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A prisão em Flagrante e a inviolabilidade do domicílio

30 de abril de 2012

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A principal característica dos direitos fundamentais de primeira geração ou, como preferem alguns, de primeira dimensão, para não se causar a impressão de que eles se substituem no tempo, quando, em verdade, se acumulam, é a limitação à atuação estatal.

Exige-se do Estado uma posição passiva de respeito à liberdade dos indivíduos, o que, na clássica divisão de Georg Jellinek denominou-se de status negativo.

Há autores que preferem chamá-los de direito de defesa[1] ou de direito de resistência[2], justamente para evidenciar o seu caráter protetivo em relação ao Estado e seus tentáculos.

Em geral, essa omissão do Estado prestigia as chamadas liberdades públicas, que envolvem a liberdade de expressão, a liberdade de reunião, a liberdade religiosa, a liberdade de informação, e outras tantas.
Mas ela não se limita a esse fim.
Dentro desse amplo conceito de liberdade se visa preservar também o que os americanos chamam genericamente de right to privacy, que no ordenamento brasileiro abrange, segundo posição de André Ramos Tavares, o direito à intimidade, à vida privada, à honra, à imagem, à inviolabilidade do domicílio, ao sigilo das comunicações e ao segredo, dentre outros.[3]

A fim de assegurar essa esfera de liberdade e de privacidade lato sensu dos indivíduos, após longos anos de luta contra abusos estatais, sobretudo no período do absolutismo, é que a doutrina pátria costuma sustentar que é critério de interpretação a atribuição da máxima eficácia possível aos direitos fundamentais.

Em outras palavras, na interpretação de um direito fundamental deve-se fazê-lo com a intenção de conceder-lhe o maior âmbito possível de geração de efeitos jurídicos, e não o contrário.

Na seara dos direitos fundamentais de primeira dimensão, esse princípio interpretativo se expressa pelo brocardo in dubio pro libertate. Destarte, havendo dúvida quanto à correta interpretação que se deve dar ao direito fundamental de primeira dimensão, que se faça em favor do seu alargamento, em favor do indivíduo, e não da sua restrição, em favor do Estado.

Ocorre que chama atenção, há algum tempo, a quantidade de prisões em flagrante que ocorrem no interior de domicílios, sob justificativa de que o crime praticado pelo meliante é permanente, sobretudo quando se trata de tráfico de entorpecentes.

Existe, de fato, crime dessa natureza, pois com relação a isso não se discute. Nesse sentido, o artigo 303 do Código de Processo Penal é claro e a doutrina penal é pacífica.

Contudo, essa justificativa é usualmente utilizada de forma indevida, só se compatibilizando com uma interpretação restritiva ao direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, o que é inaceitável.
Senão, veja-se:
O direito à inviolabilidade do domicílio, previsto no artigo 5o, inciso XI, da Constituição Federal de 1988 contém o seguinte texto: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

Quanto ao objeto de proteção desse artigo, em atenção àqueles critérios de interpretação e considerando que esse direito é uma extensão do direito à privacidade, o STF entendeu que ele abrange “qualquer compartimento habitado, qualquer aposento ocupado de habitação coletiva e qualquer compartimento privado onde alguém exerce profissão ou atividade”.[4]

Qualquer pessoa que esteja em um desses locais, portanto, está protegida pela norma constitucional.

O que interessa mais de perto, entretanto, são as exceções à inviolabilidade, sobretudo aquela concernente ao flagrante.

Como se verificou, cinco são as exceções: consentimento do titular do direito, cumprimento de ordem judicial, prestação de socorro, desastre ou flagrante delito.

Deixando de lado a exceção relativa ao ingresso com consentimento de quem de direito, que é uma situação peculiar, indaga-se: basta a existência de uma dessas quatro circunstâncias para que uma pessoa possa ingressar em domicílio alheio ou, mais do que isso, ela precisa estar ciente da existência dessa circunstância para que esse ingresso esteja em consonância com a ordem constitucional vigente?

A princípio, a resposta é clara, fazendo até parecer que a pergunta é vazia de finalidade.

É evidente que a pessoa que ingressa em domicílio alheio, em caso de desastre ou para prestar socorro, tinha ciência da ocorrência de uma dessas situações fáticas antes de ingressar no domicílio. Ela o fez, justamente, em razão da ocorrência do desastre ou da necessidade de prestar socorro ao titular do direito protegido constitucionalmente.

Quanto à exceção constitucional relativa ao cumprimento de ordem judicial, a conclusão não é diferente.

