A voz do coração

5 de outubro de 2000

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Bobbio, em seu último livro, “Pelos caminhos da memória”, diz-nos que além de sermos o que temos pensado, amado e realizado, somos também o que recordamos. Pois a riqueza está nos afetos que alimentamos, nos pensamentos que tivemos, nas ações que realizamos e nas lembranças que conservamos.

Na mesma linha, já escrevera Afonso Arinos de Melo Franco, em seu livro “Amor a Roma”, onde, após registrar que “na vida, como na natureza, os frutos se colhem no outono, acrescenta que “nos momentos de fadiga da caminhada, o melhor repouso é a lembrança das suas horas douradas”.

Era no dia 12 de junho. Dia dos namorados, no calendário dos que amam. O ano, 1979. E o cenário era como este. Embora em instalações sem a beleza desta sede e sem a voz de Maria Lúcia Godoy a cantar “é a ti flor do céu”, o ambiente também era de festa e confraternização, emoldurado pela presença dos Amigos.

Naquela tarde, cheguei a este Tribunal, tomando posse na companhia de um Colega, de magistério e magistratura, o Des. Walter Veado, professor como poucos e juiz exemplar pela cultura, sensibilidade humana e conduta irretocável.

Com rápida passagem pelo foro da Capital, da qual a melhor lembrança fora a experiência vivida no Juizado de Menores, de tantas carências e idealismo, trazia nos alforges sobretudo a inesquecível recordação da judicatura interiorana.

Ao chegar a este que veio a ser o meu primeiro Tribunal, consciente de que começava uma nova etapa, na qual o ponto mais relevante era realizar a Justiça contribuindo para a formação da jurisprudência nacional, senti de imediato que o ambiente era respeitoso, fraterno e acolhedor, como, aliás, sempre foi do gosto da gente mineira. Juízes que aprendera a admirar ao longo da carreira, mostravam-se, no convívio diário,
simples e desvestidos de vãs vaidades, preocupados todos em julgar com acerto, isenção e presteza.

Atuando nesta Corte, logo também percebi, pela sua austeridade e postura sempre vertical dos seus julgadores, o significado, a responsabilidade e o relevo em integrá-la neste território encantado das Gerais, templo do culto à liberdade, de lendas e tradições, de tantos heróis, cantigas e amor à essencialidade.

Designado para a 2ª Câmara Criminal, nela encontrei dois grandes juízes, Lúcio Urbano e José de Barros, que se destacavam pela operosidade, segurança e lucidez nos julgamentos. No primeiro, atual e digno comandante do Judiciário mineiro, descortinava-se, sobretudo a efervescência cultural da ciência penal; no segundo, a dedicação beneditina no exame da prova. Com um e com outro, muito aprendi.

Ao compor, tempos após, a Primeira Câmara Cível, experimentei os melhores momentos de colegiado que tenho vivido. Nela, em convívio ameno, marcado pela “fraternura” – para usar de feliz expressão do genial autor de “Sagarana” e “Grande sertão – veredas” -, recebia lições de direito e de vida, muitas vezes repassadas do mais genuíno humor mineiro, terreno no qual se sobressaía essa notável figura humana que é o Márcio Sollero, por nós outros chamado carinhosamente de “guru”.

Nesse fecundo convívio de cinco anos, no qual eram comuns as conversas sobre literatura e as coisas da vida, não raras eram as vezes em que antecipávamos a solução de julgamentos futuros ao debater informalmente, ao final das sessões, as nossas dúvidas e angústias. Dele nasceram os enunciados de jurisprudência uniforme, quase uma centena, que povoam a jurisprudência nacional e a própria doutrina brasileira.

Ao retornar hoje a esta augusta Casa, a exemplo do que ocorrera naquele já distante 1979, vejo-me na companhia, honrosa a todos os títulos, de um outro grande Juiz, dos maiores da nossa história, expressão maiúscula da nossa cidadania que o País, em sua unanimidade, reverencia pelo talento e pela coerência, nome hoje reivindicado, por respeitáveis e expressivos segmentos da sociedade, para ocupar o mais alto posto da hierarquia nacional.

É na companhia desse ilustre atleticano filho da Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, Ministro José Paulo Sepúlveda Pertence, que, convocado, aqui compareço para receber, em manifestações de apreço e carinho, a recém instituída “Medalha do Mérito”, de uma Corte que sempre tive na afeição, envaidecido pela desvanecedora distinção de Colegas que tanto prezo pelos laços da amizade e da admiração, nos quais sempre divisei, além da cultura, as virtudes que sempre marcaram a admirável magistratura de Minas Gerais.

Como anotou Régulo da Cunha Peixoto, em seu discurso de posse como presidente, “Neste Tribunal, mercê de Deus, reina a fraternidade, cultiva-se o trabalho, esquecem-se as fadigas, estuda-se o Direito, ama-se e aplica-se a Justiça”.

