Edição

Aspectos políticos e jurídicos dos delitos de bagatela

5 de outubro de 2004

Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Professora Universitária. Mestre em Direito pela PUCRS.

Compartilhe:

O Princípio da Bagatela, também conhecido como da Insignificância ou da Irrelevância Social do Fato, constitui tema dos mais polêmicos do Direito Penal pátrio.

Antes de adentrar na temática especificamente proposta, cumpre analisar o conceito de crime, referindo que o Código Penal de 1940, ainda em vigor, a ele não se refere, apenas aduzindo em sua Exposição de Motivos que “Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativamente com a pena de multa (…)”. Tal tarefa, então, coube à Doutrina. E esta nos fornece os conceitos formal, material e analítico de crime.

Os conceitos formal e material, por corresponderem, o primeiro a definição nominal (relação de um termo àquilo que o designa) e o segundo a definição real (o conteúdo do fato punível), não merecem maiores considerações. É o conceito analítico que nos interessa dissecar, vez ser a pedra fundamental sob a qual se assenta a dogmática jurídica para a análise dos elementos estruturais do delito.

Ao adotar-se, como o faço, como conceito analítico, ser o crime o fato típico, ilícito e culpável, ocorre todo um comprometimento com a corrente doutrinária que teve seu início com Carmignani, para quem a ação delituosa compor-se-ia do concurso de uma força física, representada pela ação, e de uma força moral, representada pela culpabilidade, teoria esta complementada por Beling com a introdução da tipicidade e posteriormente com a antijuridicidade visualizada por Binding.

Como bem acentuou Welzel, “o conceito da culpabilidade acrescenta ao da ação antijurídica – tanto uma ação dolosa como não dolosa – um novo elemento, que é o que a converte em delito”.

A culpabilidade nada mais é do que a reprovabilidade pessoal pela realização da conduta típica e antijurídica, podendo o agente conhecer a ilicitude de seu comportamento, sendo-lhe exigível atuação conforme ao direito.

Forçoso reconhecer-se que o crime se aperfeiçoa, segundo as palavras de Cezar Roberto Bitencourt, com a culpabilidade. Assim, a ação ou omissão típica e ilícita para constituir crime tem de ser culpável.

Ato contínuo, passa-se ao enfrentamento dos conceitos de tipo e tipicidade, vez que sua distinção se mostra fundamental ao deslinde do tema proposto.

A expressão tipo, tomando-se por empréstimo as lições de Mirabete, “não é, normalmente, empregada pela lei, mas foi introduzida no Código Penal com a reforma da Parte Geral de 1984 (art. 20). Ela constitui tradução livre da palavra alemã Tatbstand. O termo tipo exprime a idéia de ‘modelo’, ‘esquema’ e é uma figura puramente conceitual. Tipo é, no dizer de Welzel, a descrição concreta da conduta proibida, ou seja, do conteúdo ou da matéria da norma”.

Tipicidade, por seu turno, é a adequação perfeita de uma conduta dolosa ou culposa a um tipo penal incriminador. Refere Francisco de Assis Toledo que para que uma conduta humana seja considerada crime, é necessário que dela se possa, inicialmente, afirmar a tipicidade, isto é, que tal conduta se ajuste a um tipo legal de delito.

A antijuridicidade, segundo Heleno Fragoso é a relação contraditória entre o fato típico e a norma. A realização da conduta típica revela, em regra, a ilicitude, pois o tipo é, substancialmente, tipo de ilícito, ou seja, modelo da conduta que o legislador proíbe e procura evitar, tornando-a ilícita.

