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A recuperação judicial e o desafio de sua aplicação efetiva

31 de março de 2010

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“Todos os erros humanos são frutos da impaciência,
inter­rupção prematura de um processo ordenado, obstáculo
artificial levantado ao redor de uma realidade artificial.”
Franz Kafka

A crise financeira que abalou os sistemas organizacionais das sociedades empresárias teve sua amenização declarada nos últimos dias. No Brasil, dados da Serasa Experian revelam que desde a entrada em vigor da nova Lei de Falências em 2005, o ano de 2009 registrou o menor número de falências, decretadas no País. Contradição aos fatos ou sobrevivência diante de uma crise que tomou proporções devastadoras?

A bem da verdade é que se trata da manifestação de otimismo e esperança com relação aos novos instrumentos contemplados na Lei 11.101/05 (LFRE), tais como a recuperação judicial e extrajudicial. Os números divulgados pelo Serasa Experian revelam que a quantidade de pedidos de recuperação mais que dobraram no ano passado em relação aos de 2008[1]. Situação que tende a crescer no ano de 2010, uma vez que muitas sociedades empresárias passarão por mudanças necessárias, principalmente de âmbito organizacional. É de se frisar, no entanto, que tais indícios não significam ainda a eficácia da utilização dos novos institutos contemplados pela LFRE, o que somente ocorrerá a partir da análise do ano corrente, quando de fato começa o período de recuperação de muitas delas; ou seja, o cumprimento das obrigações assumidas no Plano de Recuperação Judicial (PRJ).

Para que o cenário continue positivo, as sociedades empresárias precisam encontrar a atual legislação como um instrumento hábil de preservação das suas fontes produtivas e que ofereça, ao mesmo tempo, a segurança necessária aos credores para apostarem na sobrevivência do devedor em recuperação. Situação indispensável para que o processo e o PRJ contemplem a informação e a transparência como princípios norteadores de qualquer negociação, transação, e operações para diminuição do passivo.

Como disposto no art. 47 da LFRE[2], a Recuperação Judicial destina-se exclusivamente às sociedades empresárias (e também ao empresário individual) em situação de crise econômico-financeira, mas que apresentam ao menos algum indício de possibilidade de superação desse estado.[3] Assim, o instituto da recuperação está indissociavelmente ligado a um estado temporário da sociedade empresária, que terá, por obrigação da própria concepção da lei, de ser capaz de superar a crise com auxílio dos mecanismos e órgãos de administração dirigentes do processo concursal. Por ser esse, na exigência legal, um estado temporário, eis que é chegada a hora de se verificar se os devedores que requereram sua recuperação judicial em 2009, sob a devastadora crise econômica mundial, terão capacidade de superar as dificuldades motivadoras do pedido recuperatório.

Aqui não há de se falar em uma regra comum como sendo a necessária ou então em “fórmula mágica”. A LFRE consagrou um rol meramente exemplificativo no qual o devedor em crise pode se valer (vide art. 50 da Lei). Mesmo assim, como garantir a segurança para esses empresários que buscam no Judiciário a preservação de suas atividades? A esta indagação a LFRE responde disciplinando os denominados órgãos de administração, tais como, o Administrador Judicial, o Comitê de Credores e a Assembleia Geral de Credores. A doutrina os divide sob diversos aspectos, como de funções deliberativas e/ou fiscalizatórias, de acordo com suas atribuições durante o processo. Representam, na verdade, órgãos auxiliares à prestação jurisdicional efetiva e à própria sociedade empresária. Trata-se de uma “coletividade”, um verdadeiro “concurso” de esforços dirigidos para a superação do estado de crise. Mas, ao lado destes órgãos decorrentes de previsão legal, existem aqueles comuns ao processo, que nesta seara devem ter uma atuação especial, tais como o Ministério Público e o Magistrado. Sem sombra de dúvidas, ambos são partes com funções importantíssimas no processo, mas que devem agir em consonância com os demais órgãos, para evitar atritos desnecessários que tornem morosa a prestação jurisdicional.

