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A reforma da saúde nos EUA: os fundamentos da decisão da Suprema Corte

17 de agosto de 2015

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5A Suprema Corte dos Estados Unidos da América (EUA) tem chamado a atenção de todo o mundo para importantes decisões que avançam em matéria de igualdade e garantia de direitos sociais. No caso King v. Burwell, por seis votos a três, a Corte superou as últimas controvérsias jurídicas sobre o plano de reforma da saúde proposto pelo Presidente Barack Obama. Foi uma vitória decisiva para a garantia do direito à saúde, sobretudo para os cidadãos mais desfavorecidos economicamente.

O plano prevê a regulamentação dos seguros de saúde nos EUA a partir de três pilares: ajuda fiscal para as pessoas de baixa renda, com restituição de impostos; regulação de mercados de seguro pelos estados; e cobertura universal, assim envolvendo o barateamento de custos para que nenhum americano seja impedido de usufruir de planos de saúde por qualquer que seja o motivo, estando saudáveis ou não.

A Lei de Cuidados Acessíveis (Affordable Care Act ou “Obamacare”, como se tornou conhecida pelos seus opositores) universalizou o sistema de saúde naquele país, sendo uma das principais plataformas de governo do Presidente Obama – ou talvez a principal. Aprovada em 2010, a lei pretendia estender a cobertura médica a milhões de pessoas que não possuíam plano de saúde. No entanto, a medida sempre gerou desacordos jurídicos e políticos entre os americanos, divididos entre liberais, favoráveis à medida, e conservadores, contrários.

Desde então, os Republicanos, de maioria conservadora, engajaram-se fortemente na derrubada da referida lei no Congresso e perante o Poder Judiciário, mas sem sucesso. No entanto, dois pontos sempre encontraram dificuldades nos tribunais: a obrigatoriedade de alguma cobertura médica, pública ou privada, para toda a população e a possibilidade de o governo federal oferecer subsídios a cerca de 6,5 milhões de americanos que não possuíam fonte de renda suficiente para custear um plano de saúde.

Esses foram, precisamente, os pontos centrais da discussão na Suprema Corte, que se debruçou sobre o tema inicialmente no caso National Federation of Independent Business v. Sebelius, em junho de 2012, e, em definitivo, no caso King v. Burwell, três anos depois. Em ambos, a Corte manifestou-se pela constitucionalidade do Affordable Care Act.

Apesar dos desacordos profundos e moralmente razoáveis, dificilmente essas decisões serão revistas na esfera política majoritária, seja por um governo futuro ou por eventuais maiorias parlamentares, por importar na consolidação de um programa que avança na garantia do direito à saúde, proporcionando acesso e cobertura médica a milhões de cidadãos de baixa renda no país.

No primeiro caso, a Corte se dividiu sobre os limites da autonomia individual. De um lado, os opositores da medida alegaram indevida invasão do Estado na esfera individual das pessoas, ao exigir que todos tenham um plano de saúde. Além disso, o plano representaria um aumento dos gastos do Estado, com o oferecimento de subsídios aos mais pobres. No entanto, tais argumentos, em vez de servirem para rechaçar a medida, reforçaram sua necessidade.

No passado, uma série de pessoas desamparadas, possivelmente as que mais necessitavam de um plano de saúde, eram impedidas de tê-lo, em razão da existência de doenças prévias, por exemplo, o que supostamente representaria elevado custo às empresas. Não obstante, questões de preferência econômica ou de mercado não podem justificar o desamparo daqueles grupos mais necessitados. Por isso, o que está na base do programa de assistência não é apenas o direito à saúde (de qualidade), mas o direito à igualdade. Como assegurou o Presidente Obama, “[o] acesso à assistência médica de qualidade e acessível é um direito, não um privilégio”.

