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A REMOCÃO DE SERVIDOR E O CONFLITO APARENTE ENTRE NORMAS CONSTITUCIONAIS

5 de junho de 2002

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EMENTA: Remoção de servidora publica para localidade diversa da que foi nomeada, por motivos particulares.

A remoção de servidor público para outra localidade pode, eventualmente, originar um conflito entre normas constitucionais, como as constantes, por um lado, do art. 37, II, da Carta Magna, que estabelece a obrigatoriedade de concurso público, e, por outro, do art. 226, que garante a proteção do Estado a família.

Tal questão foi objeto de uma ação por mim julgada, cuja controvérsia cingia-se a analise do direito de servidora de ser lotada em localidade diversa daquela para a qual fora nomeada, muito embora não houvesse obtido classificação suficiente para permanecer nessa localidade desejada, mas que, devido a questões familiares insuperáveis, não poderia permanecer no local de sua primeira lotação.

A aurora objetivava sua remoção para que tivesse exercício de suas funções na cidade do Rio de Janeiro, ate que se ultimasse o julgamento final da ação e também ate que pudesse concorrer a remoção para um local onde existissem recursos para o ideal atendimento de que necessitava seu filho.

Informava que fora aprovada em concurso público, nomeada e empossada no cargo de Auditor Fiscal do Tesouro Nacional, tendo como sua primeira lotação a Inspetoria da Receita Federal em Ponta Porã – MS, onde entrou em exercício no dia 4/11 98.

Ocorre, no entanto, que tivera um filho em 3o/8/97, tendo o mesmo, inicialmente, permanecido no Rio de Janeiro – RJ, em companhia de seu marido e pai da criança que vinha a ser servidor público estadual, do Tribunal de Justiça do Rio de janeiro, o que inviabilizaria qualquer remoção.

Não mais suportando o isola­mento familiar, resolveu levar o filho consigo para Ponta Porã, mas o mesmo não se adaptou ao local, apresentando problemas respiratórios graves, tendo, assim, que retornar ao Rio de Janeiro.

Em conseqüência, alegava a servidora que vira acometida de forte estresse emocional, somado ao fato de que seu outro filho encontrava-se com o rendimento escolar comprometido, ante a sua ausência.

A antecipação de tutela foi deferida para que a autora fosse transferida provisoriamente para uma repartição fiscal federal situada nesta cidade.

Posteriormente, a servidora informou ter requerido sua inscrição no concurso de remoção para a cidade do Rio de Janeiro.

A União Federal, em contestação, aduziu que a pretensão da aurora era, na verdade, ver alterado o resultado final do concurso público a que se submetera, isto porque a lotação dos candidatos aprovados deu-se segundo a classificação final de cada um, e que o poder de definir a lotação inicial de seus servidores e prerrogativa da Ad­ministração, não podendo o servidor se opor a ele, com base em necessidades ou interesses pessoais.

Analisando-se o mérito da questão, foi identificada uma típica situação de conflito aparente entre duas garantias constitucionais, ou seja: de um lado, compete a Administração, na forma do art. 37, II, da CF/88, estabelecer os critérios e requisitos para o concurso público, bem como para a lotação inicial dos candidatos aprovados, da forma que melhor atenda ao interesse público e as suas necessidades; por outro lado, parem, a Constituição também garante a família, base da sociedade, a proteção especial do Estado (art. 226).

Diante de duas situações de conflito, alego de inicio, duas idéias devem ficar assentes: 1a) não se resolve conflito pela forma simplista de hierarquização das normas antinômicas, ate porque todas tem o mesmo peso dentro do texto da Carta; e 2ª) a colisão deve ser solucionada sopesando-se a importância relativa de cada direito ou princípio envolvido, no caso concreto.

