Alguns tópicos sobre o serviço público e seus concursos de seleção

31 de dezembro de 2010

Compartilhe:

Introdução

À guisa de contribuição ao debate, apresento alguns pontos que estão sendo discutidos. Cada tópico abaixo é fruto de décadas de experiência, que aqui resumi não obstante disponha de estudos mais alentados em cada uma dessas áreas. A intenção não foi esgotar o assunto nem fazer um artigo científico, mas incentivar o debate e contribuir com minha modesta opinião como servidor, operador na área e apaixonado pelo serviço público.

A falta de servidores públicos

Muitos dizem que temos servidores públicos demais.

Entendo exatamente o contrário. O país iria melhorar muito se tivéssemos mais servidores trabalhando, desde que trabalhando bem.

Começo com um caso emblemático: temos poucos advogados e procuradores da Fazenda, o que é política canhestra, para não usar termo mais adequado, mas duro. Na iniciativa privada, que funciona em geral melhor que o governo, sabe-se que nenhum empresário de bom-senso economiza com advogados, processos de controle (no caso público, o equivalente seriam os fiscais) e com auditorias. No caso do serviço público, não só se economiza na hora de prover os cargos, como na de aumentá-los, e, mais ainda, na remuneração desses profissionais. Uma clara falta de perspectiva da importância de tais atividades.

Outra carência grave é a falta de Defensores Públicos. Aqui já não falamos dos ganhos diretos para a Administração Pública, mas do cumprimento dos dispositivos constitucionais que garantem assistência jurídica integral para os economicamente hipossuficientes.

Por fim, em tempos de Globalização, precisamos cada vez mais de Diplomatas.
Atualmente, estão querendo “economizar” não criando mais cargos e, pior, não se fazendo os concursos para o provimento dos cargos já existentes. Ora, se os cargos foram criados por lei, desconheço qualquer razão aceitável para que não sejam previstos no orçamento os gastos para a realização do respectivo concurso público para provimento das vagas e para pagar aos servidores que, aprovados, nomeados e empossados, irão desempenhar as funções, cuja necessidade já foi definida pelo Legislativo. A solução de uma questão orçamentária não pode ser feita privando o povo de servidores, em especial dos que a lei já determinou serem necessários.

Direito à nomeação e cadastro de reserva

A meu modesto entender, o cadastro de reserva é um instrumento útil e pode conviver com qualquer interpretação que seja dada à nomeação dos candidatos aprovados: direito subjetivo ou mera expectativa de direito. A meu ver, dentro do número de vagas existentes (previstas ou não no Edital), temos direito subjetivo não só do candidato como da população, que tem direito a um serviço público de boa qualidade, o que é afetado pela existência, ou não, da quantidade adequada de servidores em atividade.

O cadastro de reserva tem sido objeto de vários abusos, mas não é porque está sendo veículo de abusos que devemos abrir mão desse mecanismo ótimo para evitar soluções de continuidade na prestação dos serviços públicos.
O cadastro de reserva vem sendo usado como forma de o Estado se livrar das cobranças para proceder às nomeações, entre outras práticas lesivas aos interesses do país e daqueles que escolheram a carreira pública.

Imagine o leitor que a Administração Pública, praticando o que lhe compete, saiba quantos médicos irão completar o tempo de trabalho necessário para a aposentadoria e que, historicamente, 90% dos que chegam nessa situação de fato se aposentam; pelo mesmo caminho, o da organização e planejamento, sabe-se que, em média, falecem ou saem por outras razões, mais tantos médicos. Embora ainda não exista nenhuma vaga em aberto, sabe-se que elas irão surgir. Não se pode esperar que em um hospital onde só existam quatro médicos em regime de plantão apenas quando um deles sair é que se vá cuidar de fazer concurso para preencher o claro. Também não há razão para contratações emergenciais se não se trata de uma surpresa. Exatamente para essas situações é que existe o concurso para cadastro de reserva.

Dentro desse espírito, entendo que tal modalidade é aceitável e boa para o interesse público. Apenas, registro, não se pode admitir que havendo vagas em aberto se faça o concurso para cadastro de reserva, pois aí estará configurado o abuso por parte do administrador.

Entendo mesmo que se existem, por exemplo, duas vagas abertas, mas a Administração sabe/prevê que outras oito devam vagar em um período não muito longo (e, portanto, insuficiente para a realização de nova seleção), será possível a edição de certame para as duas vagas e cadastro de reserva. Não vejo razão nenhuma que impeça a concomitância.

