.

O direito não pode ser tratado como uma realidade sem limites, absoluta, ele deve ter seus limites e também deve avistar para algo fora dele, para sua  própria e correspondente realidade social.

Não é à toa que a Emenda Constitucional no 30 de 2000 e a Emenda Constitucional no 62 de 2009 permitiram expressamente a cessão dos créditos consubstanciados em precatórios judiciais.

O legislador certamente ali colocou a possibilidade de cessão por cautela, justamente para proteger os credores de um calote estatal. Previu inclusive, em ambas as Emendas suso citadas,  a possibilidade de utilização dos precatórios (caso inadimplidos) para liquidação de tributos junto à entidade devedora, o que nada mais é do que uma sanção caso o devedor público não honre seus débitos.

Dessarte, a exegese normativa que se extrai da Carta Federal ao expressamente permitir a cessão dos precatórios, é que caso o credor lesado não tenha tributos para compensar, terá a opção de ceder seu crédito, para dar efetividade ao seu direito. É uma faculdade que tem o credor.

Trata-se de um ciclo posto pela Constituição Federal.

Esse ciclo (inadimplemento-cessão-penhora) foi deflagrado exclusivamente pelos próprios entes públicos que não honraram seus débitos. E segundo o Supremo Tribunal Federal o não pagamento dos precatórios, a inadimplência sistemática das Fazendas Públicas, cuja evocação é a única coisa concebível como escusa desse excesso do constituinte derivado, era e é fruto não de dificuldades financeiras súbitas e imprevisíveis, senão do permanente descaso administrativo e da rotineira prevalência de outros interesses sobre o dever de cumprir as decisões judiciais e a Constituição[5].

Essa é a razão de ser do instituto da cessão de crédito na Constituição Federal: uma sanção ao inadimplemento dos entes públicos para com os precatórios.

O Poder Judiciário deve dar efetividade à essa questão, pois na lição de RUI BARBOSA[6],  “em uma constituição não existem cláusulas com o sentido de meros conselhos, avisos e ilações, todas têm a força imperativa de regras ditadas pela soberania nacional ou popular aos seus órgãos”.

Noutro vértice, poder-se-ia ainda seguir-se a linha de que o precatório seja equiparado a título da dívida pública, inciso II da LEF.

Os títulos da dívida pública, segundo a melhor doutrina, originam-se de empréstimos contraídos pelo Estado, ou, na expressão de Veiga Filho, o Estado tem o poder de dispor do capital alheio, por meio de empréstimo, comprometendo-se a ressarcir seus  credores.

A equiparação aqui, do precatório a título da dívida pública, se daria pelo fato de que o Estado, ao orçar para pagamento os precatórios e não liquidá-los no prazo de Lei, está na verdade fazendo um empréstimo compulsório, na medida em que ao não o adimplir está se utilizando do capital que serviria como satisfação do credor, ao arrepio da Lei.

Por tal razão,  o precatório – quando se trata de penhora em execução fiscal — independente do seu enquadramento, seja  no inciso I (dinheiro), II (título da dívida pública) ou VIII (direitos e ações)  não pode ser recusado pela Fazenda Pública, pois se trata de um crédito do qual ela própria é devedora, e a relativização da ordem do art. 11 da Lei 6.830/80 autoriza, sobremaneira, o deferimento da constrição.

De qualquer sorte, por fim, deve ser levantada a bandeira do Estado Democrático de Direito — sempre o Estado Democrático de Direito –, uma vez que o Estado com o não pagamento de seus precatórios e com a recusa em aceitá-los como mera garantia de seus executivos fiscais, garantia esta marcadamente instrumental, mais de cunho cautelar do que satisfativo, não medirá mais a consequência de seus atos. Poderá cobrar tributos  ao arrepio da Lei, matar  cidadão de bem, violar sua imagem e sua honra, desapropriar sem justa e prévia indenização. Nada disso interessa ao Estado, pois os lesados irão entrar com ação judicial que tramitará anos a fio, e quando do transito em julgado, com decisão favorável, “receberão” seu crédito através do precatório, que na data de seu vencimento, simplesmente não é pago pelo Estado. E não adiantará aos credores buscar a proteção que o legislador constitucional previu, pois o Poder Judiciário não lhes dará guarida.

Seria, talvez, a falência do sistema.

Mas o direito, em sua plena realidade, não é considerado como algo feito e arrematado, como é formalmente apreciado, separado de suas raízes no mundo, mas exatamente como um processo, com uma realidade em intenso movimento dialético.

O Poder Judiciário Brasileiro, que tem como missão justamente fortalecer o Estado Democrático e fomentar a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, por meio de uma efetiva prestação jurisdicional, certamente está de olhos bem abertos, pois não há democracia que possa sobreviver sem a confiança do cidadão no Estado, sobretudo no Estado-juiz.


[1] AGRESP 399557/PR, Relator Ministro José Delgado, PRIMEIRA TURMA

[2] EAg 746.184/SP, Rel. Ministro  HUMBERTO MARTINS, PRIMEIRA SEÇÃO

[3] REsp 1146057/RS, Rel. Ministra  ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA

[4] Agravo de Instrumento Nº 70033757345, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Roberto Lofego Canibal, Julgado em 10/3/2010

[5] ADIN 2362 e 2356

[6] apud Raul Machado Horta, “Estrutura, Natureza e Expansividade das Normas Constitucionais”, Revista Trimestral de Direito Público, 4/1993, Ed. RT, pág. 41).