As Forças Armadas na segurança pública e os reflexos nos crimes de desacato

23 de junho de 2013

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Muito se discute sobre a presença das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, em especial na segurança pública, se factível e até mesmo legal.

A experiência exitosa em recentes episódios de pacificação de áreas antes dominadas por quadrilhas de narcotraficantes, desafiando os mais céticos, levou à conclusão de que, em muitos casos, com a devida cautela, cabe sim às Forças Armadas esse papel de garantia da ordem pública.

Não se vislumbrou, nesses casos, a necessidade de intervenção da União, quando verificado que os órgãos estaduais responsáveis por tais atividades encontravam-se em posição inferiorizada à frente daqueles que se destacam por desrespeitar a ordem institucional, buscando implantar o caos e a desordem pública.

A alegação de ser inconstitucional ou ilegal o uso das Forças Armadas em ação de segurança pública, sob o argumento da ausência de função de natureza tipicamente militar ou do devido preparo da tropa para tais ações, vem aos poucos sendo superada.

Convém destacar que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 inaugurou um novo conceito de segurança pública – o conceito da responsabilidade solidária de segurança pública – ao estabelecer que aquela representa dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, como instrumento de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (art. 144, caput).

A segurança, de uma maneira geral, é um bem por excelência democrático, legitimamente desejado por todos os setores sociais e constitui-se em direito fundamental da cidadania, obrigação constitucional do Estado e responsa­bilidade de cada um de nós. Daí a necessidade de se deter­minar, no tocante ao texto previsto no art. 144 da CRFB/88, o ônus e os limites da obrigação estatal nas políticas de segurança pública; os contornos da responsabilidade da sociedade e o alcance da palavra “todos”.

Diante daquele preceito constitucional, é inevitável inferir que o rol dos órgãos precipuamente incumbidos da segurança pública (polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis, polícias militares e corpos de bombeiros militares) não é taxativo, uma vez que a responsabilidade pela segurança foi constitucionalmente difundida por todos os segmentos da sociedade. Por isso, não se deve confundir segurança pública com instituições policiais. O texto constitucional fomenta a atividade daqueles órgãos, mas não exclui a responsabilidade de todos os setores da sociedade e dos poderes constituídos.

Tanto é assim que qualquer do povo pode prender o agente que se encontra em flagrante delito, como prevê o art. 301 do Código de Processo Penal, cuja disposição foi repetida pelo art. 243 do Código de Processo Penal Militar.1

Da mesma forma, o Decreto nº 5.289, de 29 de novembro de 2004, disciplina a organização e o funcionamento da Força Nacional de Segurança Pública, órgão estranho àqueles relacionados no art. 144 da Constituição da República, mas que desempenha atividades destinadas à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (art. 2º). A Força Nacional de Segurança Pública materializa o princípio da solidariedade federativa, insculpido no art. 241 da Constituição da República, que também orienta o desenvolvimento das atividades do sistema único de segurança pública2.

No tocante às Forças Armadas, embora incumbidas precipuamente da defesa da Pátria (segurança externa), residualmente incumbe-lhes a responsabilidade solidária de zelar pela ordem pública (segurança interna). Nesse sentido são as disposições do art. 142, caput, da Constituição da República, que trata da missão constitucional das Forças Armadas.3

É evidente que o emprego das Forças Armadas nas atividades de segurança pública deve se restringir às circunstâncias episódicas, por tempo certo, e incidir somente sobre região previamente estabelecida, sob pena de afastá-las de sua missão precípua – a segurança externa. E o emprego das Forças Armadas, nesses moldes, longe de configurar intervenção nos entes da federação, representa o cumprimento da parcela de responsabilidade da União em prol da segurança interna.

Assim, se, por um lado, o papel preponderante das Forças Armadas está voltado para as situações que ensejam o estado de exceção (estado de defesa e estado de sítio) e da intervenção federal, de outro, assim como todos os órgãos estatais e segmentos sociais, as Forças Armadas também são partícipes do dever de prover segurança pública mediante acordo de cooperação entre a União e o Estado diretamente interessado, com fundamento no mencionado princípio da solidariedade federativa (art. 241 da Constituição da República).