E vou além: as vagas em aberto precisam ser preenchidas. Antes de se discutir se é direito do aprovado ou mera expectativa de direito, deve ser dito que é dever do Administrador, que não pode subtrair da população o número de servidores definidos em lei.

Dentro desse princípio, as duas vagas devem ser logo preenchidas e se outras surgirem, utilizado o cadastro de reserva.

Na 4ª Vara Federal de Niterói sentenciei, no final de 2009, vários processos onde a ré  era a UFF. Eles haviam feito um concurso para cargos efetivos de enfermeiro e havia vagas em aberto. Mesmo assim preferiram fazer contratações temporárias. A UFF queria os enfermeiros, precisava deles, mas o Ministério não autorizava as contratações. Onde mesmo está a autonomia? Mais que isso, nos bastidores se dizia que a intenção era manter superávit primário e por isso estavam postergando todos os provimentos de cargos efetivos. Este é um caso clássico onde há abuso do administrador. Eles chegaram ao ponto de realizar nova seleção para enfermeiros temporários mesmo havendo vagas em aberto e candidatos aprovados.

Já anotado pelos colegas, a definição de que cargos podem ser objeto de cadastro de reserva é ampla o suficiente para abarcar, na prática, todos os servidores públicos.

Importância das provas orais

Tenho grande simpatia pela prova oral por entender que é um excelente aferidor não só do conhecimento de fundo, mas também de equilíbrio emocional. Além das que participei e das que assisti, realizei centenas e centenas delas como membro examinador  da banca de Direito Penal do concurso público para Delegado de Polícia  no Rio de Janeiro, por vários concursos seguidos. Essa experiência apenas realçou minha impressão.

Vários candidatos que se saíram bem nas provas escritas se mostraram inadequados para o cargo pela total falta de atitude, postura, equilíbrio e autocontrole quando submetidos à prova oral. E, me perdoem os que discordam, sei que a prova é um momento de tensão e estresse, mas se alguém não consegue falar e agir, pensar e responder, em uma prova oral durante o dia, diante de temas meramente jurídicos, não terá também condições para analisar, por exemplo, um flagrante no meio da madrugada, com inúmeras pessoas, algumas delas talvez feridas etc. Imaginem os condutores, vítimas, presos, parentes, imprensa etc., todos reunidos no calor de um fato grave. Asseguro que é bem pior do que uma prova oral.

O interesse público deve prevalecer e as seleções para os cargos que demandam maturidade e equilíbrio são beneficiadas pela presença dessa modalidade de prova.

Indo além, creio que deva haver espaço para se aferir, pontuar e eventualmente rejeitar candidatos que se mostrem inadequados. Obviamente com critérios objetivos e ampla fundamentação, mas jamais abrindo mão de selecionar bem, pois cada erro cometido no concurso repercutirá terrivelmente na atuação da Administração e na qualidade dos serviços prestados por ela.

Não se diga que o estágio probatório é que cuidará disso. Uma coisa não exclui a outra: não é porque haverá outras oportunidades de avaliação que não poderemos desde logo eliminar quem não esteja suficientemente habilitado para o exercício do cargo. É um cuidado que economiza tempo e dinheiro e que também evita os riscos, que temos que reconhecer que existem, de algum candidato inadequado superar o estágio devido à lamentável cultura brasileira de sermos “bonzinhos”, “compreensivos” etc. Cada “generosidade” que se faz para o servidor incompetente, corrupto ou preguiçoso é feito na conta da população.
Bem referido, há  que se ter cautela para não permitir preconceitos e protecionismos na prova oral. Por outro lado, ela também dá uma salutar possibilidade de publicidade. O CNJ anulou, em 2010, um concurso para Notário no Estado do Rio de Janeiro por verificar que duas candidatas, uma ex-namorada e outra amiga próxima do Presidente da Banca Examinadora, lograram aprovação nos primeiros lugares. A leitura das provas das mesmas, e sua comparação com a de outros candidatos, revelou protecionismo. Apenas os erros de português da segunda colocada já seriam o suficiente para revelar sua mais absoluta falta de intimidade não só com o vernáculo como com o Direito. Uma prova oral é ótima ocasião para verificar não só habilidades, mas também a falta delas.

Não que as provas sejam imunes a fraudes, não o são, mas as provas orais podem ser muito úteis para dificultá-las. Então, se por um lado não possuem a salutar desidentificação dos candidatos, por outro, proporcionam publicidade que, frente a candidatos com sobrenome ou vantagem outra, amparam os que são competentes apesar disso e nos protegem dos que não são competentes.

