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Autonomia administrativa do Poder Judiciário

27 de abril de 2015

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leticia_sardasTema jurídico de relevante e elevada complexidade, a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário tem sido objeto de acalorados debates, principalmente quando se refere à normatização das eleições para o corpo diretivo dos tribunais estaduais, discutindo-se se a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) deve prevalecer em detrimento das normas regimentais.

A questão não é nova e, no julgamento da Reclamação no 13.115 – RS, em que é Reclamante Arno Werlang e Reclamado o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), com a Relatoria do Ministro Luiz Fux, interposto agravo regimental em face da decisão liminar que suspendeu, parcialmente, os efeitos da eleição para os cargos diretivos do Tribunal, fazendo prevalecer a regra do artigo 102 da Lei Complementar (LC) no 35/1979 para a condução do referido processo eleitoral, acompanhando o voto divergente inaugurado pelo Ministro Marco Aurélio, o Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu o seguinte acórdão:

JUDICIÁRIO – AUTONOMIA. Consoante disposto no artigo 99 da Carta de 1988, ao Poder Judiciário é assegurada autonomia administrativa e financeira.

TRIBUNAIS – DIREÇÃO – REGÊNCIA. Ao contrário do versado no artigo 112 do Diploma Maior anterior – Emenda Constitucional no 1, de 1969 –, o atual não remete mais à Lei Orgânica da Magistratura a regência da direção dos tribunais, ficando a disciplina a cargo do regimento interno.

RECLAMAÇÃO – EFEITO TRANCENDENTE. Reiterados são os pronunciamentos do Supremo no sentido de não se admitir, como base para pedido formulado em reclamação, o efeito transcendente.

O julgamento deste paradigmático case ainda não teve fim, mas a longa discussão de temas afetos à autonomia administrativa dos tribunais, que passou pela preocupação com a politização do Poder Judiciário, impõe uma análise dos votos proferidos pelos integrantes da Suprema Corte.

Para tal, importante conferir o que dispõe o artigo 102 da LC no 35/1979:

Art. 102 – Os Tribunais, pela maioria dos seus membros efetivos, por votação secreta, elegerão dentre seus Juízes mais antigos, em número correspondente aos dos cargos de direção, os titulares destes, com mandato por dois anos, proibida a reeleição. Quem tiver exercido quaisquer cargos de direção por quatro anos, ou o de Presidente, não figurará mais entre os elegíveis, até que se esgotem todos os nomes, na ordem de antiguidade. É obrigatória a aceitação do cargo, salvo recusa manifestada e aceita antes da eleição.

Na hipótese submetida à referida Reclamação, violando frontalmente a regra da Emenda Constitucional, o Regimento Interno do TJRS autorizou a realização de eleições para os cargos de direção, independentemente da antiguidade na carreira.

Ou seja, regras distintas sobre uma mesma matéria, prevalecendo na Corte Suprema a tese de que devem valer as normas regimentais sobre eleição dos dirigentes dos tribunais, em detrimento da regra veiculada pela Loman, uma vez que esta não foi recepcionada pela nova ordem constitucional.

De maneira incontroversa, neste julgamento ainda pendente do mérito, restou prestigiada a autonomia dos Tribunais, mantendo hígidas as regras regimentais aprovadas por um processo democrático de deliberação, destacando o Ministro Marco Aurélio que “os tempos mudaram” e os ares constitucionais de 1988 e os atuais, trouxeram à baila a autonomia administrativa e financeira dos tribunais e, “após se proclamar esses predicados, houve o silêncio total, na Carta de 1988, quanto à disciplina da direção dos tribunais”.

O silêncio, no dizer do Ministro designado Relator, “mostrou-se eloquente”.

E prosseguiu o Ministro Marco Aurélio:

O que gostaria era de explicar por que entendo que houve uma mudança normativa constitucional substancial.

O que tínhamos na Carta de 1969, verdadeira Carta, considerada a Emenda Constitucional no 1? Tínhamos que o parágrafo único do artigo 112, ao versar disposições preliminares, estabelecia:

Art. 112. […]

Parágrafo único. Lei complementar denominada Lei Orgânica da Magistratura Nacional estabelecerá normas relativas à organização, ao funcionamento, à disciplina, às vantagens, aos direitos e aos deveres da magistratura, respeitadas as garantias e proibições previstas nesta Constituição ou dela decorrentes.