Foi este Tribunal importante em minha carreira, notadamente porque nele aprendi a julgar em segundo grau, colegiadamente. E tem sido ainda mais, porque nele colhi, dentre tantas lições, a confirmação do que disse Aguiar Dias, de que a nenhum senhor o juiz deve render obediência, senão ao seu ideal de Justiça, entendida essa como instrumento de harmonia social. E porque aqui tenho conhecido juízes, hoje como ontem, que, como assinalava aquele saudoso jurista, cassado e perseguido à semelhança de Pertence, se incorporam à legião dos que se esforçam por um mundo melhor, à legião dos juristas que, recusando ser meros parasitas de textos, aceitam e realizam a tarefa de buscadores da verdade a serviço da ordem e da justiça sociais. Juízes, aduza-se, que dão à lei uma dimensão maior, atentos ao comando de que devemos aplicá-la atendendo os seus fins sociais e as exigências do bem comum,  conscientes de que soberana não é a lei, mas a vida.

Hoje, são outros os horizontes. Democratizou-se o País. E a Constituição de 1988, não obstante suas deficiências, prestigiou a cidadania e o Judiciário, que está a participar efetivamente dos destinos da Nação, sem embargo daqueles que, pelos postos que ocupam, muitas vezes não tenham uma visão mais profunda e abrangente, esquecidos de que, se o Judiciário é essencial à democracia, não se terá um Judiciário de boa qualidade se não investirmos na busca dos melhores, pela capacidade e pela vocação, para o bom exercício da árdua e difícil missão de julgar.

Como de outras vezes, vamos superar mais esta fase, não só porque um Judiciário eficiente se situa na esfera dos direitos fundamentais, dos direitos humanos de terceira geração, como também porque a sociedade contemporânea já não mais prescinde de um Judiciário forte e eficaz, com autonomia e independência.

Nos tempos que velozmente se aproximam, cada vez mais se recorrerá ao Judiciário para as garantias dos direitos da cidadania e da própria sobrevivência da democracia, ao encontro de uma sociedade livre, humana, justa e solidária, contra a omissão e a prepotência dos poderosos e eventuais detentores do poder político.

Neste momento de justificadas apreensões, de inquietações e incoerências, não bastam a retórica e o discurso, impondo-se a compreensão de que inadiável a melhoria da prestação jurisdicional, a começar pela modernização do Judiciário, com planejamento permanente e efetivo, para responder aos desafios dos novos tempos, que chegam com o novo século no dorso de uma evolução científica e tecnológica que está a exigir novas concepções e novas posturas. Só assim teremos o Judiciário que a sociedade merece e que todos desejamos: confiável, eficiente, eficaz, ágil, transparente, afirmativo, sensível às transformações sociais e aos sonhos de felicidade da alma humana.

Mário Quintana, o poeta dos pampas, com a indescritível beleza dos seus versos, nos fez lembrar:

“Se as coisas são inatingíveis … Ora!

Não é motivo para não querê-las…

Que tristes seriam os caminhos,

Se não fora a mágica presença das estrelas”.

Se os sonhos, acrescento, fossem uma mera utopia, ainda assim valeria a pena lutar por eles, pois, como escreve Fernando Pessoa, “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. É muito mais, porém, o que se deseja e que podemos realizar, a começar pelo exemplo de tribunais como este, no qual confia a sua gente, onde se cultiva o trabalho com eficiência, a celeridade é uma preocupação constante, onde se pratica o humanismo nas decisões e na convivência diária, onde é prioridade o aprimoramento cultural, com um sem número de belas iniciativas, como está a atestar o seu importante “Centro de Estudos Ronaldo Cunha Campos”.

Por tudo isso, como ocorreu com aquele humilde pintor de paredes que, extasiado ante os quadros de Renoir, Gauguin, Van Gogh, Monet e demais impressionistas, orgulhosamente bradou que também era pintor, envaidecido também proclamo que um dia integrei este notável Tribunal, do qual tanto nos orgulhamos, nós mineiros e brasileiros.

Não devo alongar-me. Mas se impõe uma palavra de agradecimento.

A Vossa Excelência, juiz de escol e um dos reconhecidos líderes da magistratura nacional, que tão bem vem dirigindo esta Casa, e aos seus não menos eminentes Pares, todos da mais pura linhagem judicial, que nos distinguiram com gesto tão fidalgo e, quanto a mim, generoso, ao agradecer socorro-me, tão elevada a comenda, dos versos de Camões, assim lançados:

“Assim que a vida é alma e esperança, e tudo quanto tenho tudo é vosso; e o proveito disso eu só o levo.

Porque é tamanha bem-aventurança o dar-vos quanto tenho e quanto posso, que quanto mais vos pago, mais vos devo”.

Em concluindo, Senhor Presidente, além de grato, pela homenagem e pela presença de tantos Amigos queridos, estou igualmente feliz, sobretudo porque ciente de que comungamos os mesmos sonhos, ideais e sentimento, pois como nos diz o cancioneiro popular, “o que importa é ouvir a voz que vem do coração”.