A filmagem de toda a prova parece um instrumento bem razoável para prevenir fraudes e abusos, permitindo o controle posterior, seja interno, seja externo.
Vou me referir aqui, agora, a um debate sobre discriminação do qual participei. Ele ocorreu na comunidade NEGROS, do Orkut, da qual sou frequentador. Dessa e de outras. A razão é que sou militante, membro da OSCIP EDUCAFRO, onde promovo diversas ações, entre as quais aulas e cursos para concursos e vestibulares, dirigidos à população negra em especial e a todos os carentes de um modo geral.

Eis o que disse uma jovem inteligente e aguerrida, que se apresenta com o nome/avatar de Battah:

“os concursos jurídicos com os salários mais altos possuem prova oral, sabemos disso. e se admitimos que o Brasil é um país racista, não se pode afastar por completo a possibilidade de algum candidato negro ser prejudicado nesse tipo de avaliação. O professor Marcelo Paixão também não acreditava que existia racismo no meio acadêmico, até que surgiu Arivaldo, o primeiro estudante negro a adentrar o doutorado de antropologia da UnB e quase perder o curso de tanta perseguição que sofreu lá dentro. O professor Marcelo, mesmo sendo um militante negro consciente e sensato, precisou de um ‘chacoalhão’ para só então se convencer de que a academia é tão racista quando os outros setores da sociedade. Em anos de magistério ele nunca tinha ouvido falar de um negro vítima de racismo acadêmico, mas um dia a realidade se desvendou diante de seus olhos. O Arivaldo lutou, correu atrás para reverem sua nota e admitirem injustiça, mas no caso dos concursos públicos, coitada da criatura vítima de racismo na prova oral, porque não tem nem a quem recorrer, e caso se levante contra isso ainda terá que ouvir comentários referentes a ‘vitimismo’, ‘coitadismo’, ou à famosa ‘síndrome de perseguição’, que só os negros sentem.
(…)
retomando a prova oral… quero dizer que não sou a favor de erradicá-la, como querem alguns adminis­trativistas mais garantistas, que acusam a prova oral de desnecessária, extremamente discricionária, impessoal e parcial, mas eu acato as sugestões desses críticos para que o nome do candidato seja substituído por números (1,2,3) e que o candidato fique sozinho numa câmara fechada sem que os examinadores o vejam. E então, eles fariam as perguntas e o candidato responderia na câmara num microfone, e também que a voz do candidato passasse por um aparelho modificador de voz e tornasse a voz unissex/eletrônica. Isso evitaria a discriminação sexista.”

Não creio que precisemos chegar a esse ponto, porque não temos tido tantos problemas nas provas orais. Mas, não podia deixar de mencionar a ideia, e, naturalmente, a fonte.

Minha experiência confirma não só casos de racismo, discriminação e preconceito, como também casos de pobres, negros e índios que têm dificuldade de se expressar por questões de autoestima etc. A meu ver ainda temos racismo no país, basta analisar os dados econômicos, e, igualmente, discriminação contra a mulher.

No Estado do Rio de Janeiro, o concurso para Delegado de Polícia não tem mais prova oral. Uma lástima, pois além de aproximar este concurso dos outros da área jurídica, nos faz perder um instrumento para escolher melhor nossas autoridades policiais.

Nesse concurso, e em outros, não creio que devamos abrir mão de ter o excelente instrumento da prova oral para melhorar a escolha de quem será servidor, mas – como de um modo geral a tudo se recomenda – deve haver toda cautela para que seja meio de crescimento, e não de empobrecimento do instituto do concurso público.

Exames psicotécnicos

Mantendo o princípio básico e condutor de meu raciocínio na matéria, qual seja a proteção do interesse público, não vejo como ruim o exame psicotécnico. Não  é porque ele é trabalhoso que devemos abrir mão desse instrumento. Os testes, se bem aplicados,  funcionam.

Os testes revelam a personalidade, habilidade, tendências, doenças etc. O problema é  o quê fazer com essas informações. É preciso diferenciar  a eliminação por preconceito da eliminação por não ter o candidato algo realmente necessário para o exercício do cargo. Ou ter algo que o contraindique.
A doutrina admite que em alguns cargos seja exigida compleição física, não entendo por que não pode exigir “compleição” psicológica, por exemplo.

Todos nós conhecemos histórias de superação, e as admiramos. O problema é que quando o assunto é o serviço público, dada a estabilidade, há casos em que a superação termina no dia da posse e a partir daí os cofres públicos terão que sustentar, e os gestores, cuidar de uma pessoa inadequada ao cargo.

