As ações coletivas e o projeto da nova lei da ação civil pública (PL 5.139/2009)

28 de fevereiro de 2010

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1. O Poder Judiciário e o direito processual coletivo

O Poder Judiciário possui a função precípua de resolver as lides existentes na sociedade. Essa tarefa, por vezes, não é a das mais fáceis, tendo em vista não apenas a complexidade das causas, mas, principalmente, nos dias de hoje, a quantidade de processos[1] e a limitação dos recursos humanos e materiais disponíveis[2] para a pretendida tarefa judicante. O resultado é a piora da prestação jurisdicional, tanto sob o aspecto do tempo como da qualidade.

A perspectiva de incremento do acesso à Justiça e da existência de processos menos formalistas, mais simples, céleres e eficazes, pode-se dizer, está presente em todo o mundo.

O direito processual, assim, deve estar preparado para enfrentar uma realidade em que o contingente populacional mundial ultrapassa o patamar de seis bilhões de pessoas, no qual a revolução industrial transforma-se em tecnológica, diminuindo as distâncias no espaço e no tempo, propiciando a massificação e globalização das relações humanas e comerciais.

Na verdade, a necessidade de processos supraindividuais não é nova, pois há muito tempo ocorrem lesões a direitos, que atingem coletividades, grupos ou certa quantidade de indivíduos que poderiam fazer valer os seus direitos de modo coletivo. A diferença é que, na atualidade, tanto na esfera da vida pública como privada, as relações de massa expandem-se continuamente, bem como o alcance dos problemas correlatos, fruto do crescimento da produção, dos meios de comunicação e do consumo, do número de funcionários públicos e de trabalhadores, de aposentados e pensionistas, da abertura de capital das pessoas jurídicas e consequente aumento do número de acionistas e dos danos ambientais causados. Multiplicam-se, portanto, as lesões sofridas pelas pessoas, na qualidade de consumidores, contribuintes, aposentados, servidores públicos, trabalhadores, moradores etc., decorrentes de circunstâncias de fato ou relações jurídicas comuns.

2. As ações coletivas e o acesso à Justiça

Os danos resultantes das lesões supramencionadas são,  se considerados separadamente, em termos econômicos, de pequena monta, fazendo com que, na relação custo-benefício, o ajuizamento de ações individuais seja desestimulante e, na prática, quase que inexistente, demonstrando, assim, a fragilidade e as deficiências em relação ao acesso à Justiça. A eventual falta ou deficiência dos instrumentos processuais adequados para os chamados danos de “bagatela”, que, considerados globalmente, possuem geralmente enorme relevância social e econômica, estimula a repetição e perpetuação de práticas ilegais e lesivas. Por conseguinte, tendem a se beneficiar, em vez de serem devidamente sancionados, os fabricantes de produtos defeituosos de reduzido valor, os entes públicos que cobram tributos indevidos ou não concedem os direitos funcionais cabíveis e os fornecedores que realizam negócios abusivamente, apenas para citar alguns exemplos. De pouca ou nenhuma valia passam a ser as normas de direito material, que estabelecem direitos para os lesados, se a referida proteção não encontra, também, amparo efetivo nos meios processuais disponíveis.

3. As ações coletivas como instrumento para a economia judicial e processual

A questão não deixa de ser, também, lógica, pois, a priori, os conflitos eminentemente singulares devem ser resolvidos individualmente, enquanto os litígios de natureza essencial ou acidentalmente coletiva precisam contar com a possibilidade de solução metaindividual. A inexistência ou o funcionamento deficiente do processo coletivo dentro do ordenamento jurídico, nos dias de hoje, dá causa à multiplicação desnecessária do número de ações distribuídas, agravando ainda mais a sobrecarga do Poder Judiciário. Na verdade, são lides que guardam enorme semelhança, pois decorrem de questão comum de fato ou de direito, passando a ser decididas de modo mecânico pelos juízes, através do que se convencionou chamar de sentenças-padrão ou repetitivas, vulgarizando-se a nobre função de julgar. É o que vem ocorrendo, v.g., na Justiça Federal brasileira. A atividade judicial descaracteriza-se, com essa prática, por completo, passando a ser exercida e vista como mera repetição burocrática, desprovida de significado e importância.

