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AS CICATRIZES ORGULHOSAS DO DEVER CUMPRIDO

5 de janeiro de 2003

Presidente do Conselho Editorial e Consultor da Presidência da CNC

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Discurso de despedida de Bernardo Cabral do Senado da República

Recordo a época em que cheguei ao Parlamento, nos idos de 1967, mal saído da casa dos 30 anos de idade, onde, na Câmara dos Deputados, ao meio de tantas figuras notáveis, fui escolhido vice-líder da Oposição, então comandada pelo modelo de homem público do saudoso Mário Covas, cujo nome a classe política até hoje soletra com respeito.

Da postulação altiva dessa oposição política na Câmara dos Deputados, em aditamento à ação que já vinha contrariando muitos interesses, tantos Parlamentares, dentre os quais eu próprio, tivemos os nossos mandatos eletivos cassados e suspensos os nossos direitos políticos por dez anos, além de outras punições ditadas pelo famigerado Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. No entanto, não se conhece ninguém que tenha sido acusado, em algum tempo, acusado por venerar a sua pátria. Não há ira de injustos indentificável com a glória. Os pósteros se afirmam na serena sublimação de seus éditos morais. O veredicto que louva ou condena qualquer individualidade humana se arrima nos lastros das provas irrecusáveis, e essas jamais foram exibidas. Tal perseguição motivou a diáspora que se abateu sobre tantos Colegas, alguns partindo para o exterior, outros ficando confinados aqui mesmo, no seu torrão natal. Espécie de párias, sem documento de identidade, sem título de eleitor, sem permissão para abrir conta nos bancos oficiais, proibidos de fazer concurso público ou exercer qualquer função pública. Diáspora essa que, muitos anos depois, cedeu lugar ao reencontro, e o palco foi a Assembléia Nacional Constituinte, que, por ser dos tempos atuais, dispenso-me de sobre ela tecer comentários.

Hoje, no nosso País, o grande tema, o mais momentoso é o da fome. Não sei em que razões se inspiraram os Chefes de Estado de algumas falsas democracias quando permitem, por omissão, a morte de milhares de crianças. Se não há pelotões de fuzilamento, a fome se encarrega de destruir essa preciosa reserva humana. Note-se a respeito a dolorosa aliança de poder com essa mesma fome, pois, por não querer combatê-la, revela-se o seu fiador abrindo brechas no âmbito de uma civilização. Os túmulos de meninos assassinados pela fome são sepulturas sem inscrição.

Os que, todavia, registramos essas clamorosa sucessão de tragédias, não relutamos em comprovar o pavor que parece anônimo. São meninos que não escaparam aos golpes da injustiça social, encerrados, por fim, no sepulcro do esquecimento. A pergunta paira no ar: por que essa humanidade de calças curtas e desprovidas da fortuna está proibida de viver? Há alguma lei despótica, por certo, impedindo o exercício de um sagrado direito.

Tal dispositivo evidentemente exclui-se das cartas constitucionais, mas preside e demanda o espírito de cegos governantes, ou seria simples lugar-comum afirmar-se que as crianças, por lei inalistáveis, caem em desprezo diante dos que promovem os festins palacianos? De outra parte, seria válido o conceito de que nação adulta é nação sem infância?

Por igual, é lícito afirmar que a culpa não cabe só aos governos, mas também a nós como parcela da humanidade, pois, quando se fala desses meninos famintos, desses meninos que a fome não mata, e os que não morrem integram a faixa proletária, sendo praticamente todos seduzidos pelo fantasma do delito, é de se indagar: o que faz o Estado ? Despreza-os e deles se lembra apenas na hora de os fazer recolher ao cárcere, antônimo filosófico da universidade.

Ao Governo que se instala no dia 1º de janeiro de 2003, deixo essas reflexões.

Permitam-me falar agora um pouco sobre a Reforma do Judiciário. Permitam-me, porque seria desconcertante não fazê-lo, que dê uma ligeira palavra sobre a Reforma do Judiciário, cujo texto se encontra neste Plenário para votação em primeiro turno e que, talvez, não seja o ideal, mas o possível no momento atual, a partir dos quadros políticos institucionais.

O balanço que faço é de um texto que contenha instrumentos efetivos e imediatos de solução para a grande maioria dos problemas do Poder Judiciário, a permitir que novas frestas de luz iluminem os operadores do Direito e seus doutrinadores na busca de soluções modernas, a partir de premissas novas, com o abandono de vários dogmas já sepultados pela atual prática do Direito.

Teses, princípios e soluções incontestáveis há alguns anos devem ser relidos com urgência, atualizados ou abandonados, para não persistirmos na utopia do acesso ao

Judiciário apenas como prescrição constitucional, e que, como princípio fundamental, não sobrevive fora das condições ideais de temperatura e pressão dos mais ricos escritórios e gabinetes do País.

