As mudanças precisam começar

5 de fevereiro de 2004

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Os jornais dessa manhã chuvosa de seis de fevereiro estão tomados por notícias carregadas de simbolismo.  Registram as manchetes:

“Vítimas de enchente recebem Marta com lama.”

“Nestlé suspende investimento no Espírito Santo.”

“Parmalat do Brasil diz que venderá parte das unidades.”

“Após 33 anos, sai indenização por tragédia.”

Cada uma traz uma mensagem dolorosa a inspirar debates e reflexões. A prefeita Marta Suplicy, mais uma vez revela coragem. Seu carro, uma Ômega blindado, está nas primeiras páginas cercado por populares hostis. Um deles, morador de Aricanduva, disse: “Ela veio aqui no dia errado. O povo está revoltado, queriam até linchar a mulher. Veio aqui pra quê, pra apanhar?” Marta: “ Não fui recebida com lama, mas com desespero. Estou aqui para dar solidariedade.” O drama das chuvas é uma metáfora cristalina do histórico descaso da área pública para com cidadão: se repete ano após ano com precisão matemática sem que nada mude.

O noticiário em torno da Nestlé e do escândalo da Parmalat são faces de uma mesma moeda. Um mostra a reação do empresariado à burocracia asfixiante. Pressionada pelo Cade – Conselho Administrativo de Defesa Econômica – que anulou a compra da fábrica de chocolates Garoto, a Nestlé revidou e suspendeu investimentos de R$ 150 milhões no Espírito Santo. Perde o trabalhador, perde o Estado, perde o País. Aposta-se no conflito em lugar da convergência. Patético!

A outra notícia mostra um fato positivo: o rosto deprimido do presidente da Parmalat, Ricardo Gonçalves, durante depoimento na Câmara, é o retrato de que a impunidade não mais grassa soberana.  Há controle por parte do parlamento e do judiciário para crimes empresariais. Não chegamos ao patamar da justiça Italiana, mas há avanços. O capitalismo social revela a sua face e transmite esperanças. A marca Parmalat, se sobreviver,  terá de enfrentar um longo inverno até resgatar sua reputação, aliás, das melhores no passado recentíssimo.

Por fim, a notícia da indenização. Diz o texto: “Trinta e três anos depois do desabamento de uma laje, durante a construção do Parque de Exposições da Gameleira, em Belo Horizonte, provocar a morte de 65 pessoas, a Justiça de Minas condenou uma empresa de engenharia e o Estado a indenizarem parentes e vítimas da tragédia…” ( Estado de São Paulo).

Esse é, sem dúvida, o que há de mais emblemático na tragédia brasileira dos dias atuais. Enfrentamos os obstáculos da inaceitável morosidade da Justiça com conformismo e complacência.  Segundo estudos do Banco Mundial, recentemente publicado pela revista Veja, ocupamos nesse particular a 30ª posição no ranking mundial.

Houve tempo em que nos orgulhávamos de recordes positivos: o maior estádio do planeta, a melhor seleção mundial do planeta, o país que exibia as maiores taxas de crescimento do planeta. Agora, estamos caminhando na trilha inversa. Batemos todos os recordes nas taxas de juros, nas desigualdades sociais, na insegurança aos investidores, na violência, na burocracia que paralisa a abertura de empregos… Bem, o País do futuro está se transformando no País do passado. Talvez, por culpa do ciclo militar que ampliou os dilemas de incomunicabilidade e distanciou ainda mais o poder público do cidadão, um fenômeno que só vem se agravando desde a proclamação da República.  Talvez, por algum atavismo não estirpado desde os idos da Colônia.

Isto explica, de qualquer forma, porque no momento em que volta ao temário nacional o debate da reforma do Judiciário é esgrimida a tese do controle externo desse mesmo poder. Sábias as palavras do vice-presidente do STF, Nelson Jobim: “Hoje precisamos responder pelos custos. Nada é de graça, e quem paga é o contribuinte(…) Não vejo nenhuma possibilidade de que o conselho não seja aprovado. É uma necessidade para a formulação de uma política judiciária nacional.”

O que se depreende do noticiário é que comunicar é preciso para que a Justiça consiga o apoio da sociedade. Faltou nesses anos de redemocratização sensibilidade – ou terminação – para exibir indicadores concretos de eficiência. É assim com a Justiça e todo o aparelho de Estado. Predomina um sentimento de torre de marfim e de intocabilidade. Nada mais fora do lugar.

Se tivéssemos um poder Judiciário moderno, certamente a população de São Paulo poderia ir mais além da solidariedade da destemida prefeita. Poderia acionar a prefeitura na Justiça e receber, no tempo devido, as justas indenizações. A Nestlé certamente poderia recorrer a uma instância superior ao Cade e superar limitações que só ocorrem porque o Estado tende a exibir zelo colonial nas relações com a iniciativa privada – o excesso de controle – esquecendo o principal, o investimento.

Não se pode admitir que alguém leve mais de três décadas para receber uma indenização, quando o mínimo atraso no pagamento de uma duplicata implica numa avalanche de juros e demais punições. Por que tem que ser assim? Dois pesos e duas medidas. O avesso dos países desenvolvidos. A Justiça é o único meio para corrigir tais desequilíbrios. Justiça forte, eficaz e ágil significa País moderno e modernizador. Um último lembrete: circula na mídia comparações do Partido do Trabalhador com o esclerosado PRI (Partido Revolucionário Institucional) mexicano.

Os que advogam a tese reclamam do aparelhamento do Estado, da manipulação dos sindicatos e da submissão da imprensa. Podem estar corretos nos dois primeiros itens. Contudo, erram no julgamento da imprensa. Em lugar da submissão, o que se vê é rápida escalada crítica tendo o cidadão e a sociedade como parâmetro.

Tudo termina. Tudo recomeça. Por parte do poder público, o espetáculo da mudança ainda está para começar, se o critério for o que os jornais comunicam diariamente a partir dos fatos.