Mais do que isso. No artigo 115, inciso I, tínhamos a previsão da competência dos tribunais para eleger os presidentes e demais titulares de sua direção. E, então, repetia-se e havia por consequência o reflexo do parágrafo único do 112: “Observado do disposto na Lei Orgânica da Magistratura Nacional.

Era o que versava, portanto, a Carta de 1969, a Emenda Constitucional no 1, de 1969.

O que ocorreu na Carta de 1988? Uma disciplina diametralmente oposta, que já não remete a regência da direção dos tribunais ao que estabelecido na Lei Orgânica da Magistratura.

Leia-se no artigo 99:

Art. 99. Ao Poder Judiciário – continuo acreditando piamente nesta clausula – é assegurada autonomia administrativa e financeira.

Este, sem dúvida, o cerne da questão. Novos temas. Novos enfrentamentos. Nova visão. Silêncio eloquente. Norma constitucional assegurando, expressamente, a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário.

De se notar que, voltando ao voto proferido pelo ministro designado para a relatoria na Reclamação:

No artigo 93, tem-se a previsão quanto aos princípios a serem levados em conta pela Lei Orgânica da Magistratura. E no rol – que, para mim, é exaustivo, como são os presentes na Carta de 1988, porque não é exemplificativa, é exaustiva – inexiste referência, como princípio a ser adotado pela Loman, à regência dos cargos de direção.

Mais do que isso, Presidente. No artigo 96, inciso I, há alusão – como constava na Carta anterior, mas remetendo à anterior, de qualquer forma, à observância da Loman – à competência dos tribunais de:

a) Eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas do processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos.

A interpretação sistemática da Carta – segundo o ministro Sepúlveda Pertence –, da decaída e da atual, é conducente a concluir-se que esta última não submete mais à Loman a eleição dos dirigentes do tribunal. O silêncio mostra-se, como disse, eloquente. Não há, na Constituição de 1988, mais precisamente no artigo 96, inciso I – ao contrário do que ocorria na Carta anterior, no artigo 115, inciso I, que versava sobre a eleição dos dirigentes dos tribunais –, a remessa ao que previsto na Loman.

Destaque-se, ainda, que a autonomia administrativa do Poder Judiciário já tinha sido reconhecida em decisão proferida pelo Ministro Celso de Mello quando do julgamento, no ano de 1992, da Ação Direta de Inconstitucionalidade no 189, que visava à Resolução no 03/1989 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ).

Nessa ocasião, em importantíssimo precedente, o Ministro Celso de Mello ressaltou que o exercício do autogoverno pelo Poder Judiciário era imediato e prescindia de eventual regulamentação pelo Estatuto da Magistratura. Dessa forma, somente as normas estabelecidas no artigo 93 da Constituição Federal e que dependiam de regulamentação posterior, é que deveriam ser objeto do Estatuto da Magistratura. As demais normas, tais como a que tratava do exercício do autogoverno do Poder judiciário, eram de aplicação imediata.

Pelo ineditismo do voto, relevante a reprodução:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – RESOLUÇÃO No 3/89, DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – DISCIPLINA DAS PROMOÇÕES JUDICIÁRIAS – A QUESTÃO DO ART. 142 DA LOMAN – AUSÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO – COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL LOCAL PARA PROVER OS CARGOS JUDICIÁRIOS NOS TRIBUNAIS DE SEGUNDO GRAU – INCONSTITUCIONALIDADE DA UTILIZAÇÃO DO CRITÉRIO DE ORDEM TEMPORAL (ANTIGUIDADE NA ENTRÂNCIA) COMO FATOR DE DESEMPATE NAS PROMOÇÕES POR MERECIMENTO – AÇÃO PROCEDENTE EM PARTE – A aplicabilidade das normas e princípios inscritos no art. 93 da Constituição Federal independe da promulgação do Estatuto da Magistratura, em face do caráter de plena eficácia de que se revestem aqueles preceitos. – A inoponibilidade de situações jurídicas consolidadas a quanto prescrevem normas constitucionais supervenientes deriva da supremacia, formal e material, de que se revestem os preceitos de uma Constituição. – Sendo assim, revela-se invocável, em face do que preceitua o art. 93, n. III, da Carta Política, a regra meramente transitória – e de eficácia e aplicabilidade já exauridas –, inscrita no art. 142, da Loman (Lei Complementar n. 35/79). – O provimento dos cargos judiciários nos tribunais de segundo grau, em vagas reservadas a magistratura de carreira, insere-se na competência institucional do próprio Tribunal de Justiça, constituindo específica projeção concretizadora do postulado do autogoverno do Poder Judiciário. – Não ofende a Constituição, em consequência, o ato regimental que, subordinando o exercício dessa competência a deliberação do Órgão Especial do Tribunal de Justiça, vincula o Presidente dessa Corte Judiciária na promoção de juiz mais votado dentre os que constarem de lista tríplice. – É inconstitucional a cláusula constante de ato regimental, editado pelo Tribunal de Justiça, que estabelece, como elemento de desempate nas promoções por merecimento, o fator de ordem temporal – a antiguidade na entrância –, desestruturando, desse modo, a dualidade de critérios para acesso aos tribunais de segundo grau, consagrada no art. 93 da Lei Fundamental da República (ADI 189 – Relator Ministro Celso de Mello, DJ. 22.05.1992).