Os operadores do Direito verão que um Judiciário ágil, eficiente, desburocratizado e efetivo é útil tanto para o jurisdicionado quanto para cada um dos setores que atuam nessa área direta ou indiretamente.

Isso tudo me leva a crer que nesta Reforma do Judiciário, insultado, ofendido, noites em claro, fins de semana desperdiçados, férias não gozadas, talvez eu tenha feito uma ingrata peregrinação, espécie de romeiro desapontado, pois acabou ficando às claras, com as engenhosas manobras regimentais, para dizer o mínimo, que, ao invés de se elevar o percentual do debate de forma racional se fez o pior: ficou reduzida a zero a taxa de responsabilidade na discussão das profundas e preocupantes questões que afligem o Judiciário.

Fecho parênteses,  e o faço porque este é um momento de despedida. É hora de concluir e, ao fazê-lo, verifico que o horizonte da minha vida vai-se aproximando cada vez mais, alcançando, no dizer do filósofo, “a decrepitude do corpo, que conserva o desejo, mas perde a esperança”. É hora, pois de jogar fora as eventuais mágoas, se é que elas existem, e cultivar apenas as boas lembranças.

Quero despedir-me de todos: do Senador governista, aquele que apóia o Governo, e do oposicionista, sem levar em conta qualquer excesso nas suas críticas aos funcionários. Quero despedir-me, portanto, daquele que é mais graduado ao mais humilde, da Consultoria Legislativa e, sobretudo, dos leais companheiros do meu gabinete de apoio.

Concedam-me, ainda, a benevolência de ressaltar que, sendo um homem sem ganâncias materiais, mas ricamente provido de valores morais e espirituais, jamais me submeti a pressões de interesses particulares contrariados, nem a pressões de grupos insensíveis ao interesse público. Não saio, portanto, da política como pioneiro do nada ou como desbravador do inútil, uma vez que, no exercício do meu mandato de Senador, nunca utilizei o aval da omissão ou concedi a cautela do meu silêncio, pois os que assim pensam e procedem sentirão um dia que a omissão e o silêncio foram gestos de covardia e não merecerão o respeito dos seus semelhantes ou a compreensão dos seus pósteros, acabando por serem levados ao cadafalso da opinião pública. Também não me viram os meus ilustres colegas senadores, em nenhum instante, participar como conviva do banquete da calúnia, injúria ou difamação, recursos que jamais substituirão os argumentos.

Quando, ao início destas minhas palavras, ressaltava ser este um discurso de despedida, sabia por antecipação que, ao final, teria que pedir desculpas pelo tempo que a todos fiz perder e, por igual, registrar agradecimentos pela deferência da homenagem de aqui permanecerem e, quem sabe, pelo privilégio de alguns apartes – já vejo microfones levantados -, circunstâncias que ampliam o quanto me valeu o aprendizado ao longo desses oitos anos na companhia de V.Exªs.

Quero dirigir, ao acercar-me do ponto final, uma palavra de profundo agradecimento ao meu Estado, ao eleitor amazonense que me levou, pela sua generosidade e pelo voto, à mais alta tribuna política do País, o Senado Federal, e dele me fez mandatário orgulhoso.

Por derradeiro, sinto na pele o que me ensinava o meu velho pai: “Feliz do homem público que carrega consigo as cicatrizes orgulhosas do dever cumprido”.

O Senador Edison Lobão acabou de fazer duas referências que seriam os pontos fulcrais deste meu agradecimento. A primeira diz respeito ao depoimento do Senador Gilberto Mestrinho, que, ao longo de mais de 40 anos, fez questão de enfatizar a minha seriedade e a minha honestidade, o que é muito importante tendo em vista que S.Exª foi Deputado Federal, três vezes Governador do meu Estado e, agora, é Senador da República.

No que tange à segunda referência, eu diria que as lágrimas que tentaram bailar nos olhos do Senador Antonio Carlos Magalhães Júnior demonstram que entre mim e S.Exª está plantada uma amizade que será suficientemente forte para vencer o tempo, a distância e o silêncio. Jamais imaginei, quando vim para cá, que pudesse ter a imensa alegria, não desta consagração, mas do momento que vivo e de que partilham alguns amigos, um dos quais está ali na tribuna de honra. Quando, cassado, eu estava no Rio de Janeiro, esse amigo advogava com raro brilho e hoje continua a fazê-lo no meu Estado. Foi uma surpresa muito agradável revê-lo. Quero deixar registrada nos Anais do Senado Federal a presença do Dr. Paulo Figueiredo, pela sua independência e amor ao Amazonas.