Tal acordo é viabilizado por meio das disposições constantes do art. 15 da Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999 (normas gerais referentes ao emprego das Forças Armadas), que, visando disciplinar a determinação contida no § 1º do art. 142 da CRFB/88, assim estabeleceu:

Art. 15. O emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da República, que determinará ao Ministro de Estado da Defesa a ativação de órgãos operacionais, observada a seguinte forma de subordinação:
(…)
§ 2º A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal.
§ 3º Consideram-se esgotados os instrumentos relacionados no art. 144 da Constituição Federal quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desem­penho regular de sua missão constitucional.
§ 4º Na hipótese de emprego nas condições previstas no § 3º deste artigo, após mensagem do Presidente da República, serão ativados os órgãos operacionais das Forças Armadas, que desenvolverão, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, as ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado das operações na garantia da lei e da ordem. (Acrescentado pela LC-000.117-2004)
§ 5º Determinado o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, caberá à autoridade competente, mediante ato formal, transferir o controle operacional dos órgãos de segurança pública necessários ao desenvolvimento das ações para a autoridade encarregada das operações, a qual deverá constituir um centro de coordenação de operações, composto por representantes dos órgãos públicos sob seu controle operacional ou com interesses afins. (Acrescentado pela LC-000.117-2004)
§ 6º Considera-se controle operacional, para fins de aplicação desta Lei Complementar, o poder conferido à autoridade encarregada das operações, para atribuir e coordenar missões ou tarefas específicas a serem desempenhadas por efetivos dos órgãos de segurança pública, obedecidas as suas competências constitucionais ou legais. (Acrescentado pela LC-000.117-2004)
§ 7º A atuação do militar nos casos previstos nos arts. 13, 14, 15, 16-A, nos incisos IV e V do art. 17, no inciso III do art. 17-A, nos incisos VI e VII do art. 18, nas atividades de defesa civil a que se refere o art. 16 desta Lei Complementar e no inciso XIV do art. 23 da Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), é considerada atividade militar para os fins do art. 124 da Constituição Federal. (Grifo nosso)

A Lei Complementar nº 97/99, portanto, além de disciplinar os procedimentos para o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, estabelece que nessa situação a atuação dos militares é considerada atividade militar para os efeitos do Código Penal Militar.

Exemplo de que tal ação é factível e pode ser instrumen­talizada se verifica na Diretriz Ministerial nº 15/2010, do Ministério da Defesa, onde foi firmado o Acordo para o Emprego da Força de Pacificação na Cidade do Rio de Janeiro, e se estabeleceram Regras de Engajamento para aquela operação da Força de Pacificação no Rio de Janeiro.

Importante destacar que as operações militares no Rio de Janeiro foram decorrentes de acordo entre os entes envolvidos – União e Estado do Rio de Janeiro – com fundamento no princípio da solidariedade federativa, insculpido no artigo 241 da Constituição da República.

Por todas essas razões, o emprego das Forças Armadas nas circunstâncias verificadas no Rio de Janeiro prescinde da decretação de intervenção federal, uma vez que não afastou a autonomia do Estado e, consequentemente, não representa afronta à Constituição da República.

De outro lado, a previsão contida no § 7º transcrito revela o caráter militar das atividades das Forças Armadas voltadas para a garantia da ordem pública, remetendo para a competência da Justiça Militar da União a análise dos fatos relacionadas àquelas situações.

Tal remessa decorre do disposto no Código Penal Militar que, por meio de seu art. 9º, trata das situações que se inserem na esfera de competência da Justiça Militar. Nele, destaca-se o contido na alínea “d” de seu inciso III.4

No mesmo diapasão, esse imperativo legal de aplicação do Código Penal Militar afeta a todos que venham a cometer crime contra militares em atividade de segurança pública. Assim, a condição de civil do Acusado não afasta a competência da Justiça Militar da União para o feito. Entretanto, isso não implica afastar a aplicação da Lei nº 9.099/95, ainda que haja vedação de seus institutos aos crimes militares.

