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Aspectos polêmicos do delito de infanticídio

5 de março de 2005

Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Professora Universitária. Mestre em Direito pela PUCRS.

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Antes de entrar-se no tema propriamente dito, deve-se passar um relancear de olhos sobre a sexualidade humana, base e fundamento da abordagem que se está a desenvolver neste trabalho. O exercício da sexualidade apresenta aspectos bastante diferenciados ao homem e à mulher, apesar de ser inegável a admissão de que o impulso sexual manifesta-se igualmente em ambos.

Ao escrever sobre a sexualidade, Judith Walkowitz afirma não ser ela uma realidade biológica imutável ou uma força natural e universal, mas antes o resultado de um processo político, social, econômico e cultural. Ou seja, a sexualidade tem uma história. E em respeito a esta história, torna-se imperioso reconhecer que toda e qualquer análise sobre a condição feminina há de, inevitavelmente, passar pelo papel que a mulher ocupa no processo reprodutivo, o que na verdade significa dizer pelas formas institucionais que a sociedade encontra para lidar com ele. Por intermédio de certos mecanismos ideológicos, a função feminina, determinada pela especificação biológica dos cargos, tende a ser estendida a outros campos e seu caráter puramente natural é transposto para outras atribuições culturalmente destinadas ao sexo feminino.

Os dados da biologia aliam-se inextricavelmente aos dados culturais e acabam por exigir da mulher os comportamentos-padrão aceitáveis na sociedade.

Na obra, O Segundo Sexo, Beauvoir refere que “não é possível medir em abstrato a carga que constitui para a mulher a função geradora: a relação da maternidade com a vida individual é naturalmente regulada nos animais pelo ciclo do cio e das estações: ela é indefinida na mulher, só a sociedade por decidir por elas”.

A gestação, acompanhada da descarga hormonal que a caracteriza, pode levar a mulher ao crime tipificado no artigo 123 do Código Penal e que recebe o nome de infanticídio. Este, o infanticídio, diferencia-se do delito de aborto por nele a gestação chegar a termo e o fenômeno da parturição já haver iniciado. A conduta da mulher dá-se sobre o nascente ou o neonato, matando-o.

O infanticídio, contudo, nem sempre foi motivo de incriminação. Paul Vayne relata que no Império Romano, aproximadamente no ano 1000 de nossa era, o nascimento não era apenas um fato biológico, uma vez que os recém-nascidos só vinham ao mundo, ou melhor, somente eram recebidos na sociedade em virtude de uma decisão do chefe de família. Em Roma, um cidadão não ‘tinha’ um filho: ele o ‘tomava’, ‘levantava’. O pai exercia a prerrogativa, tão logo nascesse a criança, de levantá-la do chão, onde a parteira a havia depositado, para tomá-la nos braços e assim manifestar que a reconhecia e se recusava a enjeitá-la. A criança que o pai não levantasse era exposta diante da casa ou em um monturo público. Quem quisesse poderia recolhê-la e criá-la.

Os romanos, a par de terem o direito de reconhecer ou não o filho recém-nascido, conforme as suas conveniências, enjeitavam ou afogavam as crianças malformadas e os filhos de suas filhas que houvessem dado à luz de forma ilegítima.

Entre os gregos era mais freqüente enjeitar meninas do que meninos e ainda hoje, na China, é prática comum nas famílias o morticínio de meninas recém-nascidas.

A legislação romana, relata Carrara, via no crime da infanticida a premeditação que autorizava o agravamento da pena, a par da nula capacidade que possuía a vítima de defender-se e, por isso, deveria ser energicamente protegido pela lei penal.

Gradativamente, porém, e a partir de movimento operado entre os filósofos do direito natural, o crime cometido pela mãe contra o nascente ou neonato passou de homicídio qualificado (parricídio) para homicídio privilegiado, quando praticado honoris causa pela mãe ou parentes, uma vez não ser possível continuar a desconhecer-se a peculiaríssima forma como ocorria, merecendo, portanto, tal conduta, a justa diminuição da pena.

Gradualmente, as legislações antigas, segundo o magistério de Euclides Custódio Silveira, a começar por Roma e espalhando-se depois por toda a Idade Média, passaram a tipificar a conduta da mãe que matava o neonato como homicídio qualificado, impondo-lhe penas severíssimas, como a do “culeus” (saco de couro em que cosiam os parricidas), a da empalação e a do afogamento.

Na legislação penal brasileira de 1830, 1890 e 1940, o infanticídio manteve, taxativamente ou não, a questão moral que envolve o delito e, por conseqüência, uma punição mais branda.

