Acolher é proteger, recolher é crime

1 de dezembro de 2011

Desembargador do TJERJ, membro da Associação Juízes para a Democracia, membro do Conselho Editorial da Revista Justiça & Cidadania

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A Declaração de Genebra, de 1924, estabeleceu à Humanidade o dever de observância aos direitos das crianças, do qual se infere o dever prestacional de assegurar a proteção, assim como o dever de abstenção de práticas perniciosas.

Em 20 de novembro de 1959, a Organização das Nações Unidas adotou a Declaração Universal dos Direitos da Criança, posteriormente ratificada pelo Brasil. Tal documento, em consonância à proteção especial enunciada na Declaração de Genebra, expõe que “a humanidade deve à criança o que de melhor tiver a dar”, indicando em seus Princípios II e VII que:

“(…)
II – A criança tem o direito de ser compreendida e protegida, e deve ter oportunidades para seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal e em condições de liberdade e dignidade. As leis devem levar em conta os melhores interesses da criança.
(…)”

Reafirmando as diretivas da Declaração Universal dos Direitos da Criança, o artigo 3o, 1. prevê que “(…) Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança. (…)”

O melhor interesse da criança se consolida como disposição de grande amplitude que indica a prioridade em se concretizar os direitos garantidos às crianças, vez que se deve, sob quaisquer circunstâncias, considerar as melhores soluções possíveis para essa parcela da população.

A Constituição Federal de 1988 contempla a proteção dos direitos fundamentais antes mesmo de apresentar as normas organizadoras da atividade estatal, revelando o seu compromisso à consecução daqueles.

O artigo 5o, § 1o, da CRFB estabelece que os direitos humanos têm aplicabilidade imediata:
“(…)
§ 1o – As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
(…)”

A efetivação dos direitos fundamentais concerne aos custos dos direitos. Em uma sociedade em que os recursos são escassos, implementar um direito fundamental, especialmente os sociais, é tarefa que exaspera os limites dos critérios jurídicos de proteção do direito para invadir a inevitável relevância dos fatos.

A Carta Magna prevê, em seu artigo 227, o arcabouço do atual regramento acerca da garantia de direitos de crianças e adolescentes, in verbis:

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Preleciona o professor Wilson Donizeti Liberatti:

“Nossos Tribunais têm reiteradamente, e com acerto, firmado entendimento reconhecendo que o interesse da criança e do adolescente deve prevalecer sobre qualquer outro interesse, quando seu destino estiver em discussão.”
(LIBERATTI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Malheiros Editores, 1993, p. 17.)

Dispõe o artigo 1o da Lei 8.069/90: “Esta lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”.

Crianças e adolescentes passaram a ser considerados cidadãos, sujeitos de direitos, com direitos pessoais e sociais garantidos, desafiando os governos, em todas as suas esferas, a formularem e implementarem políticas públicas especialmente dirigidas a esse segmento, amparadas na destinação privilegiada de recursos.

Nesse sentido, já tive oportunidade de mencionar que a solução para problemas que envolvam crianças e adolescentes não perpassa por atitude repressiva. Ao revés, deve ser realizada mediante a consecução de políticas públicas, cuja realização impõe a apreciação principiológica em todos os níveis e esferas de atuação pública.

Ao Poder Legislativo, impõe a discricionariedade regrada de prever a legislação pertinente à previsão de normas gerais que atendam aos fins propostos em sede constitucional, de modo que todos os direitos conferidos às crianças sejam alcançados, sendo certo que tais regras devem estar balizadas pela estrutura principiológica de garantia do melhor interesse das crianças.

Ao Poder Judiciário, incumbe garantir a constitucionalidade e a legalidade dos atos realizados, tendo sempre em consideração a perspectiva de atuação em favor de crianças e adolescentes, destinatárias das normas preventivas e protetivas.

Por sua vez, não pode o Poder Executivo, imbuído do ponto de vista repressivo, pretender realizar faxina social mediante o recolhimento das crianças, como alhures já referi, de modo a que sejam crianças expurgadas da sociedade. A solução não passa pela exclusão dos indivíduos, a consideração distorcida e dissociada da previsão constitucional.