Nessa linha, no case em questão, o Justice John Roberts surpreendeu a todos ao votar pela constitucionalidade do programa de reforma sanitária, contrariando sua sólida e histórica inclinação conservadora na Suprema Corte. Assim, por uma maioria de cinco votos a quatro, a validade da reforma estava assegurada. A divisão da Corte, no entanto, refletia o profundo desacordo da sociedade, sendo um indício de que aquele tribunal poderia novamente vir a se debruçar sobre o caso. Isso aconteceu alguns anos depois, quando David M. King, junto com outros residentes do Estado da Virgínia, pretenderam afastar a possibilidade de o governo federal subsidiar o seguro de saúde da Lei de Cuidados Acessíveis, judicializando a questão, assim, quanto a um ponto específico daquela legislação, precisamente em torno do conceito de “Estado”.

A Lei dispõe sobre mercados “estabelecidos pelo Estado”, em sítios eletrônicos, em que se apresenta um rol de possibilidades de seguros privados para que as pessoas possam contratar livremente aquele que mais lhes convém. Se o Estado não fornecesse opções de planos de saúde em mercado próprio, os americanos poderiam aderir a algum seguro de saúde diretamente no sítio eletrônico healthcare.gov, disponibilizado pelo governo federal.

A controvérsia sobre o conceito de “Estado” ocorreu justamente porque 34 estados se recusaram a estabelecer mercados estatais, o que foi feito pelo governo federal, com o intuito de dar efetividade à legislação. Em geral, esses estados tinham maiorias republicanas no governo ou no parlamento, explicando a forte reação contrária ao programa de reforma da saúde.

A Lei previa subsídios para os estados que regulamentassem seus mercados, sem dispor sobre autorização de benefícios para os mercados federais, o que deixaria milhões de pessoas de baixa renda desamparadas naqueles que não possuíam mercados próprios, caso o conceito
de “Estado” fosse tomado em sentido literal e (r)estrito.

Por maioria de seis votos a três, a Suprema Corte decidiu com sensibilidade e justiça social por um conceito inclusivo de ente público, que homenageou a Lei de Cuidados Acessíveis ao permitir a inclusão de pessoas de baixa renda daqueles 34 estados no programa de ajuda para cobertura médica. Assim, o Justice John Roberts mais uma vez proferiu um voto primoroso, ao assentir que “[o] Congresso aprovou a Lei de Cuidados Acessíveis com a finalidade de melhorar os mercados de planos de saúde, não de destruí-los”.

A Suprema Corte norte-americana deu dois importantes exemplos para o mundo jurídico. Se os tribunais superiores são decisivos no constitucionalismo contemporâneo, seu protagonismo deve ser pautado pela construção da justiça social, levando os direitos e os conceitos jurídicos a sério, nas linhas de Ronald Dworkin, para decidir com integridade e igualdade, garantindo a todos, e, sobretudo, às minorias e grupos mais desfavorecidos da sociedade, um tratamento com igual respeito e consideração.

Além disso, embora se possa dizer que a Suprema Corte foi decisiva para o futuro da reforma da saúde nos EUA, ela foi importante justamente por dar prosseguimento a uma política pública de grande importância, e não o contrário, em deferência ao que foi decidido pelo parlamento norte-americano. O seu protagonismo, embora decisivo para a garantia e o avanço de direitos, pode também muitas vezes barrar avanços fundamentais, quando interfere indevidamente em políticas públicas exaustivamente debatidas e decididas em outras esferas.

Nessa decisão, o Judiciário atuou a partir de um produtivo diálogo entre direito e política para a defesa e promoção de direitos fundamentais. Essas relações se fazem sentir pelo discurso do Presidente Obama na Casa Branca, logo após a aprovação da decisão da Corte, quando reforçou que: “depois de quase um século de discussões, décadas de tentativas, um ano de debate bipartidário, finalmente declaramos que na América o acesso a seguros de saúde não é um privilégio para alguns, mas um direito de todos”.

Assim, tem-se construído um constitucionalismo igualitário em que os conceitos e as categorias jurídicas são pensados para a necessária promoção de mudanças e avanços sociais, que não nascem do dia para a noite, mas a partir de longo processo de lutas e diálogos de diversas gerações, engajadas na construção de uma sociedade justa, fraterna e solidária.