O motivo de honra foi mantido em inúmeras legislações estrangeiras (Código Penal Argentino, art. 81, e Código Penal Italiano, art. 578, por exemplo), mas retirado de nossa lei penal em 1940, quando se passou a adotar o critério fisiopsicológico, não se levando em conta o motivo do crime, e sim o desequilíbrio fisiopsíquico oriundo do parto, embora não se desconheça que o motivo desencadeante da conduta de matar o próprio filho pode entrar no complexo motivador deste desequílibro.

Cumpre salientar-se que o critério fisiopsíquico, ao contrário do puramente psicológico, adotado nos Estatutos Repressivos anteriores, não distingue entre gravidez legítima ou ilegítima, abstraindo, portanto, ou pelo menos relegando para terreno secundário, a honoris causa: somente tem em conta a particular perturbação fisiopsíquica decorrente do parto. Ao invés do impetus pudoris, o impetus doloris, ressalta Hungria.

O fulcro da controvérsia reside no que seja influência do estado puerperal e a sua existência conforme estabelece a lei penal é questão discutida e não unanimemente aceita pela medicina.

Que todas as mulheres que dão à luz passam pelo puerpério é certo. Que pouquíssimas mulheres matam sob a influência do estado puerperal é igualmente certo.

Não se deve confundir puerpério com parto ou post-partum, ou seja, as horas que se seguem ao fenômeno da parturição. O puerpério, no sentido vulgar, dura de oito a quinze dias. É uma apreciação arbitrária, que varia segundo as raças, os povos, as relações sociais, o estado econômico e muitos outros pormenores. O mais acertado seria admitir um prazo mais longo, ou o tempo que precisam os órgãos sexuais para sua completa restauração, que seria de cinco a oito semanas, e, como é natural, este prazo depende do clima, raça, particularidades pessoais, terminando nas mulheres que não amamentam seus filhos, com a volta da menstruação. Esse período é que é denominado, em linguagem profissional, de puerpério.

O que estava presente no espírito de legislador de 1940, quando foi redigido o artigo 123, ao referir-se ao estado puerperal, certamente eram os casos em que a mulher, abalada pela dor física do fenômeno obstétrico, fatigada, enervada, sacudida pela emoção, vem a sofrer um colapso do senso moral, uma liberação dos impulsos, chegando, por isto, a matar o próprio filho. Não alienação mental nem semi-alienação (casos estes já regulados pelo Código), mas também não a frieza de cálculo, a ausência de emoção, a pura crueldade (que caracterizaria, então, o homicídio), e sim uma situação intermediária entre a loucura total, a alteração parcial e a normalidade, que domina a mulher quando esta é defrontada com o filho não desejado e temido de suas entranhas.

No caso de tratar-se de um estado transitório de abalo emocional, certamente encontram-se afastadas, de plano, as psicoses francas ocasionadas pelo puerpério ou então as que evoluem ao lado dele. As psicoses propriamente puerperais, isto é, em relação etiológica com o puerpério, resultam de infecções ou de auto-intoxicação. As outras, que o choque obstétrico simplesmente desperta ou acentua, distribuem-se entre a esquizofrenia, a psicose maníaco-depressiva e as psicoses histéricas, consoante ensinamentos de Antônio Ferreira de Almeida Júnior, em Lições de Medicina Legal. Quando a mãe infanticida incluir-se neste grupo estará isenta de pena em virtude do disposto no artigo 26 do Código Penal. Não há pena a ser aplicada à mulher inimputável, e sim tratamento médico imposto através de medida de segurança a ser realizada em Manicômios Judiciários.

Entretanto, pode haver casos em que a autora não é inimputável, e sim portadora de perturbação da saúde mental que a leva ao delito e torna-a relativamente responsável por seus atos. A mulher entende parcialmente o que fez, e tais casos são constatados nas perversas instintivas, nas histéricas e nas débeis mentais. Nestes casos, verificada pericialmente a anomalia da autora, aplicar-se-á o parágrafo único do artigo 26 do diploma penal: pena ou medida de segurança, em critério a ser definido pelo juiz.

Mas o que se entende por imputabilidade? Se imputação é a atribuição de alguma coisa a alguém, coisa esta já acontecida, imputabilidade é o juízo sobre um fato previsto como possível, mas ainda não ocorrido. Imputação, portanto, é uma idéia, um conceito; imputabilidade uma realidade, conforme acentua Carrara. Pena e imputação não são palavras sinônimas, apesar da confusão que envolve os dois institutos. A teoria da pena focaliza o delito em sua vida externa, observando-a em suas relações com a sociedade civil. A teoria da imputação considera o delito nas suas puras relações com o agente. Pode haver imputação do agente e a não-aplicação da pena, mas nunca poderá haver pena sem prévia imputação do agente.