Ao contrário, impõe o respeito a sua condição de pessoas em desenvolvimento, mediante previsão, garantia e execução de políticas públicas que permitam a crianças e adolescentes o alcance de seus direitos.

Nesse sentido, cabe afirmar que o Ministério Público detém atribuições legais para impor a adequada realização de políticas públicas em prol de crianças, assim como para impedir o vilipêndio acintoso de seus direitos.

Nem se afirme que se estaria adentrando o mérito administrativo. Isto porque o resguardo do mérito administrativo presume a sua legalidade. No caso de recolhimento de crianças, não tendo por ótica o seu melhor interesse, mas tão somente a maquiagem social, verifica-se a ilegalidade, sendo de atribuição do Judiciário a sua apreciação para fins de expurgar o equívoco do ato.

Em consonância com a recente reforma do Código Penal, Lei 12.403/2011, cabe desde logo dizer que a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

Assim, como leciona a doutrina, o periculum libertatis e o fumus commissi delicti são, respectivamente, o fundamento e o requisito da preventiva.

A nova Lei 12.403, de 04/05/2011, prevê no parágrafo único do art. 313 do CPP que também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa, ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da prisão.

O mestre Guilherme de Souza Nucci, na sua obra Prisão e liberdade, sobre a nova lei, assevera que o direito ao silêncio se liga ao contexto da imputação, mas não à identificação do indiciado ou réu. Ainda, ressalva que a Lei 12.037/2009 prevê as hipóteses nas quais se pode identificar o indiciado ou réu, criminalmente, colhendo suas impressões dactiloscópicas e sua fotografia.

O doutrinador Aury Lopes Junior, no seu livro O novo regime jurídico da prisão processual, liberdade provisória e medidas cautelares diversas, salienta com muita propriedade que lhe é peculiar que o dispositivo em questão não esteja autorizando a prisão preventiva para averiguações e que tal artigo deva ser interpretado em conjunto com a Lei 12.037/90, que regulamentou a identificação criminal prevista no art. 5o, LVIII, da CF.

O mestre Aury ressalva que não sendo apresentado qualquer documento civil ou militar, ou nas hipóteses do art. 3o da Lei 12.037, será o suspeito submetido à identificação criminal e, dependendo do caso, à prisão preventiva (desde que cabível).

Como se vê, a prisão preventiva, quando houver dúvida sobre a identidade civil, somente poderá ser decretada na ausência de qualquer documento civil ou militar, ou nas hipóteses do art. 3o da Lei 12.037 (tais como o documento apresentar rasura ou tiver indício de falsificação), desde que cabível.

É cediço que a prisão preventiva somente tem cabimento nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos; se o suspeito tiver sido condenado por outro crime doloso com sentença transitada em julgado; se o crime envolver violência doméstica e familiar contra mulher, criança, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência ou se houver descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares.

Fora as hipóteses de cabimento acima mencionadas, a prisão preventiva, quando houver dúvida sobre a identidade civil ou quando a pessoa não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, é ilegal, sob pena de afronta ao princípio da presunção da inocência.
Não se pode prender apenas para identificação pessoal.

Como bem esclarece Silvio César Arouck Gemaque “ninguém pode ser preso preventivamente apenas porque não tem como comprovar sua identidade, sem que haja qualquer indício de prática de crime (…)”.

Finalizando, cumpre então dizer que a nova lei não pode autorizar a prisão de qualquer pessoa tão somente pelo fato de a mesma não fornecer elementos para a sua devida identificação pessoal, somente se podendo aceitá-la desde que cabível, conforme hipóteses acima mencionadas.

Sob esse enfoque, deve-se analisar a real natureza do denominado “Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social no âmbito da Proteção Social Especial de Média Complexidade”, que está sendo implementado pelo Poder Executivo do município do Rio de Janeiro.