Os concursos públicos já evoluíram o suficiente para avaliar bem o conhecimento. Quem decide as matérias que serão exigidas ainda precisa evoluir na eleição, mas, de um modo geral, esse campo está em progresso e já em razoável situação. O que falta é conseguir avaliar melhor o caráter, a honestidade etc. Todos querem isso. Todos exigem comportamento adequado, correção etc. Não vejo razão para abrirmos mão desse momento para fazer algumas importantes avaliações.

Sei que o tema é  polêmico e espero que minhas colocações não sejam mal interpretadas.

Termino esse comentário com uma história que considero bem significativa e que recolhi ao longo da caminhada: houve uma seleção para um grupo que iria passar bastante tempo em um navio, em uma expedição muito interessante e atraente para qualquer profissional. Era uma expedição científica com a participação de civis e militares. Um militar, costumeiro primeiro colocado e considerado gênio, que se inscreveu, foi aprovado com mérito em todos os exames de qualificação… menos no psicotécnico. O tal exame noticiava a mais completa inabilidade do militar para trabalhar em equipe e para convivência, ainda mais em condições de pressão. Rejeitado, o militar foi à Justiça e obteve o direito de participar da expedição. E a mesma foi um fracasso. Os meses dentro do navio com alguém sem as habilidades sociais necessárias, sem capacidade psicológica para o projeto específico terminaram por diminuir de forma grave o resultado. Desperdício de tempo e dinheiro público etc. Para mim, um caso desses é emblemático. Não acredito que o serviço público deva ser condescendente com casos como o citado. Não acredito que seja equivocado exigir não só o conhecimento técnico, mas também outros que, por mais difíceis que sejam em sua aferição, afetam a consecução dos objetivos pretendidos pelo Estado.

Só para dar exemplo no ponto mais controvertido, o teste de Q.I. Se alguém com Q.I. baixo consegue se superar e passar no concurso, disputando com os demais, é obsceno eliminá-lo depois. Contudo, se estamos diante da avaliação para alguma atividade onde a capacidade, por exemplo, de cálculos espaciais e matemáticos seja indispensável e tomada em alto grau, o teste não me pareceria abusivo. O que vai definir esta questão é a exigência específica da atividade.
Colho a oportunidade para mencionar um caso que me parece demandar maior atenção dos administrativistas e da Administração Pública. No concurso que fiz para Analista Judiciário do TRF da 2ª Região, em 1989, foi feita seleção para cargos de nível fundamental, médio e superior. Entre os aprovados para a função equivalente à de servente havia arquitetos, odontólogos, bacharéis em Direito. Eles passaram uns poucos meses extremamente felizes. Poucos meses. Logo em seguida estavam desmotivados, tirando licenças, querendo exercer outras funções etc.

Claro que o ideal é  que fossem treinados, motivados, orientados e, se necessário, eliminados no estágio probatório. Mas, confessemos, se ainda não somos hábeis o suficiente nos concursos, somos menos ainda no estágio probatório.

Esta questão,  anoto para que seja objeto de reflexão. Pensando no interesse público, creio que devemos criar mecanismos para resolver melhor este problema e, para concluir, menciono o caso do concurso para gari no Estado do Rio de Janeiro, que foi realizado por vários mestres e doutores, assunto de um artigo específico que escrevi, mas que cito aqui en passant para indagar se alguém realmente acha que um pós-graduado estrito senso, por mais dedicado e necessitado de um emprego que seja, irá ser um bom gari por muito tempo.

Pensando no interesse público, temos que reconhecer que assim como limitamos o grau de conhecimento para baixo, em alguns casos teríamos que fazê-lo também na mão inversa, ou seja, para cima. Assunto polêmico, mais uma vez, eu sei, mas algo a ser feito em prol da evolução do serviço público e também para que os menos formados não recebam algo muito próximo da concorrência desleal, social e democraticamente falando. Ainda escreverei mais sobre isso, mas não poderia deixar de pontuar aqui a necessidade de reflexão sobre esse item.

Conclusão

Como disse ao início, não tive a pretensão de esgotar o assunto, mas de suscitar o debate. No meu site dedico uma boa parte ao aperfeiçoamento do serviço público, onde fico ao dispor para comentários, críticas, sugestões e contatos.

Desejo que possamos fazer do serviço público algo que faça jus aos merecimentos e necessidades do povo brasileiro.