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A arbitragem e a sua controversa vinculação aos precedentes do novo Código de Processo Civil

10 de setembro de 2018

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Uma das grandes inovações do novo Código de Processo Civil brasileiro, editado em 2015, é o sistema de precedentes judiciais, com eficácia vinculante a órgãos do Poder Judiciário, fundado no primado da segurança jurídica, valor fundamental do ordenamento jurídico (CF, art. 5o, caput) e da coerência do sistema judicial em relação aos seus destinatários, os jurisdicionados, como dispõe o seu art. 926: “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.

Nesse contexto, devem os juízes observar, de acordo com o art. 927 do Código de Processo Civil, determinados precedentes judiciais fixados em peculiares incidentes e recursos destinados à uniformização da jurisprudência, em âmbito nacional. E são vinculativas, segundo estabelece a norma, “I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante; III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados”. Essa vinculação deve ser prestigiada, inclusive, pelos integrantes das Cortes Superiores, em suas decisões monocráticas ou proferidas em órgãos fracionários, de hierarquia inferior àquele que estabeleceu o precedente ao qual a lei atribui efeitos vinculantes. Caso contrário, além de violar a segurança jurídica, princípio de cariz constitucional, se instalaria uma verdadeira anarquia judicial, que a nova lei processual pretendeu coibir.

Surgiu, assim, ampla discussão na doutrina brasileira se os precedentes judiciais acima mencio­nados vinculariam, também, a atividade do árbitro. Algumas premissas se põem para delimitar a controvérsia e defini-la. A primeira premissa é a de que as partes devem ter estabelecido, na cláusula compromissória arbitral, que a arbitragem será regida pelo Direito brasileiro; caso contrário, a lei processual civil não será aplicável tout court. A segunda premissa é no sentido de que o árbitro exerce poder jurisdicional, de acordo com a boa doutrina e nos termos do § 6o do art. 13, art. 14 e art. 18 da Lei de Arbitragem, que lhes atribui os mesmos deveres aplicáveis ao juiz. Ou seja, o árbitro, assim como o juiz, deve dizer o direito aplicável ao caso concreto e, no exercício de seu mister, pouco importa a forma de sua investidura, como juiz ou árbitro. O próprio diploma processual equiparou a atividade dos árbitros àquela dos juízes ao prever, no mesmo dispositivo, o poder-dever dos juízes de exercer a jurisdição e a possibilidade de as partes se valerem da arbitragem (art. 3o, caput, e § 1o). Já a Lei de Arbitragem, por sua vez, sujeita os árbitros, no exercício de sua função jurisdicional, a responder pela prática de tipos penais, afetos aos funcionários públicos (Lei no 9.307/96, art. 17).

Não é porque os árbitros exercem jurisdição, que estariam, necessariamente, atrelados aos precedentes judiciais vinculantes, pois não exercem o mesmo tipo de jurisdição estatal privativa dos juízes. Aos juízes cumpre observar o Código de Processo Civil como diploma legal que regula o processo estatal. Já a arbitragem tem seu rito processual regulado pelas partes, na convenção de arbitragem (art. 21, Lei 9.307/96), respeitados os princípios constitucionais, dentre os quais se destacam os da ampla defesa e do contraditório. E isso sem prejuízo de as partes estipularem, em conjunto com o(s) árbitro(s), negócios jurídicos processuais, como permite a lei, v.g., através da prática de atos negociais com a estipulação de regras procedimentais, direitos e obrigações no termo inicial da arbitragem ou em momento posterior (art. 19, § 1o, Lei 9.307/96). A liberdade das partes no processo arbitral é, então, maior do que aquela concedida pelo novo Código de Processo Civil, embora este admita, ainda que de forma mais limitada do que na arbitragem, a celebração de negócios jurídicos processuais pelas partes (CPC, art. 190).

Não se pode igualar o sistema de normas da arbitragem com o sistema processual civil, embora, por força da própria lei que a instituiu, a arbitragem encontre limites na sua aplicação. Além da necessidade de fundamentação adequada das decisões, prevista nos artigos 32, III, e 26, II, da Lei no 9.307/96, que é corolário de princípio constitucional da motivação das decisões judiciais (CF, art. 93, IX), a Lei de Arbitragem estabelece que a sentença arbitral deverá respeitar, como não poderia deixar de ser, determinados princípios constitucionais (art. 21, § 2o).