Diz o citado documento (Resolução SMAS no 20, de 27 de maio de 2011. publicada no Diário Oficial Eletrônico do Município, de 30.05.2011), no seu artigo 5o, inciso XV, in verbis:

“Art. 5o – São considerados procedimentos do Serviço Especializado em Abordagem Social, devendo ser realizados pelas equipes dos CREAs/equipe técnica/equipe de educadores:
(…)
XV – Acompanhar todos os adolescentes abordados à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente – DPCA, para verificação de existência de mandado de busca e apreensão e após, acompanhá-los à Central de Recepção, para acolhimento emergencial;”
(…) (grifei)

É cediço que a apreensão em flagrante do adolescente infrator é medida drástica de privação de liberdade, em relação à qual devem ser rigorosamente observados os direitos e garantias previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sob pena de responsabilização.

Registre-se que há que deixar claro que a criança (até 12 anos de idade incompletos) não será apreendida em flagrante pela polícia por prática de ato infracional, só o sendo o adolescente (de 12 até 18 anos de idade incompletos). Segundo o artigo 105 do ECA, ao ato infracional praticado por criança corresponderão as medidas previstas no art. 101 (medidas protetivas ou de proteção em espécie, a serem aplicas pelo Conselho Tutelar – art. 136, I) ou Juiz da Infância e Juventude (art. 262). Pelo ora exposto, depreende-se que, prima facie, inexistirá mandado de busca e apreensão expedido em desfavor de criança, logo, a dita abordagem para o efeito previsto no inciso acima referido atinge, ou deveria atingir, apenas o adolescente.

Por outro lado, nos termos do ECA (art. 106, caput), em norma adaptada do art. 5o, LXI, da Constituição, o adolescente somente será privado de sua liberdade em duas hipóteses: 1) em caso de flagrante de ato infracional ou 2) por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente.

Ora, se a apreensão ou a “abordagem” do adolescente não se deu em razão de flagrante de ato infracional, sua condução coercitiva à DPCA para verificação de existência de mandado de busca e apreensão representa claro desrespeito às garantias constitucionais e infraconstitucionais.

A apreensão em flagrante do adolescente está regulada no ECA, mais precisamente, no Título VI: Do Acesso à Justiça, Capítulo III: Dos Procedimentos, Seção V: Da Apuração de Ato Infracional Atribuído a Adolescente, valendo salientar que se aplicam subsidiariamente as normas gerais previstas no Código de Processo Penal e leis processuais esparsas pertinentes (cf. art. 152).

Assim, somente se houver dúvida sobre a idade real do adolescente, cuja identificação não foi obtida e que alega ser menor de 18 anos, como tal será tratado, inclusive na lavratura dos respectivos procedimentos, até o esclarecimento, por meio do órgão de identificação ou da perícia médico-legal. A identificação compulsória, em consonância com o art. 5o, LVIII, da CF, ocorre nos termos do art. 109 do ECA, que dispõe que: “O adolescente civilmente identificado não será submetido à identificação compulsória pelos órgãos policiais, de proteção e judiciais, salvo para efeito de confrontação, havendo dúvida fundada“. (grifei) Realizada a identificação ao arrepio da hipótese legal, configura-se a responsabilidade penal do art. 232 do ECA.

Deve-se, portanto, evitar a vulgarização da apreensão do adolescente, estabelecendo-a como uma rotina de abordagem social, sob o falso aspecto de que se está cumprindo a norma legal. O Poder Público, como garantidor dos direitos dos adolescentes apreendidos, deve repelir qualquer atitude que vise a expor a imagem e a identidade deles; ao contrário, deve pautar seus esforços e ações no sentido de priorizar a proteção integral a que fazem jus.

Destarte, o ECA constitui paradigma de enfrentamento proporcional e garantista das questões que envolvem a infância e juventude, e como tal, deve ser o instrumento legal utilizado por aqueles que são incumbidos pela ordem constitucional de assegurar com absoluta prioridade os direitos das crianças e dos adolescentes.

Dessa forma, conclui-se que as ações de recolhimento de adolescentes realizadas ao arrepio do ECA, com a aplicação subsidiária do parágrafo único do art. 313 do CPP, e a implementação do famigerado “Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social”, em detrimento dos interesses superiores dos adolescentes, é incabível, inconcebível e flagrantemente ilegal, uma vez que afrontam a doutrina da proteção integral e contrariam os princípios de interpretação insculpidos no art. 6o da Lei 8.069/90 e no art. 227 da Constituição Federal.