Ai de mim, ai de ti, Haiti

31 de outubro de 2010

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Nota do editor
Chamado à atenção por Bernardo Cabral, li enlevado a magnífica crônica da ministra Carmen Lúcia, sob o título acima, publicado no jornal “O Globo” de 6 de setembro.
É incrível pelo inusitado, mas também emocionante que no burburinho e agitação das responsabilidades que lhe chegam às mãos no STF todo  dia, colocando na sua mesa de trabalho, para decisão,  questões e assuntos os mais díspares e controversos que demandam acurado estudo e difíceis soluções sobre conflitos de grande importância que transitam pela alta Corte de Justiça, essa delicada e gentil operadora do Direito encontre ainda tempo e oportunidade para expressar sentimentos com tanto amor  e humanismo.
A ministra Carmen Lúcia deixa-nos mais uma lição de pureza, solidariedade e esperança.
Nenhum homem é uma ilha, repete-se. Mesmo uma ilha pode não ser uma ilha, digo. O ilhamento de um homem é tristeza; o de um povo, um perigo. A onda que arrasta o outro pode ser a mesma que me afogará amanhã. O que derruba alguém pode ser o anúncio do terremoto que me abaterá amanhã. O outro é aquele que passa antes, às vezes, o que poderá ser meu sofrimento depois. E, se assim não for, o sofrimento mesmo dele já é uma ferida que me dói.
O Haiti não é apenas uma ilha, linda ilha que, ao olhar que deito do sobrevoo em sua proximidade, me faz pensar que o céu se derramou naquela amplidão. O Haiti é um povo em permanente estado de luta contra adversidades impostas pelos colonizadores de antes, o descaso, depois, e um certo sentido de comiseração, mais que de compaixão. É desse, no entanto, que todos nós precisamos.
Os revolucionários oitocentistas fizeram do azul a cor-símbolo da liberdade, ausência de limites. No azul intensíssimo do Caribe, a experiência haitiana mostra sinais de limites de variado matiz. Parece que ali o mar é sussurro permanente a lembrar que viver é preciso, navegar…
E segue o mundo surfando em águas nem sempre amenas, deslembrando-se de que a internacionalização das relações políticas põe à vista que estamos todos no mesmo barco. Não há sobreviventes isolados, ou, pelo menos, não há garantia de que, se uma parte do mundo for bem, obrigada, a outra pode ser desprezada.
Na mundialização econômica e política atual, nem ao menos uma ilha é uma ilha. Os que não sucumbimos em terremotos, nem dormimos sob o signo do medo dos ventos, somos iguais aos que não podem adormecer com calma. Como diria Sartre, como toda a humanidade, somos metade vítimas, metade culpados.
O Haiti é um povo ferido pela ganância insensata dos homens e pela revolta incompreensível da natureza. Melhor é saber que, mesmo poucos, muitos dos quais brasileiros, há quem esteja a ajudar, quando a solidariedade nem sempre atravessa a soleira da porta da maioria.
Os haitianos não parecem cansados de lutar. Seguem varrendo os destroços de construções arrasadas como quem ara a terra do que passou para dar espaço à semeadura nova. Parecem cultivar a certeza de que serão os jardineiros da safra que os alimentará no futuro.
Aprendi que, pessoal ou socialmente, felicidade não é destino, é construção. Se um homem não é uma ilha e uma ilha não é um isolamento humano, é imperioso que a construção ou a reconstrução seja plural. Se não for por benquerença, seja por sensatez: de mãos dadas a caminhada é mais fácil, mesmo quando os pés se esfolam pela aridez da trilha. E ai de mim, ai de ti, Haiti, se não estivermos juntos para construir o que queremos que venha. Pode ser, então, que a sorte afunde no azul intenso de um mar qualquer e que, assim afogada, ela faça-nos náufragos da aventura humana mais benfazeja.