O agente do Estado ou quem esteja a serviço do Estado, sem dúvida, tem ciência da ordem judicial previamente ao ingresso em domicílio alheio.

Nesse diapasão, poder-se-ia dizer com tranquilidade que o flagrante só justifica com o ingresso em domicílio alheio, quando a pessoa que pretende efetuar a prisão, antes de ingressar no domicílio do criminoso, tem ciência de que ele pratica o crime naquele momento e naquele local.

Na consciência do agente, que está prestes a efetuar a prisão em flagrante, portanto, deve existir o seguinte pensamento: “flagro-o cometendo um crime, logo ingresso no seu domicílio para prendê-lo”.

Essa é a interpretação que se extrai do contexto do artigo em comento, sendo também a interpretação teleológica que parece deva prevalecer.

A própria origem histórica do termo flagrante passa essa ideia.

Segundo se extrai da doutrina, ela deriva do latim flagrans, flagrantis, que, por sua vez, decorrem do verbo flagrare, que significa queimar, arder, crepitar. Em suma, é aquilo que está em chamas, daí dizer que se surpreende alguém em flagrante delito, ou seja, enquanto ele é cometido, enquanto “ainda está ardendo”.[5]

Quando se trata de crime permanente, no entanto, não é raro observar-se uma interpretação diversa dessa.

Segundo a doutrina, crime permanente é aquele cuja consumação se protrai no tempo. Diferentemente dos outros crimes, cuja consumação se dá num determinado momento e depois deixa de existir, tal como no furto, que se consuma com a obtenção da posse mansa e pacífica do bem alheio ou do homicídio, em que a morte da vítima corresponde à consumação, no crime permanente a consumação se inicia, mas não termina imediatamente.

No tráfico de entorpecentes, essa permanência se observa em diversas condutas, dentre aquelas previstas no artigo 33 da Lei Federal no 11.343/2006, tais como: preparar, produzir, expor à venda e transportar. Mas as condutas que mais comumente acarretam prisões em flagrante irregulares consistem em ter em depósito e trazer consigo.

Isso ocorre porque essas duas condutas se caracterizam por não permitirem a imediata visualização do entorpecente, diferentemente do que ocorre com a entrega a consumo ou o fornecimento.

Em geral, nessas duas figuras típicas a droga se encontra escondida, camuflada, seja sob as vestes do criminoso, no caso dele estar trazendo-a consigo, ou dentro de algum cômodo de um imóvel, o qual também pode ser o domicílio dele, no caso dele mantê-la em depósito.

Desse modo, dificulta-se a prisão em flagrante, já que, a rigor, não há como se saber que a pessoa traz consigo ou tem em depósito entorpecente sem uma prévia revista policial.

Pois bem, é aí que reside o problema.

Exemplifique-se com fatos que ocorrem diuturnamente.

A polícia militar recebe “denúncia anônima” de que um sujeito com certas características trafica entorpecente num determinado local. Chegando a esse local, os policiais se deparam com esse sujeito, cujas características coincidem com aquelas constantes da referida “denúncia anônima”. Por alguma razão qualquer, até mesmo por estar trazendo drogas consigo ou por ter drogas em depósito dentro do imóvel, o sujeito ingressa em seu domicílio correndo.

Os policiais, considerando essa atitude do sujeito suspeita, correm atrás e ingressam no domicílio dele, ocasião em que acabam flagrando-o com entorpecentes.

Trata-se de prisão em flagrante correta ou não?

Se partir-se do pressuposto de que o crime permanente permite a prisão em flagrante a qualquer momento, a resposta seria positiva.

A interpretação constitucional que se deve conferir ao artigo 5o, inciso XI, da Constituição Federal, entretanto, deixa evidente a inconstitucionalidade do flagrante, que inarredavelmente ensejará o relaxamento da prisão.

Com efeito, o ingresso dos policiais no domicílio desse sujeito não foi precedido pela flagrante de qualquer crime.

Eles entraram em domicílio alheio sem que houvesse autorização de quem de direito, nem desastre, nem para prestar socorro, nem em cumprimento a ordem judicial, tampouco por ter havido flagrante.

No momento em que violaram o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, não havia nenhuma dessas exceções constitucionalmente previstas na consciência deles.

Justamente por isso que se pergunta, em momento anterior: bastava a existência da exceção constitucional ou se fazia necessária a ciência por parte do agente do Estado de que essa exceção constitucional existia?