Como ressalta Carlos Roberto Siqueira Castro:

“O mais prudente e razoável nos contextos conflitivos é, em primeiro lugar, preservar a unidade sistêmica da Constituição e, alem disso, sope­sar as circunstancias de cada situação concreta para definir, caso a caso, o interesse ou grupo de interesses que estejam a merecer a tutela constitucional, mediante a escolha do comando protetor melhor aplicável a espécie de que se trate”1

Cabe, pois, identificar o núcleo essencial de proteção de cada um dos direitos envolvidos ou, nos dizeres de Vieira de Andrade, os 2 modos primários típicos de exercício do direito2.

Com a regra de obrigatoriedade dos concursos, objetivou o constituinte fixar o meio técnico ideal para que a Administra­ção possa selecionar seus servidores, pretendendo, de um lado, averiguar os mais capazes e eficazes, e, de outro, propiciar igualdade de oportunidade para todos, atendendo, assim, aos princípios da impessoalidade e da moralidade.

É esse, pois, o núcleo essencial de proteção dessa norma constitucional.

Já com relação a proteção especial da família, afumou-a o constituinte como a base da sociedade, garantindo assistência na pessoa de cada um dos que a integram.

A fração de vida protegida por está norma fundamental e assim, muito ampla, abrangendo toda a sociedade, o que faz com que, ate mesmo, um tipo de agressão bem leve reclame proteção, o que não e a hipótese da primeira norma, cujo âmbito de atuação é bem menor, ante o interes­se mais restrito para seu exercício.

Identificados, pois, os núcleos essenciais de proteção, passa-se para a fase da ponderação de valores, com base nos princípios da unidade da constituição e da proporcionalidade e da razoabilidade.

Dessa forma, parece ser bastante razoável que a garantia constitucional do concurso público – que assegura o aproveita­mento dos candidatos de acordo com sua classificação -, não teve, no caso concreto em analise, a amplitude de vedar a remo­ção da autora para outra unidade da Federação, nem a de impedir a reunião de uma entidade familiar, profundamente atingida pela separação de seus membros.

Ora, a autora foi devidamente selecionada em concurso público, no qual logrou aprovação, demonstrando com isso sua capacidade e adequação ao serviço público. Tem direito irretorquível ao cargo público que exerce. Não obteve, entretan­to, dassificação suficiente para que fosse lorada no Rio de Janeiro. Não obstante, todos aqueles que obtiveram tal classificação, já estavam aqui logrados, quando ocorreram os distúrbios da autora, não sendo dessa forma atingidos.

Já com relação aos que obtiveram melhor classificação que a aurora mas que não lograram lotação nesta cidade, de uma forma ou de outra conseguiram se adaptar aos respectivos locais de atuação, tanto que não procuraram o Poder Judiciário para modificá-los.

Por outro lado, a sociedade, de uma maneira geral, é a mais atingida a cada esfacelamento de uma entidade familiar, especialmente se vierem a ocorrer distúrbios em seus componentes, podendo gerar problemas de grande seriedade, que o Estado busca incessantemente evitar.

Assim, considerando-se que a constituição é uma, cabe ao interprete procurar harmonizar as pluralidades de concepções existentes em suas diversas normas, buscando atingir o ponto de equilíbrio entre elas.

Ademais, se foi a servidora que apresentou problemas sérios no local para o qual foi designada, enquanto que os servidores que a antecederam na ordem classificatória nada apresentaram, não seria justo que ela fosse obrigada a se exonerar de seu cargo ou a esfacelar o seu núcleo familiar, como única forma de resolver o problema.

O limite imanente da norma de obrigatoriedade de concursos não atinge esse patamar nem tem essa inten­ção.

Deve prevalecer neste caso, pois, em maior esfera de proteção, a garantia da família, por estar em uma preferred position (como menciona o direito americano), em relação a norma de garantia dos concursos públicos em situação de antinomia.

Dessa forma, foi o pedido autoral acolhido para condenar a re na obrigação de proceder a remoção definitiva da servidora para a cidade do Rio de Janeiro.

Notas _____________________________________________________________________________

 1 A Constituição Aberta (livro ainda no prelo), p. 53.