A transação penal e o sursis processual são institutos despenalizadores inseridos no ordenamento jurídico bra­­si­leiro por meio da Lei nº 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Criminais no âmbito dos Estados, em cumprimento à determinação constante do art. 98 da Constituição da República.

A transação penal, em linhas gerais, consiste na proposta por parte do Ministério Público de uma pena não privativa de liberdade ao agente indicado como suposto autor de infração penal de menor potencial ofensivo, assim considerada aquela cuja pena máxima não exceda a 2 (dois) anos (art. 61 da Lei nº 9.099/95). Se aceita pelo suposto autor do fato, a transação é homologada pelo juiz e o processo penal não é deflagrado (art. 76 da Lei nº 9.099/95).

O sursis processual, também de iniciativa do Ministério Público, consiste na proposta de suspensão condicional do processo ao acusado da prática de crime cuja pena mínima não exceda a 1 (um) ano. A proposta é feita por ocasião do oferecimento da denúncia, a teor do que dispõe o art. 89 da referida lei. Se aceita pelo acusado, o processo é suspenso por 2 (dois) a 4 (quatro) anos e, após o cumprimento das condições, é declarada a extinção da punibilidade do agente (art. 89 da Lei nº 9.099/95).

A despeito da existência de entendimentos acerca da possibilidade de concessão daqueles benefícios pelo juiz, de ofício ou mediante provocação do interessado, prevalece o entendimento segundo o qual a proposta deve ser de iniciativa do Ministério Público, como titular da ação penal.

Interessante, nesse sentido, é a posição do Supremo Tribunal Federal que, ao tratar da proposta de sursis processual, sedimentou que incumbe ao Ministério Público a palavra final sobre o assunto, mesmo quando o magistrado discorda de seu posicionamento. É o que se depreende do enunciado da Súmula nº 696.5

No âmbito do Superior Tribunal Militar, vem prevalecendo o entendimento contrário à adoção dos dispositivos da Lei nº 9.099/95 aos crimes militares, muito embora o Supremo Tribunal Federal, antes da publicação da Lei nº 9.839/99, reconhecesse a possibilidade de incidência daqueles institutos despenalizadores nos feitos da Justiça Militar, inclusive abrangendo os crimes propriamente militares.

A posição do Superior Tribunal Militar ganhou força a partir da publicação da Lei nº 9.389/99, que acrescentou o artigo 90-A à Lei nº 9.099/95, determinando a vedação da incidência desta Lei aos crimes militares, nos seguintes termos: “as disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar”.

Como o mencionado art. 90-A não excepciona o crime militar praticado por civis, o Superior Tribunal Militar firmou o posicionamento segundo o qual aquela determinação legal obsta, de forma genérica, a aplicação dos institutos da transação penal e do sursis processual no âmbito da Justiça Militar da União, independentemente da situação jurídica do agente (militar ou civil) e da natureza do crime praticado (propriamente militar ou impropriamente militar).

O fundamento constante das decisões do STM reside na especificidade da natureza dos bens jurídicos tutelados na órbita penal militar, em especial a hierarquia e a disciplina, incompatíveis com os referidos institutos despenalizadores. É o que se depreende dos julgados da Corte Militar.7

A questão, até então adormecida, volta à discussão no âmbito do Supremo Tribunal Federal. É o que se observa do registro que ficou consignado incidentalmente nos autos do HC nº 99.743/RJ, (Relator Min. Marco Aurélio). De acordo com a declaração obiter dictum dos Ministros Luiz Fux, Ayres Britto e Celso de Mello, foi reconhecida a “inconstitucionalidade da norma que veda a aplicação da Lei nº 9.099 ao civil processado por crime militar”.