Inverteu-se a regra anteriormente referida: flagro-o cometendo um crime, logo ingresso no domicílio dele para prendê-lo em flagrante.

Na espécie, o que os policiais tinham em mente quando violaram o direito em tela era o seguinte: ingresso no domicílio dele, logo flagro-o e prendo-o.

Não se tem dúvida de que se trata de uma singeleza, de um detalhe, mas que faz toda a diferença, porque reduz sensivelmente a eficácia jurídica desse fundamental direito.

Mas qual seria a atitude correta por parte dos policiais numa situação como essa?

Ora, a própria Constituição Federal de 1988 dá a resposta: ordem judicial.

Claro, porque somente o juiz, ponderando os valores constitucionais envolvidos, pode dizer se é o caso de limitar certo direito em favor de outro, realizando a devida ponderação, com fulcro em investigações realizadas pela polícia judiciária.

É o mesmo que ocorre quando se recorre ao Judiciário para se obter a interceptação telefônica das conversas de um suspeito ou a obtenção de dados bancários e fiscais de outro.

Além disso, essa posição evita problema prático, que se não é comum, também não é raro: o flagrante forjado.

Sim, porque é da natureza humana a tendência de realçar as virtudes e esconder os defeitos, sobretudo quando um desses defeitos consistiu em um erro na atuação profissional que pode redundar em acusação criminal por abuso de poder e por outros tantos crimes, e, na esfera administrativa, na perda do cargo.

Exatamente nessa linha manifesta-se Tourinho Filho:

Infelizmente já se tornou lugar-comum o procedimento de certos policiais que colocam substância entorpecente no bolso do cidadão ou em seu veículo, ou, no caso de busca domiciliar, para que esta não resulte infrutífera, apreendem, em qualquer dos cômodos, certa quantidade de maconha ou cocaína, por eles ali colocada, e dão voz de prisão ao infeliz…. É o flagrante forjado. Daí porque devem os policiais, nesses casos, antes da busca, seja pessoal, seja domiciliar, convidar civis para assistirem à diligência.[6]

Todos têm que se sustentar e à sua família. Essa pressão é mais do que suficiente para que mesmo um bom policial, v.g., sucumba e acabe por forjar flagrante para preservar a sua liberdade e o seu cargo.

Dessa maneira, não se pode esperar que o agente do Estado que ingressa em domicílio alheio por conta de mera suspeita, não seguida da apreensão de drogas e da configuração do crime de tráfico de entorpecentes, arque com essas consequências sem titubear.

Não se pode perder de vista, ainda, que essa posição assegura tanto mais a igualdade fática, uma vez que a experiência mostra que é muito mais fácil que o abuso policial ocorra em periferias e locais de baixa renda e instrução.

Sem dúvida que, para os defensores da segurança pública a todo custo, que justificam os meios pelos fins, essa posição não agrada, mas é o preço que se paga para se viver em um Estado Democrático de Direito, não em um Estado policial.

Verifica-se que, interpretando-se o artigo 5o, inciso XI, da Constituição Federal, de acordo com os critérios sistemático, teleológico e histórico, somente tem cabimento falar-se em prisão em flagrante, quando, efetivamente, se verifica presencialmente a prática de delito.

Dessa forma, em se tratando de crime permanente, nada impede que seja feita a prisão em flagrante, no interior do domicílio do criminoso, desde que o agente do Estado, ou, se for o caso, qualquer do povo, consiga realizar essa verificação de forma clara.

Afastada a possibilidade, portanto, de se ingressar em domicílio alheio apenas com base em suspeita, ainda que essa suspeita seja fundada, eis que essa análise quem deve fazer é o juiz, e apenas ele, como se pode verificar do artigo 240, § 1o, do Código de Processo Penal.
Desrespeitada essa regra, mesmo que encontrada a prova da prática do delito, o flagrante deve ser relaxado por ser inconstitucional.

Com isso, além de se aplicar a norma constitucional da forma que se exige em um Estado Democrático de Direito, evita-se, como consequência, a realização de flagrantes forjados.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _______________________________

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: RT, 2009. 56p
TAVARES, André. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 675-676pp
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS-MV 23.595, DJ de 1o-2-2000, Rel. Min. Celso de Mello
FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. 423p
FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. 467p
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: RT, 2009.
FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.



[1] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 178p.

[2] DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: RT, 2009. 56p

[3] TAVARES, André. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 675-676pp

 

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS-MV 23.595, DJ de 1o-2-2000, Rel. Min. Celso de Mello

 

[5] FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. 423p

[6] FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. 467p