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Associação de moradores – A urgente revisão do Enunciado 79 do TJ-RJ em face do que foi decidido pelo STJ.

28 de fevereiro de 2007

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Só se deve pagar uma dívida se ela for legalmente exigível ou se for imposta por uma obrigação natural, indeclinável, que se coloca à consciência de cada um.

Se o cidadão, premido pela ação asfixiante dos impostos brasileiros, não paga uma dívida particular por considerá-la abusiva, tanto que a discute em Juízo, não é dado a ninguém crucificá-lo, por antecipação, sem conhecer, possivelmente, os graves motivos da recusa ao pagamento.

É o que acontece, ordinariamente, com as chamadas “cobranças de quotas impostas” por “Associação de Moradores” ou como se costuma designar “Condomínio Atípico”, que vem agindo como substituta do próprio Estado, na arte da esfolação do incauto morador, proprietário de lotes ou residências.

O pretexto para cobrança das quotas condominiais é sempre o mesmo: alegação de inadimplência do proprietário por recusar-se a pagar a contribuição, sofrendo o epíteto de mau pagador por não ter-se curvado à cobrança indevida, com a qual jamais concordou, por alegados e pretensos serviços prestados pela Associação.

Aos olhos desavisados, nada mais ignominioso tanto quanto o nome do presumido devedor que é exposto à execração na comunidade onde vive.

Desde a Carta Magna de 1215, somente se poder impor contribuições ou impostos se houver a concordância do contribuinte, sejam tais contribuições impostas pelo Poder Público ou mesmo por associações privadas.

É certo que se deve fazer uma distinção entre Associação “pura” e “impura”. A primeira realmente presta serviços à coletividade, e a segunda age simplesmente como fantoche nas mãos daqueles que saqueiam o que pode do interesse coletivo.

Os loteamentos impuros são também aqueles que fun-cionam abusivamente em logradouros públicos – bairros por definição legal – a pretexto de proteção ambiental e ecológica ou quaisquer outros conceitos “eufonicamente” bem aceitos ou palatáveis pelas vítimas da farsa. A aprovação dos “estatutos” elaborados pelo grupo dominador visa, fundamentalmente, ao registro público. Uma vez alcançada a situação legal de pessoa jurídica, o que não é difícil acontecer, a referida Associação passa a ter força de lei, principalmente quando as decisões judiciárias que se seguem oferecem respaldo para continuar operando na suposição de que prestam relevantes serviços ao Bairro (não nos referimos a condomínios).

Não se tem a menor dúvida de que as decisões judiciárias são lançadas de boa-fé, embora, por vezes, chancelem atos genuinamente iníquos. Alegam-se, nesse tipo de associação, proveitos difusos nem sempre identificáveis, mas uma coisa é certa: todos passam a pagar a contribuição pecuniária, queiram ou não.

Não há nada mais paradoxal no cotidiano brasileiro. Paga-se por serviços de água, esgoto, limpeza e segurança à Prefeitura local ou às concessionárias de serviço público, e, vez por outra, o cidadão ainda é obrigado a arrostar as mesmas despesas, “em duplicidade”,  a pretexto de que a ausência do Estado na prestação daqueles serviços autoriza terceiros a agir em nome dele.

Não se tem conhecimento de ação de regresso contra o Poder Público quando o “síndico” dos loteamentos fechados propõe ação contra o morador tido e havido como relapso. Ele é assim considerado pelos Tribunais, sob o argumento de que agride ao princípio que veda o enriquecimento sem causa beneficiar-se alguém dos serviços oferecidos.

Só o fato de adquirir um imóvel em um loteamento fechado e usufruir seus serviços evidencia ter o adquirente aderido ao sistema de custeio das despesas comuns ali adotado, e é o quanto basta para tornar obrigatória sua contribuição.

Sem tirar nem pôr, essa é a dicção do Enunciado nº 79 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e também da 4ª Turma da Corte Infraconstitucional, ao proclamarem:

“…o proprietário de lote deve contribuir com o valor que corresponde ao rateio das despesas daí decorrentes, pois não é adequado continuar gozando dos benefícios sociais sem a devida contraprestação” (REsp. 439.661-RJ, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 18/11/2002, p. 229).

Acontece que a 3ª Turma do STJ, um ano após a prolação do decisório referido, adotou tese diametralmente oposta, ao proclamar: “Associação de moradores. Cobrança de contribuição por serviços prestados. O proprietário do lote não está obrigado a concorrer para o custeio de serviços prestados por Associação de Moradores se não os solicitou”.

O recurso do proprietário foi conhecido e provido por unanimidade. Acompanharam o relator do feito, Min. Ari Pargendler, Carlos Alberto Menezes Direito, Nancy Andrighi, Castro Filho e Antônio de Pádua Ribeiro (REsp. 444.931-SP, j. 12/08/2003, DJ de 06/10/2003).

Como grassava controvérsia sobre o tema, a 2ª Seção do
STJ foi chamada a pronunciar-se nos embargos de divergência, tendo sido designado relator o Ministro Humberto Gomes de Barros, que, em síntese admirável, enunciou o princípio, verbis:

“As taxas de manutenção criadas por Associações de Moradores não podem ser impostas a proprietário de imóvel que não é associado e nem aderiu ao ato que instituiu o encargo. Na verdade, essa cobrança tem toda a característica de uma taxa e, mesmo a taxa tributária, só é impositiva em função, de lei, aí não há fundamento legal” (nosso, o destaque – REsp. 444.931-SP, DJ 01/02/2006).