É certo que aquela vedação legal está em consonância com as peculiaridades da vida na caserna, pois não é possível vislumbrar uma transação penal ou outra proposta tendente a mitigar os princípios norteadores das atividades militares – hierarquia e disciplina. No entanto, é necessário discutir a razoabilidade do afastamento da incidência daqueles benefícios legais dos civis, uma vez que estes não se subordinam às exigências que a condição de militar impõe. Sua situação jurídica é diferente!

A isonomia está presente de forma reiterada em nosso texto constitucional. Como princípio norteador da atividade legislativa, ela obriga o legislador à elaboração de normas iguais para as pessoas que se encontram na mesma situação jurídica.

Interessante, nesse sentido, as lições de CANOTILHO (in Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra Editora, Coimbra, 1982, p. 382), destacando o seguinte:

(…) quando não houver motivo racional evidente, resultante de natureza das coisas, para desigual regulação de situações de fato iguais ou igual regulação de situações de fato desiguais, pode considerar-se uma lei, que estabelece essa regulação, como arbitrária.

Com efeito, na hipótese em que um civil pratica desacato contra um militar das Forças Armadas que exerce atividade voltada para a garantia da ordem pública, deveria ser conferido àquele civil o mesmo tratamento que teria na hipótese de ter dirigido suas ações contra um policial civil ou federal, sob pena de lesão ao princípio da isonomia.

Mas não é isso que vem ocorrendo, em razão da restrição genérica imposta pelo art. 90-A da Lei nº 9.099/95 e acatada pelo Superior Tribunal Militar. Tratar genericamente de situações que demandam tratamento individualizado caracteriza inequívoca ofensa ao princípio da isonomia, com reflexos diretos e significativos sobre a almejada proporcionalidade.

Exemplificando: se em determinada operação conjunta, realizada no Complexo do Alemão, estivessem presentes um militar do Exército, o Secretário de Segurança Pública e o Chefe de Polícia Civil, e um civil resolvesse, deliberadamente, desacatar somente aquelas autoridades civis do Estado do Rio de janeiro, seria lavrado um termo circunstanciado pelo crime previsto no art. 331 do Código Penal (com dispensa da formalização do flagrante delito, em razão da pena aplicada ao crime, de 6 meses a 2 anos), que seguiria para o Juizado Especial Criminal, onde seria possível a proposta de transação penal (em razão da pena máxima igual a 2 anos) e, posteriormente, a proposta de sursis processual (em razão da pena mínima menor que 1 ano). Se o desacato fosse dirigido ao militar, independente de seu posto ou graduação, o civil seria preso em flagrante delito, sem direito à transação penal e ao sursis processual.

Os exemplos indicam que a opção pelo desacato àquelas autoridades civis traz para o agente uma gama de benefícios penais que ele não teria se a vítima do desacato fosse o militar das Forças Armadas, razão das restrições impostas pelo artigo 90-A da Lei nº 9.099/95. Nesse caso, fica evidente que o tratamento dispensado pelo legislador infraconstitucional para situações muito semelhantes é totalmente distinto e desproporcional.

Imaginemos ainda a hipótese de uma operação conjunta supervisionada pelo Ministro da Defesa. Enquanto um simples Soldado aborda um civil, este resolve demonstrar seu descontentamento por meio do desacato. Se tivesse frieza e perspicácia no momento de optar por sua vítima, a quem dirigiria suas ofensas, considerando a restrição da incidência dos institutos da Lei nº 9.099/95 aos crimes militares? Logicamente, a vítima do desacato seria o Ministro da Defesa, uma vez que, assim optando, o agente faria jus aos benefícios da Lei em comento: dispensa da prisão em flagrante (parágrafo único do art. 69), transação penal (art. 72 e 76), dispensa do inquérito policial (§ 1º do art. 77) e sursis processual (art. 89).

