Edição

A repressão ao transporte não autorizado não é faculdade, é dever da autoridade

5 de março de 2004

Compartilhe:

A sociedade assistiu a ocupação das vias públicas pelas vans, kombis e similares, operando, sem autorização do Poder Concedente, o transporte remunerado de passageiros. E o desdobramento daquela coupação ilegal das vias públicas é acompanhado, atualmente, nas páginas policiais dos jornais. Não obstante, mantem-se a omissão das autoridades. É dessa omissão que trata esse artigo.

No tratamento das questões ligadas ao transporte e, sobretudo, ao transporte público de passageiros, tem se verificado que nem sempre se faz distinção entre transporte e trânsito ou tráfego.

O insigne Professor Clóvis Beznos, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em artigo publicado na Revista Trimestral de Direito Público, é didático e claro ao demonstrar tratarem-se de institutos diversos:

“Coisa diversa se dá com o transporte, pois enquanto a ausência de tráfego significa conforto, a ausência de transporte certamente se constitui em fator de extremo desconforto.”

Os dicionários, de um modo geral, definem tráfego e trânsito como movimento ou fluxo de veículos e transporte como a condução de pessoas ou coisas por caminho aéreo, terrestre ou marítimo. Assim, também o Código de Trânsito Brasileiro (art.1º e anexo I) e o regulamento do transporte público do Estdo do Rio de Janeiro (art.12, I, do Dec.3893/81).

A distinção entre trânsito (ou tráfego) e transporte é essencial para a escolha da norma pertinente a cada uma daquelas especialidades, do campo de aplicação das legislações distintas e para aferição da competência para legislar, regulamentar ou fiscalizar cada uma daquelas atividades específicas.

E para que fique bem justificado o cuidado com a distinção, exemplificamos com o artigo 231,VIII, do Código de Trânsito Brasileiro que tipifica como infração de trânsito o condutor que transitar com o veículo:

VIII ‑ efetuando transporte remunerado de pessoas ou bens, quando não for licenciado para esse fim, salvo casos de força maior ou com permissão da autoridade competente: Infração ‑ média; Penalidade ‑ multa; Medida administrativa ‑ retenção do veículo;

O leitor menos atento do dispositivo acima transcrito poderá pensar que está diante de uma norma reguladora de transporte, quando na verdade trata-se de uma norma sancionadora da infração de uma regra de trânsito, haja vista que a disciplina dessa matéria inclui o licenciamento dos veículos. In casu, o dispositivo transcrito penaliza o licenciamento irregular ou a destinação irregular do licenciamento, vez que para licenciar veículo que se destine ao transporte remunerado de passageiros a legislação impõe forma e condições especiais, tais como:

Art. 97 – As características dos veículos, suas especificações básicas, configuração e condições essenciais para registro, licenciamento e circulação serão estabelecidas pelo CONTRAN, em função de suas aplicações.

Art. 107 – Os veículos de aluguel, destinados ao transporte individual ou coletivo de passageiros, deverão satisfazer, além das exigências previstas neste Código, às condições técnicas e aos requisitos de segurança, higiene e conforto estabelecidos pelo poder competente para autorizar, permitir ou conceder a exploração dessa atividade.

Art. 135 – Os veículos de aluguel, destinados ao transporte individual ou coletivo de passageiros de linhas regulares ou empregados em qualquer serviço remunerado, para registro, licenciamento e respectivo emplacamento de característica comercial, deverão estar devidamente autorizados pelo poder público concedente.

(C.T.B. Lei 9.503, de  23.09.1997)

Resolução 811/96, do CONTRAN.

Estabelece os requisitos de segurança para veículos de transporte coletivo de passageiros.

Art. 1o. – Os veículos novos, de fabricação nacional e estrangeira, destinados ao transporte coletivo de passageiros (ônibus e microônibus), para fins de homologação junto ao Departamento Nacional de Trânsito, e de registro, licenciamento e emplacamento necessários para circular nas vias públicas, deverão atender às exigências estabelecidas na presente Resolução.

Parágrafo único – Define microônibus  como veículo para até 20 passageiros e com corredor interno para circulação dos mesmos.

Com a mesma ação, o mesmo infrator da legislação disciplinadora do trânsito também poderá estar infringindo a legislação disciplinadora do transporte público de passageiros. Para tanto, basta que não esteja legalmente autorizado a operar o serviço público pelo poder concedente competente.