Tecidas essas considerações, impõe-se reconhecer a complexidade de tais conceitos, eis que a tipicidade não se esgota no juízo lógico-formal de subsunção do fato ao tipo legal de crime. A ação descrita tipicamente deve revelar-se, ainda, ofensiva ou perigosa ao bem jurídico protegido pela norma penal. Pode-se afirmar, assim, que o comportamento humano, para ser típico, não só deve se ajustar formalmente a um tipo legal de delito, mas também ser materialmente lesivo a bens jurídicos, ou ética e socialmente reprovados. E é sabido que o legislador, ao realizar o trabalho de redação do tipo penal, tem em mente tão-somente os prejuízos relevantes que o comportamento incriminado possa causar à ordem jurídica e social. Todavia, segundo Heinz Zipf não dispõe de meios para evitar que também sejam alcançados os casos leves.

O princípio da bagatela surgiria, então, para evitar situações como a descrita acima e atuaria como um instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, com o significado sistemático e político-criminal de expressão da regra constitucional do nullum crimen sine lege, que nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal.

Assim, e de forma praticamente unânime, o Princípio da Bagatela afastaria a tipicidade do fato. A conduta humana que incidiria, em tese, num tipo penal incriminador, deixaria de sê-lo devido à ínfima lesão ao bem jurídico tutelado, tornando-se atípica.

Ao utilizar a expressão “praticamente unânime”, não o faço com outro propósito que não seja o de abrir espaço para a corrente doutrinária oposta, que esposa entendimento de que tal princípio não teria o condão de afastar a tipicidade da conduta e sim a culpabilidade do agente.

Estar-se-ia diante da dispensa da persecução penal quando se tratasse de delitos de ‘pequena criminalidade’, como v.g., o furto quando a res subtraída fosse de valor ínfimo ou irrisório, a fraude para a obtenção de vantagem ilícita em prejuízo alheio quando o bem visado  não atingisse minimamente o patrimônio alheio, etc. Em última análise, proceder-se-ia a uma autêntica ponderação entre o valor do bem jurídico atingido e o desvalor da conduta humana que o lesa ou expõe a perigo.

Citando Hünerfeld, o processamento de determinados pequenos delitos, ou seja, de transgressões de rarefeita culpa, não obedeceria ao princípio da legalidade quando não existisse interesse público em seu processamento. Ou, em outras palavras, seria a regulamentação jurídico-material do princípio da bagatela, causa pessoal, segundo o citado doutrinador, de exclusão da pena.

Todavia, os conceitos de rarefeita culpa e insignificantes conseqüências não logram solucionar o problema da alta incidência dos delitos ditos de ‘pequena criminalidade’. Basta que se recorde, alerta o citado autor, que os pequenos casos se caracterizam por uma massiva perpetração. A não punibilidade, como verdadeiro recuo do direito penal, sem qualquer compensação, não superaria a questão posta em tela.

A par das robustas posições num e noutro sentido, quer quanto a afastar a tipicidade ou a culpabilidade da conduta humana que ofende a ordem jurídica, ouso conduzir a discussão para as razões da adoção do Princípio da Bagatela e afirmar que o nó górdio para sua aplicabilidade reside a questões político-criminais.

Não é relevante ao Direito Penal intervir em fatos de inexpressiva significância social, e assim têm decidido os Tribunais pátrios de forma reiterada. É comum a prolação de decisões absolutórias em nome da “boa política criminal” e da “intervenção mínima do Estado” (ultima ratio), não obstante a conduta atribuída ao réu seja antijurídica, culpável e formalmente típica. Ao assim agirem, estão os julgadores a aplicar as modernas técnicas de descriminalização interpretativa fornecidas pela dogmática, não violadoras da necessária segurança jurídica do sistema, sempre que a ação humana  seja minimamente lesiva ou agressiva aos bens jurídicos protegidos pelo Estatuto Repressivo.

Saliento, por oportuno, que em países de alto nível de desenvolvimento, como a Itália, Suíça e Japão, por exemplo, as insignificantes lesões patrimoniais, as mínimas lesões corporais e até mesmo, permito-me entrar aqui em seara controvertida, a pequena quantidade de substância entorpecente apreendida, transferiria a penalização para outras áreas do Direito (como o Administrativo ou Cível, por exemplo), desafogando o Poder Judiciário e igualmente de maneira eficaz promovendo a justiça social.