Para o juízo da imputabilidade deve-se ter uma ação ou omissão humana (conduta) voluntária e uma previsão legal a qual possa adequar-se a conduta realizada voluntariamente e de forma inteligente, ou seja, a conduta deve ser realizada responsavelmente pelo sujeito. E é justamente aqui que se encontra o ponto nevrálgico do delito de infanticídio – a conduta responsável ou não da mulher puérpera.

A polêmica do estado puerperal e da imputabilidade e, conseqüente, da responsabilidade da mulher, torna-se mais acirrada no momento em que médicos ligados à moderna psiquiatria afirmam não existirem psicoses puerperais específicas. Para Hungria, surgem elas no terreno lavrado pela tara psíquica que se agrava pelos processos metabólicos do estado puerperal, ou são uma species do genus psicoses somáticas, ou, em outras palavras, transtornos psíquicos que se apresentam no curso de enfermidades gerais internas agudas, de intoxicações etc., e cujas lesões não têm uma localização cerebral.

Se não se pode comprovar a existência cabal dessa alteração consistente em delírios, em ofuscamento transitório da consciência, em confusões alucinatórias agudas que deságuam no estado puerperal, certamente se deve atribuir ao crime cometido pela mulher que está dando à luz ou acabou de dar à luz a inegável questão social.

O infanticídio é, principalmente e antes de tudo, um delito social, praticado na quase totalidade dos casos (e é fácil a comprovação pela simples consulta aos repertórios de jurisprudência), por mães solteiras ou mulheres abandonadas pelos maridos, por mulheres pobres e/ou com prole numerosa. Raríssimas vezes, para não dizer nenhuma, têm sido acusadas desses crimes mulheres casadas e felizes, as quais, via de regra, dão à luz cercadas do amparo do marido e do apoio moral dos familiares. Por isto mesmo, o conceito fisiopsicológico do infanticídio – sob a influência do estado puerperal – introduzido em nosso Código Penal para eliminar de todo o antigo conceito psicológico – a questão de honra – vai aos poucos perdendo sua significação primitiva e se confundindo com este, por força de reiteradas decisões judiciais.

Em que pese a Exposição de Motivos do Código Penal de 1940 dizer que a infanticida apresenta capacidade de entendimento diminuída, a lei penaliza-a com penas que seriam, na letra clara da norma, somente aplicáveis às penalmente responsáveis. Assim, mesmo reconhecendo a ocorrência de transtornos psíquicos que remetem a puérpera à semi-imputabilidade (diminuição da responsabilidade pelo ato praticado), nossa lei repressiva segue punindo-a, submetendo-a a julgamento pelo Júri Popular e aplicando-lhe penas que vão de dois a seis anos de detenção.

Se atuam no corpo e no psiquismo da mulher, em decorrência do fenômeno da parturição, hormônios que lhe retiram a perfeita capacidade de determinação e entendimento, se o crime é doloso, se a influência do estado puerperal tem início e término pré-fixados (do primeiro ao quadragésimo quinto dia após o parto, segundo a doutrina) e sabe-se, pela medicina, que as alterações mentais necessitam de tratamento e não se pode precisar a data da cura, como se pode seguir penalizando aquela que, na realidade, não tem perfeita compreensão do que faz?

Talvez o mais certo, o mais justo, o mais humano seja considerar-se que a história da mulher na cultura muitas vezes é escrita de forma tão pesada quanto lhe é pesado o peso das convenções, da hiposuficiência, do menor acesso ao emprego, à educação, e que o ato de matar o próprio filho durante ou logo após o parto acha-se indissoluvelmente ligado às questões sociais ou de honra.

O Anteprojeto para alteração do Código Penal não dirime a polêmica que este tipo penal incriminador envolve, já que mais uma vez a lei deixa de atacar o ponto fundamental do problema. Não basta retirar-se a expressão influência do estado puerperal e substituí-la pela influência perturbadora do parto. A questão não é terminológica e sim social. As leis devem ser editadas sem ocultação da realidade, visto que é a problemática social norteadora da conduta da autora puérpera.

Não basta alterar-se a lei mediante o uso de uma ou outra palavra que, no fim das contas, servirá de motivo para inúmeras discussões acadêmicas. A responsabilização da autora pelo ato praticado contra o próprio filho deve ser mantida. Por seu turno, a pena, significativamente menos severa, é um reconhecimento inquestionável de que seus direitos de cidadania não são plenamente atendidos pela sociedade.