A problemática envolvendo o princípio da isonomia em relação aos aspectos da Lei nº 9.099/95 já foi objeto de calorosos debates entre os operadores do Direito, e guarda relação com os exemplos acima citados, o que culminou em outra alteração daquela Lei. Isso porque a redação original do art. 61 estabelecia que as infrações de menor potencial fossem assim consideradas quando a pena máxima não excedesse a 1 (um ano)8

Por ocasião da criação dos Juizados Especiais Federais, a Lei nº 10.259/01 estabeleceu o novo conceito para as infrações de menor potencial ofensivo no âmbito da Justiça Federal, ou seja, quando a lei não cominasse pena máxima não superior a dois anos ou multa.9

A partir de 2001, portanto, o ordenamento jurídico passou a conviver com dois conceitos de infração de menor potencial: aquele do artigo 61 da Lei nº 9.099/95, para as infrações penais com pena máxima até 1 (um) ano; e aquele do artigo 2º da Lei nº 10.259/01, para as infrações penais com pena máxima até 2 (dois) anos. Com efeito, para o agente que praticava crime de competência da Justiça Comum, o alcance da norma era menor, ao passo que o agente que cometia crime de competência da Justiça Federal tinha mais possibilidade de ser contemplado pelos benefícios penais.

O problema, nesse caso, residia na distinção de tratamento prevista no art. 2º da Lei nº 10.259/01, ocasionando algumas aberrações jurídicas, considerando que estabeleceu uma definição legal diversa daquela já sedimentada na jurisprudência e na doutrina acerca do conceito de infração de menor potencial ofensivo.

Exemplificando: um desacato praticado contra um policial civil sujeitava o agente à prisão em flagrante sem direito ao benefício da transação penal, ao passo que o desacato contra um policial federal gerava o simples registro de um termo circunstanciado, com dispensa do flagrante delito e com a possibilidade do benefício da transação penal.

À época, antecipou-se a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao reconhecer, por unanimidade, que deveria ser ampliado o conceito de infração de menor potencial ofensivo no âmbito da Justiça Estadual, em isonomia às regras estabelecidas para os Juizados Criminais Federais.10

Com a publicação da Lei nº 11.313/06, estabelecendo um conceito único para as infrações penais de menor potencial ofensivo, findaram-se aquelas discussões. A nova redação do art. 61 da Lei nº 9.099/95 assim passou a dispor:

Art. 61 – Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.

Com o tempo, a jurisprudência foi se consolidando no sentido de reconhecer que o novo conceito de infração de menor potencial ofensivo (infração penal com pena máxima até dois anos) deveria ter incidência também no âmbito dos Juizados Estaduais, com fundamento nos princípios da igualdade e da proporcionalidade.

A partir desse histórico, que culminou com a alteração da Lei nº 9.099/95 no tocante à definição das infrações de menor potencial ofensivo, é possível estabelecer uma linha de raciocínio coerente e pertinente para os feitos submetidos à justiça castrense envolvendo os civis.

Aqui, o princípio da isonomia também deve ser o farol, sinalizando para a conclusão segundo a qual a restrição genérica estabelecida pela Lei nº 9.389/99, que acrescentou o art. 90-A à Lei nº 9.099/95, deve sucumbir diante da Constituição da República.

Isso porque a esfera jurisdicional não pode servir de critério determinante para a incidência dos institutos despenalizadores. O discrimen, nesse caso, deve levar em conta a situação do agente (militar ou civil), não a natureza do crime. Aceitar tratamento distinto para situações semelhantes configura verdadeira agressão à isonomia constitucional, por permitir que o status de militar da vítima possa influir nos benefícios legais que serão alcançados pelo agente civil. Diante dessa evidente contradição legislativa, cabe ao intérprete afastar a incidência da indesejada discriminação.

Assim, pelos mesmos fundamentos invocados nas discussões que culminaram na alteração do conceito de infração de menor potencial ofensivo, não existe razão plausível para a exclusão dos civis da incidência dos institutos da Lei nº 9.099/95, especialmente se considerarmos que a sua situação é diferenciada do militar que está adstrito à rígida observância dos princípios basilares da hierarquia e disciplina, não aplicável aos acusados civis.