Na dicção do eminente Relator: “A questão é simples: ‘o embargado não participou da constituição da associação embargante. Já era proprietário do imóvel, antes mesmo de criada a associação. As deliberações desta, ainda que revertam em prol de todos os moradores do loteamento, não podem ser impostas ao embargado. Ele tinha a faculdade – mais que isso, o direito constitucional – de associar-se ou não. E não o fez. Assim, não pode ser atingido no rateio das despesas de manutenção do loteamento, decididas e implementadas pela associação. Em nosso ordenamento jurídico, há somente três fontes de obrigações: a lei, o contrato ou o débito. No caso, não atuam qualquer dessas fontes’.”

Tollitor quaestio, portanto, face à decisão ter sido tomada pelo órgão julgador de maior hierarquia da Corte, remanescendo, porém, as questões constitucionais ainda não apreciadas e que poderão vir a sê-lo, oportunamente.

O tema é e continuará sendo recorrente.

À luz, portanto, das decisões reiteradas pela Corte infraconstitucional, que foram acima referidas, inferem-se, por sem dúvida, a impossibilidade de se permitir a cobrança de “tarifas” pelas Associações, seja a que pretexto for.

Vale ressaltar, ilustrativamente, que há decisão da 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça fluminense (e de outros órgãos julgadores da mesma Corte) em sentido contrário à súmula 79, que autoriza a cobrança das quotas nos seguintes termos que nos parecem irrespondíveis:

“Não há relação jurídica entre os moradores de uma rua que os obrigue para despesas de segurança e de outro tipo, em definindo alguns deles a constituição de uma associação de moradores. Liberdade de associação garantida pela Constituição Federal, de modo que inexiste vinculação e dever de contribuir, bem como não procede a alegação de enriquecimento ilícito, uma vez que os particulares não podem se
reunir em associações para nelas incluírem quem bem entenderem, como seus membros, e deles cobrarem contribuições, como se Estado fossem”.

E mais:

“Ninguém é obrigado a contribuir para um serviço que lhe prestem voluntariamente, sem sua aceitação. Para ilustrar esse caso com outros semelhantes, basta imaginarmos uma pessoa que resolve, todo dia de manhã, varrer a calçada na frente de uma casa, sem prévia concordância do morador e, por isso, decide cobrar-lhe uma indenização; ou ainda a pessoa que monta, em frente a casa de outrem, uma lanchonete que valoriza o imóvel, e queira cobrar-lhe uma contribuição” (Unânime, Ap. 2003.001.27540, Relª Desª Maria Augusta Vaz).

Na mesma linha desse entendimento, proclamava a 9ª Câmara Cível, na Ap. 1999.001.10637, ac. publicado em 29/02/2000, à unanimidade, sob a firme relatoria do Desembargador Joaquim Alves de Brito:

“Uma Associação de Moradores caracteriza-se pela voluntariedade em associar-se, não podendo qualquer pessoa ser obrigada a pertencer àquele grupo que constitui uma associação. Não há locupletamente posto que os serviços prestados pela Associação são expressamente dispensados pelo apelado, que, ao desligar-se da entidade, faz cessar seu dever de contribuir a Associação”.

Em outra oportunidade, igualmente irrespondível, o argumento do Desembargador Luiz Odilon Gomes Bandeira, do Tribunal de Justiça fluminense, em anterior decisão, que impressionou sobremaneira o Ministro Pargendler, antes referido, determinou a seguinte transcrição:

“Cuidando-se de simples loteamento, onde inexiste co-propriedade das denominadas partes comuns, em contraposição à propriedade individual, como parte inseparável
desta última, inexiste condomínio juridicamente considerado. Por tais razões, não se aplicam ao caso as disposições da Lei 4.591/64, por força do artigo 3º do Decreto-lei 271/67, não apenas porque implicitamente abrogado pela Lei 6.766/79, como ainda por não ser auto-aplicável tal dispositivo legal, porquanto a regulamentação determinada em seu § 1º nunca foi feita. Sendo a autora, ademais, mera Associação de Moradores, não pode obrigar aos residentes e proprietários, no loteamento, a ela se filiarem, nem impor-lhes contribuições, pois não se cuida, no caso, de obrigação propter rem, mas simplesmente pessoal, de quem deseja associar-se ou manter-se tal.”

Portanto, para que exista condomínio juridicamente considerado, é indispensável que haja, como substrato fático inderrogável a relação de comunhão, a caracterizar a co-propriedade sobre o terreno, ou sobre o imóvel. Sem isto não é possível falar-se em condomínio, seja o comum ou o especial.

A permissividade tem gerado situações esdrúxulas.

Bairros, considerados por definição legal, logradouros públicos, localizados em áreas aprazíveis de veraneio, que em um passe de mágica, passou a ter configuração de “condomínio atípico” ou “de fato”, criando, por vezes, receitas fantásticas para a Associação, reconduzindo “síndicos” ad eternum, que é eleito pelo grupo dirigente, que lhe é afim, como atestam várias situações de conhecimento comum.

A população já enfrenta um pesado carma por viver em um país, cujos governantes e suas indefectíveis concessio
nárias arrancam o “couro” da população. Entretanto, mais uma cobrança manifestamente ilícita de um particular que se reveste de poderes estatais para cobrar, pelos mesmos, serviços, subrogando-se ao Poder Público, é manifestamente intolerável e odioso. É preferível providenciar a mudança para outras plagas onde não exista essa inadmissível coerção.

No instante em que se admitir que associações espúrias possam exigir cobrança de taxas para que moremos em nossa própria propriedade, perderemos a identidade e a referência como seres humanos, transformados fatalmente em robôs, verdadeiras máquinas sem funções espirituais, inclusive abdicando do exercício da representação da vontade, o mais sublime direito da vida.

Ainda bem que o Egrégio Superior Tribunal de Justiça encerrou a questão, até aqui, pelo menos.