A distinção entre regra de trânsito e regra de transporte já vem sendo reconhecida pelo nossos Tribunais, sendo exemplo do afirmado decisão proferida no agravo de instrumento nº. 2.405/97, da 5a. Câmara Cível do TJRJ, sendo agravante o Estado do Rio de Janeiro e relator o Eminente Desembargador Roberto Wider:

Eis um dos trechos expressivos do acórdão:

“Portanto, para sua liberação a impetrante deveria apresentar os documentos probatórios do licenciamento do veículo em si (certificado de registro e licenciamento) bem como da licença para efetuar o transporte remunerado de passageiros, pois que outra não é a finalidade de um ônibus.”

Feita a distinção e, embora o transporte coletivo e remunerado de passageiros em veículos do tipo kombi, vans e similares constitua infração de trânsito, assim como os licenciamentos irregulares feitos pelo DETRAN-RJ daqueles tipos de veículos constitua, em tese e no mínimo, ilícito administrativo,  não é disso que se tratará neste artigo. Aqui trataremos apenas e tão somente do transporte coletivo de passageiros – modalidade de serviço público – operado sem autorização formal do poder concedente.

De algum tempo para cá, vem proliferando o transporte ilegal, operado com veículos licenciados ilegalmente pelo DETRAN (em desacordo com a Resolução 811, do CONTRAN) ou licenciados para finalidade diversa do transporte remunerado de passageiros, haja vista que são do tipo kombi, van e similares, e não autorizados pelas autoridades competentes.

Registre-se que o transporte remunerado de passageiros sem autorização do Poder Concedente constitui, em tese, o ilícito contravencional tipificado pelo artigo 47 da Lei das Contravenções Penais:

Art. 47 ‑ Exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício:

Pena ‑ prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses, ou multa.

Nem mesmo se há de falar em clandestinidade: eis que a atuação dos contraventores é ostensiva, de conhecimento público e notório, não cessando, sequer, diante das sedes do Judiciário e dos Executivos estadual e municipais. Portanto, todas as autoridades podem constatar a atividade ilegal. Ou seja, a existência do transporte ilegal é fato público e notório, configurando a hipótese da desnecessidade de prova contemplada pelo artigo 334, do Código de Processo Civil.

O transporte ilegal, não gera empregos formais, mas apenas subemprego (são camelôs de serviço público, embora este não admita a informalidade); não recolhem tributos nem pagam multas (são sonegadores e infratores contumazes); não respondem civilmente pelos danos causados e não são raros os casos noticiados pela imprensa de utilização de veículos clonados, motoristas inabilitados e envolvimento em ocorrências mais graves.

A atividade contravencional ostensiva e impune e as conseqüências do trânsito congestionado pelas milhares de vans, kombis e similares que circulam pela cidade desenham o quadro de caos urbano e de insegurança que inquieta a população.

Como registra o Eminente Professor Celso Ribeiro Bastos:

“Há que considerar que o possível trabalho gerado pelos informais é nitidamente comprometido em razão do número de empregos formais que desaparecem. Os cofres públicos também deixam de arrecadar contribuições, pois, no caso dos perueiros, há uma omissão no cumprimento dos deveres de uma empresa que paute seu comportamento pela legalidade. É imprescindível que o poder público municipal reconheça que o transporte informal agrava tanto a situação das empresas de ônibus, que se vêem diante de uma concorrência desleal, quanto a dos usuários, que não podem usufruir de um serviço adequado e com segurança, ao qual têm direito por força de norma constitucional.” (in Justiça & Cidadania – Set/2002 – p.45 e 25)

Não socorre o transportador ilegal a alegação de estar buscando na atividade contravencional a própria manutenção e a da sua família. Nem mesmo o arrimo no desemprego – que é uma realidade nacional.

Não se trata de uma “questão social”. Na verdade, há deliberada intenção de afrontar a lei e a autoridade. Não fosse assim, teria o transportador ilegal optado pelas atividades legais previstas nas regulamentações estadual e municipais, quais sejam, o transporte escolar, turístico, cultural e mediante fretamento. São quatro formas legais de utilização dos veículos do tipo vans, kombis e similares.

O transportador ilegal só atua nos horários e itinerários mais rentáveis. Logo se vê que o discurso justificador do transporte ilegal está em contraponto ao interesse público.

A propósito, vale transcrever trecho do editorial do jornal O Estado de São Paulo, de 23.07.1999, página A3:

“Reportagens publicadas pelo Jornal da Tarde revelaram que a cidade foi loteada. Na zona norte, os traficantes comandam as linhas exploradas pelos perueiros. Na zona leste, os policiais ditam as regras e recebem a propina dos donos de lotações. A Polícia Militar identificou 13 PMs, suspeitos de extorquir perueiros”.