A caracterização do crime militar, que desloca a competência do julgamento dos civis para a Justiça Militar da União, seja pela natureza das atividades desempenhadas no exercício de atividade de segurança pública, seja pelo contexto fático de outras ações praticadas em tempo de paz, não pode constituir obstáculo à incidência dos benefícios penais que o agente faria jus em outra instância penal.

Sustentar que as disposições da Lei nº 9.099/95 não se aplicam no âmbito da Justiça Militar, seja qual for a situação do agente, militar ou civil, configura tendenciosa interpretação destacada do contexto do Estado Democrático de Direito, pois aquela vedação deve incidir somente nos feitos envolvendo acusados militares, diante das especificidades da carreira militar.

Ademais, corolário do princípio da isonomia é o postulado constitucional da individualização da pena, previsto no inciso XLVI do art. 5º da Constituição da República. Em breve síntese, dessa norma constitucional extrai-se que as sanções impostas aos infratores devem ser personalizadas e particularizadas, não só de acordo com as circunstâncias dos crimes praticados, mas, especialmente, à luz das características pessoais do agente.

Por essas razões, a restrição imposta pela Lei nº 9.839/99, que alterou a Lei nº 9.099/95, impedindo a incidência dos benefícios despenalizadores no âmbito da Justiça Castrense, deve alcançar tão somente os militares acusados da prática de crime militar, uma vez que não existe razão para excepcionar o civil que comete crime militar.

Levando em conta os momentos previstos nas disposições da Lei nº 9.099/95 para as propostas dos benefícios legais objeto do presente posicionamento, mas com os olhos postos nas especificidades do processo penal militar e nas disposições da Lei de Organização Judiciária Militar, poder-se-ia esboçar o modus operandi da sistemática a ser observada nos feitos da Justiça Militar no tocante à aplicação daqueles benefícios aos civis:

• quanto à transação penal, uma vez proposta pelo Ministério Público Militar e aceita pelo Acusado, esta poderia ser homologada pelo Juiz-Auditor, sem a necessidade de convocação dos Conselhos de Justiça, por representar medida que antecede a instauração do processo penal;

• em relação ao sursis processual, considerando que o momento da proposta coincide com o oferecimento da Denúncia e pressupõe a instauração de processo criminal, com recebimento da Denúncia e efetivação da citação do Acusado, esta somente poderia ser homologada por decisão do Conselho de Justiça;

• no tocante às atribuições da polícia judiciária militar, em se tratando de crime praticado por civil que se amolde ao conceito de infração de menor potencial ofensivo, poderia ser adotada a sistemática do termo circunstanciado, conforme as diretrizes estabelecidas pelo artigo 69 da Lei nº 9.099/9511;

• a exemplo do que ocorre no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, aquele termo circunstanciado evitaria a formalização da prisão em flagrante e dispensaria a instauração de inquérito policial militar (conforme determinado no § 1º do artigo 77 da Lei nº 9.099/95). Como estas providências estão inseridas nas atividades secundárias das Forças Armadas, a adoção da nova sistemática teria ainda o condão de permitir a diminuição dos encargos colaterais relacionados às atividades de polícia judiciária militar, viabilizando, por consequência, o exercício de outras ações relacionadas à segurança.

Com efeito, deve ser conferida àquele dispositivo infraconstitucional adequada interpretação, sem redução de texto, para que seja considerada inconstitucional apenas a hipótese de aplicação daquela restrição aos civis. Além de acatar a relevante tese da isonomia constitucional, estaríamos beneficiando as Forças Armadas, não só por se evitar a instauração de um Inquérito Policial Militar, muitas vezes demorado e custoso, como também por possibilitar oportunidade e celeridade na correção dos desvios comportamentais causadores de tais delitos.

Apenas à guisa de exercício intelectual, pode-se imaginar os reflexos positivos advindos da aplicação da transação penal ou do sursis processual a um civil que desacate as Forças Armadas em missão de Segurança Pública e que fosse compelido, em função de um desses institutos descriminalizadores, a comparecer, semanalmente, a uma organização militar, e lá assistir, por exemplo, a sessões de instrução militar ou mesmo a uma formatura militar. Bela oportunidade seria para melhor conhecer o papel desempenhado pelas Forças Armadas como instituições do Estado garantidoras da soberania e partícipes, quando impelidas, do esforço de segurança pública.