Este mesmo tema – autonomia dos Tribunais para normatizar a eleição para seu corpo diretivo – voltou à apreciação do STF em recente episódio ocorrido no estado do Rio de Janeiro quando, em sessão do Tribunal Pleno do TJRJ, decidiu-se pela alteração de alguns artigos do regimento interno, alterando, substancialmente, as regras da eleição para os cargos diretivos do tribunal.

Insatisfeitos com as novas regras regimentais que estabeleceram normas para regência do processo eleitoral para os cargos da Administração do TJRJ, alguns desembargadores membros da Corte Estadual e até mesmo terceiras pessoas não integrantes deste colegiado buscaram a modificação da decisão plenária, por meio de procedimentos de controle administrativo e de pedidos de providência interpostos no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Com a interferência do CNJ, a discutida e importante autonomia administrativa do Poder Judiciário retornou à pauta do STF, tendo sido proferida liminar na Medida Cautelar em Mandado de Segurança no 33288, em que é Impetrante o TJRJ, com a relatoria do Ministro Luiz Fux, nos seguintes termos:

DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. ALCANCE DOS PODERES E DA ATUAÇÃO DO CNJ. ÓRGÃO DE NATUREZA ADMINISTRATIVA. ELEIÇÃO PARA ÓRGÃOS DE DIREÇÃO DE TRIBUNAL DE JUSTIÇA. CONFLITO ENTRE A LEI ORGÂNICA DA MAGISTRATURA NACIONAL (LC No 35/1979) E A NORMA CONTIDA NO REGIMENTO INTERNO DO TJRJ. TEMA JURÍDICO DE ELEVADA COMPLEXIDADE QUE SE ENCONTRA SUB JUDICE NO STF NOS AUTOS DA RECLAMAÇÃO 13.115. IMPOSSIBILIDADE DE O CNJ INTERFERIR EM DECISÃO ADMINISTRATIVA ADOTADA POR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, MORMENTE QUANDO SUA CONCLUSÃO CONTRARIA O QUE DECIDIDO PELO PLENO DO STF EM SEDE DE AGRAVO REGIMENTAL NA ALUDIDA RECLAMAÇÃO. PRESENÇA DO FUMUS BONI IURIS E DO PERICULUM IN MORA. LIMINAR DEFERIDA.

Concluindo esse inacabado tema, uma vez que a questão da autonomia do Poder Judiciário ainda não foi decidida no mérito pela Suprema Corte, fácil concluir que o processo de democratização do Poder Judiciário é irreversível e que o exercício do autogoverno do Poder Judiciário é imediato e autoaplicável, não mais autorizando a interferência ou a regulamentação, a posteriori, de qualquer outro órgão.

Aliás, a representação mais digna de sua efetividade é a possibilidade de o Poder Judiciário deliberar sobre as regras para a eleição de seus administradores.

Resta ao TJRJ que, em bom tempo buscou a boa luta, submetendo ao STF a questão da autonomia administrativa do Poder Judiciário, dar mais um passo, permitindo que toda a magistratura fluminense possa participar, ativamente, por meio do seu voto e da sua voz, para a garantia do autogoverno dos Tribunais.