“Há ainda linhas entre bairros exploradas por ladrões que atendem os passageiros com peruas roubadas. E existem também os receptadores que compram peruas  roubadas por R$300,00 ou R$500,00 e montam grandes frotas. …. É um público que não poderia passar despercebido dos traficantes, que passaram a complementar o serviço de leva-e-traz de passageiros com a venda de drogas.”

Alguns buscam justificar a atividade contravencional dos transportadores ilegais com a imputação de deficiência do serviço prestado pelas empresas regulares. Sem negar a necessidade constante de buscar melhores resultados na prestação dos serviços públicos, “não pode ser olvidado que, em consonância com o princípio do controle ou tutela, a Administração fiscaliza as atividades das empresas delegatárias da operação dos serviços públicos, com o propósito de verificar o cumprimento das normas regulamentares, que traduzem interesse geral. Portanto, se houver deficiência do serviço, cabe ao Poder Concedente identificá-la e tomar as providências previstas pela legislação”. A deficiência, mesmo se existente, não justifica o ilícito contravencional. E, menos ainda, justificará a superposição do interesse particular ao interesse público.

Diante do caos urbano causado pelo transporte ilegal e das conseqüências para os trabalhadores, a CUT – Central Única dos Trabalhadores e a CNTT – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes editaram Resolução Conjunta, datada de 23.03.98, repudiando o transporte ilegal de passageiros. A Resolução registra os antecedentes das cidades de Lima, no Peru, México e Santiago, no Chile, e passa a relacionar os males para os trabalhadores:

“Presença de trabalhadores assalariados sem carteira assinada; desconhecimento da convenção coletiva para a categoria; total flexibilização das condições de trabalho (com longas jornadas de trabalho etc); Desrespeito ao caráter de prestação de serviço público. Por exemplo, não há compromisso de atender a população fora dos horários de pico, não se respeitando as gratuidades da terceira idade, deficiência física, estudantes etc; Esses setores funcionam sem nenhuma garantia para os passageiros contra acidentes; Aumento do desemprego urbano no transporte público, pois para cada ônibus substituído cessam 7 empregos diretos, sem contar que, sob a fachada de uma grande parte dos chamados transportes alternativos, se escondem proprietários de vários veículos… ; Utilização e exploração da mão-de-obra infantil, onde crianças menores de 14 anos estão trabalhando como cobradores, em locais prejudiciais à sua dormação e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social.

(Cf. “Transporte Coletivo Alternativo – Aspectos Jurídicos”- Prof. Clóvis Beznos, in Revista Trimestral de Direito Público – Edição 26/1999)

Os fatos estão sinalizando no sentido da deterioração do sistema de transporte público. E a população do Estado do Rio de Janeiro já conhece essa história. Para lembrá-la, aí estão os trilhos atravessando a cidade. Os trens também foram vítimas da irresponsabilidade, da má gestão pública e do tratamento demagógico-eleitoral conferido ao transporte público.

Em resumo, como é público e notório, com ou sem associação ao crime organizado, operam o transporte remunerado de passageiros sem autorização do Poder Concedente municipal alguns milhares de proprietários de kombis, vans e similares, exatamente como descreve o Professor Celso Ribeiro Bastos, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional:

“Na realidade, esses serviços vêm desestruturado o sistema de transporte coletivo urbano, levado a efeito por empresas de ônibus regularmente constituídas. Houve uma sensível diminuição da receita antes auferida por essas empresas, seguida de uma diminuição da sua frota, em face da concorrência desleal dos informais, que captam de forma indevida os passageiros nos pontos de ônibus, conduzindo-os aos seus destinos, numa prestação de caráter oneroso, rompendo, deste modo, com o sistema oficial de exploração de serviço púbico de transporte coletivo.”

Não obstante, tão flagrante quanto a reiterada e desavergonhada prática contravencional, é a omissão das autoridades, cuja inércia produz o caos no trânsito, a desorganização da ocupação do espaço urbano, a deterioração do serviço público de transporte de passageiros e o sentimento de impunidade.

E prossegue no mesmo texto já identificado o Professor Celso Ribeiro Bastos:

“ A situação se agrava ainda mais quando o poder público municipal, em vez de fiscalizar, autuar e aplicar as penalidades e medidas administrativas cabíveis àquelas pessoas responsáveis pelo transporte informal de passageiros, mantém-se omisso. Adverte-se que ao poder público incumbe o dever constitucional de zelar pela boa prestação do serviço, regulamentando-o, controlan­do-o e fiscalizando-o, em obediência ao princípio da indisponibilidade do interesse público.”

A Constituição Federal, no artigo 175, exige:

Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

§  único. A lei disporá sobre:

I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

IV – a obrigação de manter serviço adequado.