Notas ________________________________________________________________________

1 Art. 243. Qualquer pessoa deverá e os militares deverão prender quem for insubmisso ou desertor, ou seja encontrado em flagrante delito.(Código Processo Penal Militar)
2 Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.
3 Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
4 Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
(…)
III – os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
(…)
d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.
5 Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal
6 PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. MILITAR. HOMICÍDIO CULPOSO. CPM, ART. 206. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO: LEI 9.099/95, ART. 89. I. – Aplica-se ao processo militar o art. 89 da Lei 9.099/95, que prevê a suspensão condicional do processo (ou sursis processual). Precedentes: RHC 74.547-SP, Rel. Min. Octavio Gallotti, “DJ” 20/5/97; HC 75.706-AM, Min. Maurício Corrêa, “DJ” 19/12/97. II. – HC deferido (Habeas Corpus nº 77.037/AM, Relator Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, 16/6/1998. DJ de 14/8/1998)
7 HABEAS CORPUS. COMPETÊNCIA ESPECIAIS CRIMINAIS (LEI Nº 9.099/1995) COM OS PRECEITOS DA HIERARQUIA E DISCIPLINA. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA. (…) Os dispositivos contidos na Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/1995) são incompatíveis com os princípios da hierarquia e da disciplina, os quais se fazem presentes nos bens jurídicos tutelados pela norma penal castrense (…) Ordem denegada. Decisão unânime (HC nº 4-30.2012.7.00.0000 UF: RJ, Rel. Min. Ten Brig do Ar WILLIAM DE OLIVEIRA BARROS, julgado em 15/2/2012).
HABEAS CORPUS. INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI. AÇÃO PENAL. COMPETÊNCIA. NULIDADE. (…) A norma contida no art. 90-A, da Lei nº 9.099/95, estabelecendo a sua não aplicação ao jurisdicionado da Justiça Militar, tem como sua razão de ser a natureza dos bens jurídicos tutelados na órbita penal militar, inexistindo qualquer razão para excepcionar da incidência dessa regra o civil que comete crime militar. Denegação da Ordem. Decisão unânime (HC nº 5-15.2012.7.00.0000 UF: RJ, Rel. Min. Gen Ex LUIS CARLOS GOMES MATTOS, julgado em 14/2/2012DA JUSTIÇA MILITAR. CRIME PRATICADO POR CIVIL CONTRA MILITAR EM SERVIÇO. OCUPAÇÃO DO EXÉRCITO EM MISSÃO DE PACIFICAÇÃO. INCOMPATIBILIDADE DA LEI DOS JUIZADOS
8 Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial. (grifei)
9 Art. 2º Compete ao Juizado Especial Federal Criminal processar e julgar os feitos de competência da Justiça Federal relativos às infrações de menor potencial ofensivo.
Parágrafo único. Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa. (grifei).
10 PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 16 DA LEI DE TÓXICOS. INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL LESIVO. TRANSAÇÃO PENAL. LEI Nº 10.259/01 E LEI Nº 9.099/95. I – Com o advento da Lei nº 10.259/2001, que instituiu os Juizados Especiais Criminais na Justiça Federal, por meio de seu art. 2º, parágrafo único, ampliou-se o rol dos delitos de menor potencial ofensivo, por via da elevação da pena máxima abstratamente cominada ao delito. II – Desse modo, devem ser considerados delitos de menor potencial ofensivo, para efeito do art. 61 da Lei nº 9.099/95, aqueles a que a lei comine, no máximo, pena detentiva não superior a dois anos, ou multa, sem exceção. Ordem concedida (Habeas Corpus nº 25195/SP. Relator Min Felix Fischer, 5ª Turma, Julgamento em 27/5/2003, DJ de 30/6/2003, p. 274).
11 A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários.
Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança (…).