4. As decisões contraditórias proferidas em processos individuais e as ações coletivas: o princípio da igualdade diante da lei e a (falta de) segurança jurídica

Com a multiplicação de ações individuais, que tramitam perante diversos órgãos judiciais, por vezes espalhados por todo o território nacional, e diante da ausência, nos países da civil law, do sistema vinculativo de precedentes (stare decisis), os juízes chegam, com frequência, a conclusões e decisões até mesmo antagônicas. Não raramente essas decisões de variado teor acabam por transitar em julgado, diante da não-interposição tempestiva de recurso cabível ou pelo não-conhecimento deste em razão de outra causa de inadmissibilidade.

Por conseguinte, pessoas em situações fáticas absolutamente idênticas, sob o ponto de vista do direito material, recebem tratamento diferenciado diante da lei, decorrente tão somente da relação processual. O direito processual passa a ter, assim, caráter determinante e não apenas instrumental. E, sob o prisma do direito substancial, a desigualdade diante da lei torna-se fato rotineiro e não apenas esporádico, consubstanciando, portanto, ameaça ao princípio da isonomia.

5. O projeto da nova Lei da Ação Civil Pública

No ano de 2008, o Ministro da Justiça, Tarso Genro, nomeia, nos termos da Portaria 2.481, Comissão Especial, composta por juristas, especialistas, membros da Magistratura, do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Advocacia, com o objetivo de analisar e elaborar propostas de aprimoramento e modernização da legislação material e processual que tratem dos direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos, para subsidiar o Ministério da Justiça e órgãos do Governo Federal, contemplando os anteprojetos de Código Brasileiro de Processos Coletivos, Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América e outras proposições em debate no meio acadêmico e profissional.[3]

Depois de inúmeras reuniões, encontros e audiências públicas, a Comissão Especial concluiu, em fevereiro de 2009, o texto do Anteprojeto da nova Lei da Ação Civil Pública, com o escopo de transformá-la, na verdade, em Lei Geral dos Processos Coletivos, sendo o instrumento central de um Sistema Único de Ações Coletivas, com a proposta de revogação da Lei 7.347/85 e de todas as demais normas pertinentes aos processos coletivos contidas no Código de Defesa do Consumidor e nas demais leis específicas. Remetido ao Presidente da República, com algumas alterações, o anteprojeto foi incorporado ao II Pacto Republicano por um sistema de Justiça mais acessível, ágil e eficiente, celebrado pelos chefes dos Três Poderes, e encaminhado ao Congresso Nacional,[4] em abril de 2009.

O projeto de nova Lei da Ação Civil Pública incorporou inúmeras proposições dos dois anteprojetos de Código Brasileiro de Processos Coletivos anteriormente formulados, aprimorando institutos e acrescentando outros, representando, nos termos do anteprojeto elaborado no Ministério da Justiça e do substitutivo apresentado, uma proposta extremamente criativa e positiva. Possui, como principais pontos de inovação, a previsão de um rol mais amplo, embora exemplificativo, de bens jurídicos que podem ser objeto de proteção; uma definição mais precisa para os direitos individuais homogêneos; o estabelecimento de princípios pertinentes ao processo civil coletivo; o aprimoramento das regras pertinentes à competência; a indicação mais detalhada e expressa dos legitimados; a criação dos Cadastros Nacionais de Processos Coletivos, sob a responsabilidade do Conselho Nacional de Justiça, e de Inquéritos Civis e Compromissos de Ajustamento de Conduta, no âmbito do Conselho Nacional do Ministério Público; a positivação da distribuição dinâmica do ônus da prova pelo juiz; a derrogação da limitação territorial para a coisa julgada; a determinação de especialização de órgãos judiciais e de prioridade legal para os processos coletivos; o fortalecimento da coisa julgada pro et contra nas questões de direito; o incremento da eficiência das ações coletivas, com a suspensão cogente dos processos individuais pertinentes; um programa extrajudicial de prevenção ou reparação de danos, que poderá existir antes ou no curso do processo coletivo; a flexibilização de normas procedimentais; e, o aperfeiçoamento da liquidação e execução, que devem ser preferencialmente coletivas.