E, como previsto pela Constituição da República, a Lei Federal 8.987, de 13.02.1995, dispôs:

Art. 6° – Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.

§ 1° – Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.

A regularidade e a continuidade decorrem do interesse público. Antes mesmo de explicitadas pela lei, já eram apontadas pela doutrina como características inerentes aos serviços públicos, mormente àqueles considerados essenciais, como o transporte coletivo assim definido em sede constitucional.

As empresas delegatárias da operação do serviço público de transporte de passageiros, estão comprometidas com o interesse público. Operam todos os dias do ano, com chuva ou sol, com muito ou poucos passageiros nas ruas, nos domingos e feriados, no Natal, Dia das Mães, Dia dos Pais ou quando algum familiar ou mesmo algum motorista adoece. Sempre estarão asseguradas a regularidade e a continuidade, como exige o interesse público. Àquelas operadoras regulares de serviço público essencial é defeso invocar a exceptio non adimpleti contractus. Estão sujeitas à cassação das permissões ou concessões, à encampação etc.

Ao contrário, o transportador ilegal busca satisfazer o próprio interesse, o interesse privado. Só opera nos itinerários e horários de maior demanda de passageiros, tem jornada de trabalho adequada à sua conveniência e às suas necessidades de receita pessoal, evita o desgaste das vias mal pavimentadas ou dos dias de chuva mais forte etc. Enfim, apenas busca o interesse privado, sem compromisso com a regularidade e a continuidade.

A Lei Federal 8.078, de 11.09.1990, o Código de Defesa do Consumidor, exige do prestador do serviço público muito mais:

Art. 6° – São direitos básicos do consumidor:

I – a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;

VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;

X – a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.

O transportador ilegal, em regra, utiliza veículos que não satisfazem as exigências técnicas de segurança estabelecidas pelo Conselho Nacional de Trânsito, como aquelas da Resolução no. 811/96, daquele colegiado Presidido pelo Ministro da Justiça:

Estabelece os requisitos de segurança para veículos de transporte coletivo de passageiros.

Art. 1o. – Os veículos novos, de fabricação nacional e estrangeira, destinados ao transporte coletivo de passageiros (ônibus e microônibus), para fins de homologação junto ao Departamento Nacional de Trânsito, e de registro, licenciamento e emplacamento necessários para circular nas vias públicas, deverão atender às exigências estabelecidas na presente Resolução.

Parágrafo único – Define microônibus  como veículo para até 20 passageiros e com corredor interno para circulação dos mesmos.

Registre-se que a competência do CONTRAM decorre de expressa recomendação da Legislação Federal (Código de Trânsito Brasileiro):

Art. 97. As características dos veículos, suas especificações básicas, configuração e condições essenciais para registro, licenciamento e circulação serão estabelecidas pelo CONTRAN, em função de suas aplicações.

Art. 103. O veículo só poderá transitar pela via quando atendidos os requisitos e condições de segurança estabelecidos neste Código e em normas do CONTRAN.

Mais uma vez fica evidenciada a ilegalidade do transporte efetuado pelas kombis, vans e similares: aqui, pela falta de atendimento aos requisitos de segurança exigidos pela legislação federal.

Por outro lado, a indigência do transportador ilegal e a sua insubmissão ao disposto  pelo parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição Federal, inviabilizam a reparação de danos patrimoniais e morais, como dispõe o inciso VI, do artigo 6º, da Lei Federal 8.078/90.

Acumulam-se, portanto, as ilegalidades:

• o serviço público prestado não é adequado;

• o serviço prestado não é seguro;

• o transportador ilegal não assegura a reparação de danos patrimoniais e morais que venha a causar;

• não é (nem poderia ter sido) autorizado pelo Poder Concedente;

• o transportador ilegal desatende ao artigo 175, caput e incisos II e IV, da Constituição da República;

• o transportador ilegal desatende ao  artigo 6º, caput e parágrafo 1º, da Lei Federal 8987/95;

• o transportador ilegal desatende ao artigo 6º, incisos I,VI e X, da Lei Federal 8078/90;

• o transportador ilegal desatende a diversos artigos do Código de Trânsito Brasileiro, especialmente os artigos 97 e 113, e a Resolução 811/96, do Conselho Nacional de Trânsito.

Não por outra razão, certamente, os Regulamentos do Transporte Público de Passageiros, adotados pelos municípios e pelo estado, não contemplam a possibilidade da prestação do serviço público de transporte coletivo e remunerado de passageiros na forma operada pelos transportadores ilegais. As normas regulamentares consagram o princípio do interesse público ou da finalidade pública que pode ser resumido na regra de que interesses públicos têm supremacia sobre os individuais.