Mas, a despeito da diferença dos institutos, consistiria em manifesta patologia sistêmica admitir-se a possibilidade, de um lado, de o juiz em uma demanda judicial estar vinculado ao precedente e, de outro, o árbitro em processo arbitral não, com fundamento nos princípios da isonomia e da segurança jurídica. Sustentar o contrário seria admitir uma verdadeira cisão no Direito brasileiro, discrepante sobre temas idênticos de mérito, a depender de quem vai julgar o caso (um árbitro ou um juiz), o que acabaria por gerar indesejável insegurança e tornar o instituto da arbitragem desacreditado. Com base, pois, na prevalência do princípio da segurança jurídica e na integridade do sistema, deve-se concluir pela vinculação dos árbitros a todas as espécies de precedentes judiciais sobre temas de direito material, aos quais o legislador atribuiu eficácia vinculativa, tal como previsto no art. 927 do novo Código de Processo Civil, inclusive nos “acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconst­itucional; V – orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados”. Afinal, uma vez proferida decisão vinculante sobre tema de direito substantivo, esse comando passa a ter status normativo e gera para os jurisdicionados a expectativa de que o seu comando vai nortear a solução de litígios sobre o mesmo tema.

Não me parece, no entanto, que o princípio da isonomia seja fundamento suficiente para que todas as hipóteses de precedentes previstos no novo CPC sejam aplicáveis, in totum, aos procedimentos arbitrais, sem verificar a sua adequação à arbitragem, que, como se viu, possui normas procedimentais próprias e dispensa, inclusive, a aplicação da lei processual civil. Assim, decisões vinculantes relativas às normas adjetivas ou formais só poderão incidir em demandas submetidas ao Poder Judiciário e ao processo judicial, cujo rito não é compatível com a arbitragem e a liberdade de escolha dos litigantes em processo arbitral.

Caberá aos árbitros, por conseguinte, analisar cada hipótese de precedente de mérito vinculante, de forma a verificar sua aplicabilidade no caso concreto. Assim, por exemplo, não há dúvidas de que, sendo a arbitragem regida pelo Direito brasileiro, os árbitros não poderão, por exemplo, aplicar norma que tenha sido declarada inconstitucional, em ação direta de inconstitucionalidade julgada pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Afinal, essa norma deixa de ter validade no ordenamento jurídico após o pronunciamento de sua inconstitucionalidade, como salienta a doutrina especializada. Nesse contexto, a observância desse precedente não decorre, a rigor, do Código de Processo Civil, mas propriamente da inexistência da norma jurídica no ordenamento, diante da eficácia erga omnes da declaração de mérito de sua inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, como estabelece o art. 102, § 2o, da Constituição da República.

Em relação às súmulas vinculantes, são, de igual modo, de observância obrigatória pelos árbitros, já que são, por previsão constitucional (CF, art. 103-A), fonte de direito e são dotadas de eficácia contra todos. Não poderiam, pois, os árbitros desconsiderarem as súmulas vinculantes, ao proferirem decisões de mérito em arbitragem a ser resolvida pelo direito brasileiro, pois eles teriam o dever de observar essa fonte de direito, como parte integrante do ordenamento jurídico. Caberia aos árbitros, por conseguinte, verificar a sua incidência ao caso concreto, sob pena de suas decisões sujeitarem-se, inclusive, a impugnação, por meio de reclamação dirigida ao Supremo Tribunal Federal (CF, art. art. 102, I, “l”).

Com razão, afirma-se, por exemplo, que seria contraditório admitir que a Administração Pública – que pode, por força das Leis 8.987/95 e 13.129/2015, participar de arbitragens – se sujeitaria à eficácia da súmula vinculante, no âmbito do Poder Judiciário (art. 103-A), mas, em arbitragens, não, já que os árbitros não estariam obrigados a observar os seus enunciados. Esse entendimento levaria ao descrédito da arbitragem e à perda da confiança em sua utilização, o que seria negativo, por ser um mecanismo de uso corrente no ambiente empresarial, que, não por acaso, necessita de confiança para lhe conferir estabilidade.

Conclui-se, portanto, que os árbitros devem observar as decisões as quais o legislador atribui eficácia vinculante, tanto em sede de controle concentrado de constitucionalidade, como no caso de enunciado de súmula vinculante. Não com fundamento propriamente na lei processual, mas por força da necessidade de interpretar todo instituto jurídico conforme a Constituição. É que, perdoe-se o truísmo, a arbitragem não pode desprezar a incidência dos princípios constitucionais (Lei 9.307/96, art. 21), sob pena de afrontar a unidade do ordenamento jurídico, deixando-o à míngua de qualquer ordem e unidade, permeando-o de contradições e casuísmos, a dispersá-lo, na célebre expressão de Canaris, “numa multiplicidade de valores singulares desconexos”.

Notas _________________________

1 CRUZ E TUCCI, José Rogério.

2 FIORAVANTI, Marcos Serra Netto. A arbitragem e os precedentes judiciais: observância, respeito ou vinculação? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 115.

3 Idem, pp. 110/111.

4 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2008, p. 21.