[1] “A simples enumeração de alguns dados é suficiente para atestar o problema no Brasil. O Supremo Tribunal Federal recebeu, no ano de 1970, 6.367 processos; em 1980, foram 9.555; dez anos depois, 18.564; no ano de 2000 o número atingiu o montante de 105.307 processos recebidos; e, em 2007, 119.324 feitos. Cabe lembrar que o STF, na essência, é a Corte Constitucional brasileira composta de apenas 11 ministros. Órgãos semelhantes, no cenário internacional, apresentam realidade completamente diversa. A Suprema Corte americana recebeu, em 1945, 1.460 casos; em 1960, foram 2.313; e, nos últimos anos, aproximadamente, 9.200 petições por ano, das quais cerca de apenas 100 são julgadas em plenário com sustentação oral. Em Portugal, entraram no Tribunal Constitucional 571 processos em 1994; 778 no ano 2000; e, 1.133, em 2006. No Superior Tribunal de Justiça brasileiro, nos anos de 1989 e 1990, foram distribuídos, respectivamente, 6.103 e 14.087 processos. Em 1994, o número subiu para 38.670; em 1998, alcançou a quantidade de 92.107 feitos, e, em 2007, 313.364 processos distribuídos. No Tribunal Superior do Trabalho, por sua vez, foram autuados, nos anos de 1990, 1994, 1998 e 2007, pela ordem, 20.276, 65.792, 131.413 e 145.053 processos. Na 1a instância da Justiça Estadual, Federal e do Trabalho entraram, nos anos de 1990, 1994, 1998 e 2007, ao todo, 5.117.059, 5.147.652 10.201.289 e 19.274.760 processos, respectivamente. Todavia, o crescimento não foi uniforme nos três ramos. Entre 1990 e 1998, o número de processos distribuídos aumentou em 56,8% na Justiça do Trabalho, 106,4% na do Estado e 206,4% na Federal” (Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, “Problemas e reforma do Poder Judiciário no Brasil”, com dados atualizados).

[2] A Alemanha é o país com melhor relação entre número de juízes por habitante (um para cada 4.100 habitantes, levando-se em conta a existência de uma população de 82 milhões de pessoas e 20 mil juízes, segundo “Perfil da Alemanha”, pp. 15 e 198).

[3] A Comissão Especial foi composta pelos seguintes membros: Rogério Favreto, Secretário da Reforma do Judiciário; Luiz Manoel Gomes Jr.; Ada Pellegrini Grinover; Alexandre Lipp João; Aluisio Gonçalves de Castro Mendes; André da Silva Ordacgy; Anizio Pires Gavião Filho; Antonio Augusto de Aras; Antonio Carlos Oliveira Gidi; Athos Gusmão Carneiro; Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida; Elton Venturi; Fernando da Fonseca Gajardoni; Gregório Assagra de Almeida; Haman Tabosa de Moraes e Córdova; João Ricardo dos Santos Costa; José Adonis Callou de Araújo Sá; José Augusto Garcia de Souza; Luiz Philippe Vieira de Mello Filho; Luiz Rodrigues Wambier; Petrônio Calmon Filho; Ricardo de Barros Leonel; Ricardo Pippi Schmidt e Sérgio Cruz Arenhart; além de representantes da Casa Civil da Presidência da República, da Advocacia Geral da União, do Ministério da Fazenda e das Secretarias de Assuntos Legislativos, Direito Econômico e Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça. Foi escolhida, ainda, uma Comissão de Sistematização, composta por Ada Pellegrini Grinover, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, Elton Venturi e Luiz Manoel Gomes Jr.

[4] Na Câmara dos Deputados, foi registrado como Projeto de Lei 5.139/2009, sendo encaminhado para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, com tramitação conclusiva e relatoria do Deputado Antonio Carlos Biscaia. Em 18 de junho de 2009, foi realizada audiência pública com a participação de Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, Juiz Federal da 2ª Região; Ricardo de Barros Leonel, Promotor Público do Estado de São Paulo; José Augusto Garcia de Souza, Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro; Luiz Manoel Gomes Jr., Consultor do Ministério da Justiça; Ada Pellegrini Grinover, jurista; Elton Venturi, Procurador da República no Paraná; Otávio Brito Lopes, Procurador-Geral do Trabalho; Rodrigo Dias, Assessor Jurídico da Confederação Nacional dos Municípios; Christina Aires Correa Lima, advogada da Confederação Nacional da Indústria; e Mauro de Azevedo Menezes, da Ordem dos Advogados do Brasil.