Em relação ao membro do Ministério Público, não se pode conceber um conceito simplista e vago de que esse seria como um fiscal da lei. Até mesmo por não representar tão somente essa função dentro da recuperação judicial. O veto constante no art. 4o da LFRE revela uma tendência já presente no Direito Comparado[4] e também corroborado pelo ilustre jurista Trajano de Miranda Valverde de que a figura do parquet age como intermediário entre o organismo público, credores e o próprio processo, não se mostrando cabível e representando até mesmo um entrave na superação do estado de crise a sua demasiada e desproporcional interferência nas relações e negociações essencialmente privadas, devendo ser suas intervenções devidamente fundamentadas a fim de que se assegure obediência à ordem pública e a efetividade do instituto da recuperação.

Já no que tange à figura do magistrado, esse deve estar atento, uma vez que ao contrário de um processo judicial comum, não há de se falar numa relação processual bilateral, mas sim plurilateral, em que todos os envolvidos, devedor e credores, possam caminhar alinhados aos princípios da ética e da moral. Assim, mais do que qualquer procedimento, as decisões judiciais deverão ser incontestavelmente justificadas e motivadas, ouvindo-se obrigatoriamente o Administrador Judicial e o Comitê de Credores, de modo a respaldar o comando do processo aliado aos interesses de todos os envolvidos. Esse conjunto de órgãos necessários à condução do processo é denominado de Órgãos de Administração na Recuperação Judicial[5]. Eles devem ser vistos como facilitadores e, na sua coletividade, como um verdadeiro organismo vivo capaz de fazer frente à consagrada teoria da empresa no nosso ordenamento jurídico.

A preocupação reside no fato de que será preciso uma conscientização e, sobretudo, respeito à boa-fé objetiva. Aqueles que demonstram ainda pessimismo frente à nova lei devem ser questionados se estão cegos com a memória da experiência forense de grandes fraudes, que, infelizmente, assolam nossos tribunais. Eis o grande desafio: a recuperação só será efetiva se conseguirmos superar a insuportável mancha negra de pensamentos e atuações fraudulentas em processos concursais. Nervos de aço serão necessários…


[2] Art. 47 – A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

[3] Nos dizeres de Manoel Justino Bezerra Filho “tal tentativa de recuperação prende-se ao valor social da empresa em funcionamento, que deve ser preservado não só pelo incremento da produção como principalmente pela manutenção do emprego, elemento de paz social” (Lei de Recuperação de Empresas e Falências Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais. 5. Ed. p. 142)

[4] Sobre a argumentação no Direito Comparado em relação à atuação do Ministério Público, remetemos o leitor ao posicionamento do jurista português Henrique Vaz Duarte, em sua obra “Questões sobre Recuperação de Empresas”. Coimbra: Almeida.

[5] Com intuito de aprofundamento específico neste tema, foi elaborado o livro: “Os órgãos de Administração na Recuperação Judicial”, recém-lançado pela Editora Cartolina. . O trabalho é fruto de pesquisas acadêmicas buscando trazer esclarecimentos aos profissionais e ampliar a perspectiva da efetividade da Lei 11.101/05. O trabalho aborda de forma isolada a atuação específica de cada órgão. Para melhor compreensão do tema, a primeira parte volta-se para a importância, dentro do ordenamento jurídico vigente, da instauração e da preocupação de se zelar pela permanência das atividades empresárias, destacando-se os meios legais recuperatórios e fazendo uma comparação dos antigos institutos, como a concordata, até a atual previsão da Recuperação Judicial. Em seguida, passa-se à análise geral do procedimento da Recuperação Judicial conforme estabelecido na Lei 11.101/05, enfatizando seus principais pontos, que serão mais adiante analisados dentro das funções especificas de cada órgão. Na terceira parte é estudado separadamente cada órgão de administração previsto na lei, destacando-se suas funções, seus deveres, suas atribuições e outros temas relacionados, nos quais têm se debruçado distintos pensamentos doutrinários e interpretações jurisprudenciais.