Senador Ramez Tebet, V.Exª me proporcionou nesta tarde, depois do que fez o Senador Edison Lobão, a forma pela qual eu ficaria mais alguns minutos na tribuna. Penso que esse seja um recorde, porque já são 18 horas e 4 minutos e nenhuma vez o orador foi alertado para que daqui saísse.

Talvez isso demonstre o comportamento de quem sabe que o homem público tem dois instantes: o de seu prestígio pessoal, que se acaba quando ele larga o cargo – seja Governador, seja Presidente da República, seja Senador, seja Deputado Federal -, e o do conceito, que é muito mais valioso. Tal conceito, a meu ver, está aqui espraiado nesta tarde. Foi homenageado não o Senador que sai, mas o conceito que ele plantou ao longo da sua vida inteira. Isso, Senador Ramez Tebet, para um homem público é a coisa mais importante que pode existir. Hoje houve dois momentos profundamente tocantes: as lágrimas do Senador Antonio Carlos Magalhães Júnior e o beijo da Senadora Heloisa Helena, que fez questão de vir à tribuna dar-me um beijo porque, como disse, a emoção não lhe permitia me apartear.

Isso em uma Casa em que existem várias correntes políticas, lideranças da Oposição e do Governo, em que existem pessoas que pensam de forma diferente é um grande alento para alguém que sai, conforme as palavras de meu velho pai, com as cicatrizes orgulhosas do dever cumprido.

Se tivesse obtido outro mandato, talvez não estivesse hoje tão certo dessa minha íntima alegria pelo que ouvi, pelo o que a minha mulher deve ter ouvido, pelas palavras a ela dirigidas. Zuleide e eu estamos gratos ao Senado, por ter permitido que alguém vindo das barrancas do Amazonas, que saiu da casa do lado de lá, (a Câmara dos Deputados) e teve a sua igarité tangida para o sul do país pelos vendavais dos éditos de exceção, no caso o Ato Institucional nº 05. Jamais poderia imaginar tudo isso. Fui confinado no Rio de Janeiro, pois o Estatuto do Cassado não me permitia que de lá saísse e de lá fiz a minha segunda terra. Lá convivi com Roberto Saturnino, que começou a abertura desses apartes e com o então Paulo, que hoje é Artur da Távola, todos nós cassados, afastados da vida pública. Esse reencontro, depois da diáspora havida, para mim, é o maior galardão! Tenho a certeza de que alguns homens públicos saem da política pela porta dos fundos; outros, por onde entraram: pela porta da frente, de cabeça erguida. É o que sinto. Plantei aqui amizades. Ouvi o que disse o Senador José Alencar, que, a partir do dia 1º de janeiro, ocupará o cargo de Vice-Presidente da República. Senti suas entrelinhas. Saio daqui plenamente recompensado por saber que ficaram as palavras ditas no passado quando S.Exª estava na Federação, e eu chegava a Belo Horizonte. Emocionara-me também o aparte, de pé, do nosso amigo Lindberg Cury e as palavras do Senador Carlos Wilson, amigo da vida inteira, amizade que vem do seu pai, amizade que nos unia ao velho Ulysses Guimarães.

O que eu poderia imaginar mais nesta tarde, depois de ter ouvido o Líder do meu Partido fazer aqui aquela declamação? Nada mais! Não há por que alguém cultivar mágoas. O passado, como diria Churchill deve ser enterrado.

Nesta tarde, entretanto, saio daqui com uma leve frustração, pois o Senador Osmar Dias tinha sido o primeiro a me pedir o aparte e, quando pude concedê-lo, S.Exª já não estava no plenário. Vejo-o agora, na sua cadeira, e incorporo o seu silêncio como um dos melhores apartes que eu poderia ter recebido, porque, como Vice- Presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania foi um amigo de toda lealdade.

Senador Ramez Tebet, V.Exª está a encerrar este período da sua presidência. Prazo aos céus que o Senado Federal possa viver, no próximo ano e a partir dele, momentos de muita cordialidade. O País vai precisar – tomem nota disso – de muito acordo, de muita transigência, de muita colaboração. O fosso que ainda pode haver entre o povo e a Nação tem que ser superado. Não devemos criar esperanças que sejam apenas frágeis aspirações em trânsito para o desencanto. Que tais esperanças possam ser concretizadas.

Saio da tribuna certo de que, onde estiver, não perco o ideal pelo lado público. Sair da vida política não implica sair da vida pública. Em algum instante poderei dizer aos meus netos que uma das coisas que mais me honraram na vida foi ter convivido com oitenta senadores que, ao final do meu mandato, me prestigiaram desta forma. Só cabem duas palavrinhas: muito obrigado.