Mesmo o individualismo, consagrado pelo Estado liberal, não prepondera sobre o interesse geral. E nesse sentido é o magistério de Maria Sylvia Zanella di Pietro:

“… o regime administrativo traz em si traços de autoridade, de supremacia sobre o indivíduo, com vistas à consecução de fins de interesse geral”.

…“Daí a bipolaridade do direito administrativo: liberdade do indivíduo e autoridade da Administração…”

“Para assegurar-se a autoridade da Administração Pública, necessária à consecução de seus fins, são-lhe outorgados prerrogativas e privilégios que lhe permitem assegurar a supremacia do interesse público sobre o particular.”

(in  Direito Administrativo-Ed.Atlas-11ª ed. P.65)(grifado no original)

Na verdade, as prerrogativas e privilégios conferidos à Administração Pública são ferramentas para satisfação do interesse geral. E no rol dessas ferramentas estão o poder de aplicar sanções administrativas e de impor medidas de polícia.

Celso Antônio Bandeira de Mello, citado pela Professora Maria Sylvia Zanella di Pietro, assim leciona:

“As pessoas administrativas não têm portanto disponibilidade sobre os interesses públicos confiados à sua guarda e realização.”

(Op.cit. p.70)

E a própria jurista completa:

“Precisamente por não poder dispor dos interesses públicos cuja guarda lhes é atribuída por lei, os poderes atribuídos à Administração têm o caráter de poder-dever; são poderes que ela não pode deixar de exercer, sob pena de responder pela omissão.”

É certo que em diversas ocasiões a lei defere ao administrador público a valoração da conduta e este, então, avaliará a oportunidade e a conveniência da prática de determinado ato. É o que a doutrina denomina poder discricionário, ou seja, a prerrogativa do agente público escolher o procedimento que melhor atenda ao interesse público, dentre vários procedimentos possíveis. Todavia, não é o caso da repressão ao transporte ilegal. Trata-se de atividade vinculada ou seja, a lei ou o regulamento já escolheu o procedimento mais oportuno e conveniente: a aplicação das sanções regulamentares. Não existe outro procedimento possível.

Na verdade, a discricionariedade é exceção. A doutrina mais moderna consagra a limitação do poder discricionário, conferindo ao Poder Judiciário maior controle sobre os atos daquela espécie.

Seguramente, o reconhecimento da legalidade do exercício da discricionariedade estará sempre condicionado à adequação da conduta do agente aos fins buscados pela legisdlação. A conduta que contraria a finalidade da norma será ilegítima e deverá merecer o devido controle judicial. O que é defeso ao Judiciário é a substituição da avaliação de critérios administrativos (conveniência e oportunidade) adotados conforme com os parâmetros legais.

Certo é que os agentes públicos não podem deixar de reprimir o transporte ilegal, seja pelas externalidades negativas que produz (risco à integridade física dos passageiros, incapacidade para reparar eventuais danos materiais e morais que der causa, desatendimento da legislação trabalhista, sonegação de tributos, danos ao meio ambiente, desorganização do espaço urbano etc.), seja pelo dever de agir em casos de contravenções penais, seja pela expressa vedação legal à atividade. A propósito, assim leciona o professor Carvalhinho:

“Quando um poder jurídico é conferido a alguém, pode ele ser exercitado ou não, já que se trata mera faculdade de agir. Essa é a regra geral. Seu fundamento está na circunstância de que o exercício ou não do poder acarreta reflexos na esfera jurídica do próprio titular.

O mesmo não se passa no âmbito do direito público. Os poderes administrativos são outorgados aos agentes do Poder Público para lhes permitir atuação voltada aos interesses da coletividade. Sendo assim, deles emanam duas ordens de conseqüência:

1ª) são eles irrenunciáveis;

2ª) devem ser obrigatoriamente exercidos pelos titulares.

Desse modo, as prerrogativas públicas, ao mesmo tempo em que constituem poderes para o administrador público, impõem-lhe o seu exercício e lhe vedam a inércia, porque o reflexo desta atinge, em última instância, a coletividade, esta a real destinatária de tais poderes.”

Filho, José dos Santos Carvalho, Manual de Direito Administrativo, 9ª edição.

O poder de agir, que é uma faculdade do particular, é obrigação de atuar, para o administrador público. E, como ensina o sempre lembrado mestre Hely Lopes Meirelles, A inércia da Administração, retardando ato ou fato que deva praticar, caracteriza, também, abuso de poder, que enseja correção judicial e indenização ao prejudicado.